Petismo e revolução armada

Entrevista de Olavo de Carvalho à Rádio Gaúcha

21 de agosto de 2000

Transcrição de Luiz Triches dos Reis

NB – Todas as correções que introduzi estão assinaladas entre colchetes. – O. de C.

Ranzolin: O senhor é filósofo e jornalista, conhecido dos gaúchos pelos artigos que publica em Zero Hora. Por que o senhor tem afirmado que a esquerda tornou-se hegemônica?

Olavo de Carvalho – Veja que, desde que começou o regime militar, a esquerda brasileira começou uma vasta operação, que já vem de muitas décadas, que consistia, primeiro, em infiltrar-se em todos os escalões do aparelho de Estado. Segundo: tomar de maneira avassaladora todos os meios de comunicação, as instituições culturais, o aparato educacional e até mesmo os consultórios de psicologia, consultórios de aconselhamento matrimonial, todos os canais por onde o povo ouve alguma coisa.  Isso chama-se, na estratégia do teórico esquerdista Antonio Gramsci, que é a grande influência da esquerda brasileira, a “Revolução Cultural”. Ou seja, operar uma transformação tão sutil na escala de valores, no imaginário, na mente das pessoas, que se possa fazer uma transição para um governo comunista quase que de maneira indolor. A dor só será sentida depois, quando os comunistas já estiverem com o poder na mão e começarem as perseguições, as ações punitivas. Mas a transição ninguém percebe que já está acontecendo, e acontece diariamente, diante dos nossos olhos, sendo que o público está muito mal-informado. Veja, por exemplo, o PT. Ele é um partido sui generis. Se você vê a propaganda do PT, o que [os candidatos dele] falam em palanques, anúncios, artigos e discursos na Câmara, é uma coisa. Se você lê o material interno, discutido em congressos do PT, é outra. Para fora eles falam em combate à corrupção, em democracia. Dentro, eles falam em tomada do poder, em luta de classes, em toda aquela velha conversa comunista. É um partido que por dentro é uma coisa, por fora, é outra. Isso já é uma coisa de uma desonestidade tão grande, que nem vejo como um partido desses possa existir legalmente. É o único partido que adquiriu os meios e o direito de agir na esfera legal e na ilegal. Por um lado participa de eleições, por outro lado, tem ramificações [clandestinas] e apóia o movimento armado. Ou uma coisa ou outra. Ou você participa da esfera legal, das eleições, ou você parte para a esfera ilegal e pega em armas e faz uma revolução armada. Agora, o PT tem o direito de atuar nas duas frentes.

Ana Amélia: Se há essa infiltração da esquerda dentro do “establishment” governamental e em todas as áreas que o senhor acabou de citar, como é que eles não denunciaram os desmandos no caso do TRT de São Paulo, por exemplo, já que eles estão dentro do sistema?

Olavo de Carvalho – Veja, tudo isso é feito de uma maneira lenta e calma. O processo é de uma sutileza fantástica. Na Itália, onde essa técnica foi utilizada pela primeira vez, o Partido Comunista tinha preparado a tomada do poder durante quarenta anos, tanto que ofereceram ao seu secretário-geral, Palmiro Togliati, o cargo de primeiro-ministro. Ele não aceitou, por achar que era prematuro. Isso depois de quarenta anos. Imagine a sutileza do negócio. Isso não é feito do dia para a noite. E veja: incentivar a corrupção para depois denunciá-la é uma coisa característica [dos comunistas]. A atividade cultural da esquerda, dentro das escolas, sobre a mente popular, visa sempre destruir o centro de valores, o centro de moral. Isso incentiva [a corrupção, é] uma das principais causas da corrupção. Aí, quando a corrupção acontece, o partido a denuncia. E jamais assume a sua responsabilidade por esse estado de coisas.

Ranzolin – Professor, não quero perder a oportunidade de perguntar o que o senhor quer dizer quando afirma que dentro da ideologia comunista o significado de luta pela democracia tem um significado específico, bem diferente do que tem na linguagem corrente.

Olavo de Carvalho – Isso é uma questão clássica, vem de 1910, quando o Lenin fez a revolução na Rússia. Você faz a revolução em duas etapas, a primeira [é] democrática, e a segunda é a revolução socialista. Exatamente como na Rússia, onde houve duas revoluções, exatamente como na China, ou em Cuba. Primeiro uma mudança democrática que só serve para abalar a estrutura do sistema. Na hora em que ele está destruído, você cria um caos, onde o grupo que comanda o processo adquire o poder absoluto. “Luta pela democracia” é um termo técnico, uma etapa para a revolução comunista. No Brasil, ninguém mais sabe disso. Fora do círculo que promove isso, o povo não sabe. O povo não tem mais informação, está acreditando que o comunismo acabou, que não existe mais, não é? A própria esquerda alimenta isso. Abrindo um parêntese: eu não sou contra a esquerda, não. O que não deve existir é uma esquerda revolucionária, isto é, a pior das corrupções, das maldades. As pessoas só acreditam em corrupção quando envolve dinheiro. Quando é uma corrupção gigantesca, que envolve a tomada do poder, para instalação de um poder absoluto, [o povo] não percebe que isso é corrupção.

Ranzolin – Mas aqui no Brasil houve, o senhor mesmo tocou nesse ponto, uma luta pela redemocratização, uma luta para retomar a normalidade democrática. Aí o senhor diz que apenas uma parte dos objetivos foi alcançada, a parte menor. Qual era a parte maior?

Olavo de Carvalho – No plano da esquerda — esse plano inclusive está escrito, está falado –, a revolução tinha duas etapas. A primeira era a redemocratização, que era simplesmente para criar uma situação caótica, seguida pela tomada do poder. É exatamente o que está acontecendo. Se você [examinar] todo o processo redemocratizatório e a Constituição de 1988, [verá que ele] é todinho conduzido pela esquerda. Um grupo de esquerda muito discreto, não necessariamente formado pelas pessoas que aparecem. Não estou falando em Luíza Erundina e Olívia Dutra, mas de gente muito mais sofisticada, que estudou o marxismo por vinte ou trinta anos, [pessoas] que estão habilitadas a implementar esse processo da revolução sutil, da revolução cultural, que eles chamam também de revolução passiva, o que é maligno, porque a revolução passiva é a que acontece sem ninguém perceber e onde a falta de reação do povo é interpretada pela cúpula comunista como aprovação.

Ranzolin – O senhor é a favor da extinção da esquerda?

Olavo de Carvalho – De maneira nenhuma! Todo país tem de ter esquerda, centro e direita. O que não pode é um partido usar instrumentos revolucionários.

Ana Amélia – O senhor citou alguns partidos que estariam comprometidos com essa revolução. Agora, o PPS, o PSB de Arraes, o PDT de Brizola, o PSDB, estariam nessa linha?

Olavo de Carvalho – O PSB eu não tenho informações corretas, eu não posso dizer. Mas as ligações entre o PT e o MST são evidentes. Há uma parceria. Um faz as coisas na esfera da violência e o outro se senta no Parlamento. Se você olhar a história do comunismo, vai ver que é assim há séculos. Só que a fórmula é escondida do povo. O povo não sabe dessa diferença [entre os] discurso das teses internas do PT e a sua propaganda. Essa diferença é notável. Mas o povo não lê esses documentos.

Ranzolin – O que fazer para fortalecer a democracia do País, em última análise?

Olavo de Carvalho – Em primeiro lugar, é necessário que os partidos que não são de esquerda, que não são coniventes com essa coisa, tomem consciência de que nós estamos vivendo em um processo revolucionário em preparação acelerada. Estamos à beira da tomada do poder pelos comunistas num processo revolucionário. O Brasil foi designado para ser o lugar onde a fênix comunista vai renascer. Isso é uma decisão firme tomada [pela] esquerda, o processo está em curso, acontecendo [sob as] nossas barbas. A primeira coisa é tomar consciência e se informar urgentemente. E adquirir também o senso de ter as informações para perceber que coisas que outros partidos consideram imorais, para os comunistas são perfeitamente normais. Por exemplo, você fazer uma campanha só de fachada, sem a intenção verdadeira de levar aquilo adiante, é uma coisa impensável. Para os comunistas, não. Por exemplo, a famosa Campanha Contra a Fome e a Miséria, do Betinho. Para o público o Betinho dizia uma coisa, em particular [dizia que seu objetivo] não era nada daquilo. Era chegar à socialização dos meios de produção. Dentro do regime comunista. [Em] público, [a campanha] era [para] socorrer os pobres numa emergência, no recinto privado eram recursos para fazer a revolução. Essa campanha contra a corrupção que [está] aí, você veja que nos autos de acusação nunca tem gente da esquerda, nunca tem gente deles. Compreendeu? Isso está muito bem articulado. Se você pegar a classe jornalística de São Paulo e Rio, 75% são petistas e estão coniventes com isso.

Ana Amélia – O fato de eles cuidarem mais da moralidade não é para ter essa imagem de pureza perante a opinião pública?

Olavo de Carvalho – Bom, é muito simples, de fato eles cuidam mais da moralidade. Pelo seguinte: eles têm mais poder sobre os seus militantes. Eles visam ao processo revolucionário e não vão permitir que os seus militantes estraguem a revolução roubando um pouquinho de dinheiro aqui e ali. São muito policiados, nesse sentido. Eles passam a impressão [de honestidade], mas essa honestidade é só com o dinheiro público. O que eles estão fazendo por trás, essa desmontagem do sistema, essa operação revolucionária clandestina, é infinitamente mais desonesta do que qualquer desvio do dinheiro público.

Ana Amélia – Como é que a direita está se articulando contra isso?

Olavo de Carvalho – Em primeiro lugar, não existe mais direita nenhuma. Há partidos muito enfraquecidos que nem têm uma tomada de posição. O pessoal do PFL só tem discurso em favor da iniciativa privada. E ponto. Como um discurso desses pode se opor a uma operação dessas [dimensões]? Não há ninguém no PFL que saiba disso que eu estou falando!

Ana Amélia – Nem o ACM?

Olavo de Carvalho – Que ACM? Aquele não sabe nada. É um homem ingênuo. É um bobão. É isso o que eu estou dizendo: [é] preciso cultura, é preciso conhecimento, é preciso ter estudado história. Nossos políticos são todos semi-analfabetos, não lêem livros. A história das revoluções comunistas ninguém conhece no Brasil, e [ela] está acontecendo de novo sob as nossas barbas.

Ana Amélia – Nesse  aspecto, pelo menos um setor não está agindo com a sutileza que o senhor comenta. É o caso do MST. Que é um dos movimentos mais importantes…

Olavo de Carvalho – (interrompendo) O MST é um dos braços. Como eu disse, existem duas frentes, ou dois andares. Existe a atuação legal, através do Partido Comunista (1), e a ilegal, que é preparar a guerrilha, os guerrilheiros, a rede de espionagem. O MST é uma das alas do negócio. Mas em perfeita consonância com o resto da esquerda. Não se estudam mais essas coisas. As pessoas ignoram. Na juventude fui comunista. Estudei as obras de Lenin, de Karl Marx. Fui um comunista até muito aplicado. Para um comunista experiente, isso que eu disse é arroz-com-feijão, mas, para a população brasileira, isso aqui é um [mistério] (2), ninguém tem a menor idéia disso. Tem pessoas aí que, se você [lhes disser] que o PT é um partido comunista, dirão que você está maluco, porque o PT jamais fala isso em público. Então, eu digo: leiam as atas dos congressos do PT, leiam o material interno do PT, que não é secreto, e vocês verão que as decisões, a estratégia, tudo  é exatamente igual a todos os partidos comunistas do mundo.

Ranzolin – E qual é professor, qual é o recurso ideológico dos liberais dentro desse quadro?

Olavo de Carvalho – Veja bem, em primeiro lugar: nunca se deve desejar destruir a esquerda. Tem de existir uma esquerda. Mas ela deve ser disciplinada para abdicar dos recursos revolucionários. Ela não pode ao mesmo tempo participar do processo eleitoral legal e estar tramando a guerrilha, treinando guerrilheiros, juntando armas, criando um aparato de espionagem. Como existe hoje uma rede de espionagem petista, todos sabemos que existe, com um serviço secreto muito mais vasto que qualquer serviço secreto do governo. Então, temos um partido político que tem o privilégio de operar secretamente campos de guerrilha – e não é bem um partido, é um aglomerado de partidos de esquerda – que tem uma série de direitos e de possibilidades que os [outros] partidos não têm. Você imagine, por exemplo: se se descobrisse que o PFL está treinando um grupo de terroristas para soltar bombas no PT, toda a cúpula do PFL seria presa na mesma hora. No entanto, nós descobrimos que o PT, o PC do B, através de suas ligações clandestinas, estão treinando guerrilheiros, e não acontece nada… Note bem que o Governo Fernando Henrique é cúmplice disso aí.

Notas

(1) Evidente lapsus linguae da minha parte. Eu quis dizer Partido dos Trabalhadores. Mas no fundo é a mesma coisa.

(2) Na transcrição consta “estouro”, mas lembro-me claramente de ter dito “mistério”.

A natureza invisível

Olavo de Carvalho

O Globo, 19 de agosto de 2000

Para a tradição cristã, reforçada na Idade Média pelo enxerto aristotélico, a posição que um homem ocupe na sociedade é um acidente que em nada afeta a sua essência universal humana, igual à de todos os outros membros da espécie. Rico ou pobre, leigo ou clérigo, senhor ou escravo, o animal racional tem os dons, os limites e as responsabilidades do humano. A igualdade dos cidadãos perante a lei não é senão a formulação moderna e jurídica dessa evidência que a Igreja só a duras penas conseguiu impor a culturas xenófobas, profundamente imbuídas da falsa impressão de uma diferença natural, essencial, irredutível entre seus membros e os das comunidades em torno, impressão que, em muitas delas, se traduzia na inexistência de um termo comum para designar a uns e outros.

Se essa igualdade é natural, sua percepção, no entanto, não o é de maneira alguma: é aprendizado, é obra de civilização, é posse incerta que qualquer abalo põe em risco. A todo momento conflitos e fanatismos obscurecem essa verdade fundamental e entronizam em lugar dela as diferenças de classes, de raças, de nações, de culturas. Para o nazista, a diferença entre ele e o judeu não é uma casualidade genética: é um abismo essencial, ontológico, intransponível. Os acidentes tomam o lugar da essência: o humano desaparece, sobrando apenas suas determinações secundárias.

Dentre os fatores que debilitam a percepção da unidade essencial da espécie e reduzem a nada o princípio da igualdade jurídica decorrente dela, destaca-se hoje em dia, pela virulência e amplitude de sua ação paralisante sobre os cérebros humanos, a herança marxista.

Para o marxista, a noção de natureza humana, considerada universalmente, é só uma abstração sem conteúdo, falso esquema criado pela propensão estática e a-histórica do “pensamento burguês”. A natureza humana, argumenta Marx, só existe nas suas manifestações temporais, históricas, e existe precisamente como capacidade de, pelo trabalho, fazer História. Logo, não há “uma” natureza humana, mas uma sucessão de naturezas historicamente criadas e condicionadas: a natureza do proprietário romano e a do seu escravo, a do senhor feudal e a do servo da gleba, a do burguês e a do proletário.

O primarismo atroz dessa teoria salta aos olhos – de quem os tenha, é claro. Pois o que quer que exista ininterruptamente ao longo da História não pode, ao mesmo tempo, ser produto dela. Tudo o que é histórico surge e desaparece, começa e acaba, e é por isto mesmo que está “dentro” da História, abrangido pela dimensão do devir histórico. Ora, a capacidade de agir, de trabalhar, de transformar deliberadamente o mundo material, a capacidade, enfim, de fazer História, está presente no homem de maneira constante e sem hiatos desde seu surgimento sobre a Terra. Suspendê-la, ainda que por minutos, acarretaria a imediata destruição da espécie humana.

Essa capacidade não pode ser uma criação da História porque é, pura e simplesmente, o pressuposto dela – um pressuposto tão evidentemente natural e biológico, tão evidentemente ante-histórico e supra-histórico que nenhum historiador sério tentou jamais abrangê-lo no território da sua ciência, território cujo limite externo é fixado por esse mesmo pressuposto. No curso dos tempos, essa capacidade pode se expressar de maneiras variadas, mas não pode desaparecer e reaparecer dentro do tempo histórico como aparece e desaparece tudo o que a História abrange e narra. Portanto, a visão de uma natureza humana supra-histórica não é nenhum erro do “pensamento burguês estático”, mas simplesmente a descoberta certeira de uma ciência maior, de um gênio mais alto do que tudo quanto o talento subalterno e deficiente de Karl Marx pudesse conceber. Reduzir a produto da História o que é fundamento da possibilidade de toda História é rigorosamente o mesmo que fotografar uma vaca e em seguida espremer a máquina para tirar leite do filme. Pode ter impressionado militantes, mas, para quem tenha algum treino filosófico, é uma bobagem descomunal.

Acontece que essa bobagem se tornou, para muitas pessoas letradas, a base de todo julgamento moral e de toda noção de “direito”. E então já não há apenas diferentes naturezas humanas segundo as classes sociais, mas ainda essa noção vem junto com a crença que algumas dessas classes são sempre culpadas, e outras inocentes. Para o juiz criminal imbuído dessa mentalidade, nada mais natural do que, abolida a identidade de natureza que sustenta a igualdade perante a lei, estatuir ou suprimir direitos conforme o acusado pertença por nascimento ou fortuna à classe dos culpados ou à dos inocentes. A escala mesma de gravidade dos crimes, perdida a unidade lógica, se torna mutável segundo a classe social: é mais grave um membro da classe culpada lucrar com a alta do dólar do que um da classe inocente vender tóxicos, matar, seqüestrar e estuprar. O “pathos” emocional e os discursos irados que sublinham esse tipo de julgamento, hoje em dia, inibem e dissuadem as mais razoáveis objeções e ajudam a dar ares de superior justiça divina ao que é, na realidade, a manifestação jurídica de um escotoma adquirido, a expressão grotesca de uma mentalidade mutilada. E é nas mãos dessas pessoas intelectualmente mutiladas que se encontra, hoje, a parte mais ativa e entusiasmada do aparato punitivo do Estado. Com a maior sem-cerimônia, com a consciência tranqüila de quem não tem consciência nenhuma, elas farão dessa máquina, cada vez mais, uma arma mortífera a serviço da vingança política.

É muita bondade

Olavo de Carvalho

Época, 19 de agosto de 2000

Nunca um presidente “de direita” foi tão generoso com a esquerda quanto FHC

Há duas maneiras de ajudar um amigo: removendo os obstáculos de seu caminho ou dando-lhe o que necessita. Só os grandes amigos excedem nos dois tipos de bondade. A esquerda, portanto, não deveria ter raiva de FHC. Ninguém fez tanto por ela quanto o atual presidente. Ele é bom para ela nos dois sentidos – indireto e direto – da máxima bondade.

No sentido indireto, havia dois obstáculos no caminho da esquerda: o sucesso da economia liberal no mundo e o ressentimento dos militares contra seus desafetos que, beneficiados pela anistia, nunca anistiaram quem os anistiou.

FHC removeu os dois. De um lado, vestindo a camiseta da economia liberal, jogou de modo a tornar o time o mais odioso possível aos olhos da torcida, privatizando sem critério, demolindo o capitalismo nacional, estrangulando nossas possibilidades de independência tecnológica, até extrair daí a conclusão de que o liberalismo é mau e de que é preciso voltar ao velho estatismo – conclusão que, num fiel discípulo de Alain Touraine, não tem como deixar de parecer desejada e forçada desde o início.

De outro lado, boicotou, rebaixou e irritou quanto pôde os militares, até que alguns deles começassem a conjeturar que o comunismo talvez não fosse o maior dos problemas: que o maior dos problemas talvez seja o imperialismo globalista, encarnado, segundo eles, em FHC. Se havia um canal por onde eles pudessem começar a dar ouvidos à conversa esquerdista, era esse – e o presidente o abriu.

No sentido direto, a esquerda precisava de duas coisas: dinheiro e canais de difusão. Por trás de uma briguinha de pantomima em que o MST bate e o governo finge que fica brabo, o dinheiro dos cofres públicos tem jorrado copiosamente no pote dessa organização ilegal empenhada em preparar uma guerra revolucionária. Quanto a canais de difusão – o requisito essencial para a consecução da estratégia gramsciana da “revolução cultural” –, um Ministério da Cultura em mãos petistas e um Ministério da Educação que distribui cartilhas de luta de classes já não seriam o bastante?

Não digo que FHC seja, com o perdão da palavra, criptocomunista. Não digo que, no fundo, ele continue o mesmo da Rua Maria Antônia. Detesto conjeturar intenções ocultas; prefiro ater-me àquilo que sei. E sei que os Estados Unidos, sempre que confiaram na esquerda moderada, na social-democracia, como meio de deter ou desviar a ascensão comunista, se deram mal. Nos anos 60, o Departamento de Estado fez essa aposta na América Latina, fortalecendo a Cepal e a Sudene, que se transformaram em focos da ação comunista, e investindo no método Paulo Freire de alfabetização, que se revelou pura doutrinação marxista. Na Europa, os americanos optaram por Willi Brandt, que, no auge de uma linda carreira glamourizada pelo Reader’s Digest, foi desmascarado como espião da Alemanha Oriental. Em Cuba, que coisa era Fidel Castro senão o esquerdista soft, o democrata, o confiabilíssimo inimigo de uma ditadura que já fora tão cortejada pelo Partido Comunista? Todas essas coisas, há quem saiba. O que não me parece seguro é se alguém, daí, já concluiu que seguir conselhos de americanos talvez não seja a maneira mais prudente de se precaver contra o comunismo.