Vocabulário da insensatez

Olavo de Carvalho

O Globo, 16 de setembro de 2000

Duas habilidades que a educação deve desenvolver no estudante são o senso das relações e proporções no mundo real e o senso das nuances e ambigüidades na linguagem.

Daí a importância da matemática e das línguas em todo ensino. As duas estão estreitamente ligadas: sua articulação permite perceber as coisas com nitidez e verbalizá-las com exatidão. Não é preciso dizer que isso não serve só para os estudos e o trabalho, mas entra na constituição da personalidade, da consciência e dos valores pessoais.

Nem é preciso informar que esse efeito não se produz espontaneamente: sua conquista depende de uma luta interior. Conduzir a alma nessa luta é a mais alta finalidade da educação, que por isso mesmo recebe seu nome da raiz “ex ducere” = “conduzir para fora”: letras e números transportam a alma para além do seu horizonte imediato de sensações e reações, abrindo-lhe o acesso à dimensão da cultura, da História, do espírito.

Sem ter chegado até aí, ninguém está apto a participar utilmente de um debate público. Tão logo sai do círculo da sua prática corriqueira para opinar sobre questões maiores, a alma impropriamente educada está tão desguarnecida, tão fora do seu elemento, que em sua performance as funções da percepção e da linguagem se invertem.

Se a percepção normalmente serve para a orientação na realidade e a linguagem para a articulação e expressão das realidades percebidas, no homem mal instruído que se debate com questões elevadas a capacidade de aprender direto da percepção torna-se muito reduzida, e desenvolve-se em seu lugar o hábito de criar falsas impressões a partir da linguagem: ele reage às palavras por associações emocionais diretas, sem passar pela referência aos fatos percebidos. Daí uma atmosfera de falsa coerência, em que a simples coordenação de emoções dentro da psique funciona como substitutivo do senso de realidade: basta que a reação do indivíduo a uma idéia lhe seja habitual e familiar para que ele creia saber toda a verdade a respeito.

Em contrapartida, a estranheza, o medo, a aversão são tomados como provas de que a idéia é falsa e inaceitável em si. O julgamento já não se baseia no exame do objeto, do assunto, mas na simples constatação passiva do estado interior do próprio sujeito. Quando essa reação subjetiva é confirmada por análogas reações de outras pessoas do seu grupo de referência, aí então a falsa sensação de realidade é reforçada ao ponto de tornar-se uma certeza inabalável, um dado do senso comum.

Infelizmente, boa parte da educação brasileira hoje em dia — do primário ao doutorado — visa a aprisionar as pessoas definitivamente nesse estado de auto-referência grupal.

Para averiguar quanto essa deficiência intelectual está hoje disseminada nas classes letradas, basta analisar um pouco a linguagem da mídia e dos debates políticos. Os termos mais carregados de valorações, os mais decisivos e de efeito mais garantido são justamente aqueles que não designam nada, absolutamente nada de real, mas apenas um complexo de emoções produzidas pela pura imaginação.

O termo conservador, por exemplo, tem no linguajar midiático brasileiro um conjunto de conotações negativas que, bem examinadas, revelam não corresponder a nenhuma corrente política existente ou concebível, mas expressar apenas a ojeriza mental suscitada, na mente coletiva, por uma imagem de fantasia.

O conservador, nessa acepção, é um catolicão moralista e retrógrado, saudoso de uma civilização agrária tradicional, mas ao mesmo tempo é um industrialista voraz sem o mínimo respeito pela ecologia; é um adepto da Nova Ordem Mundial e um nacionalista xenófobo; é um neoliberal que anseia por desmontar o Estado e um fascista que sonha em instaurar o Estado autoritário onipotente; é um fundamentalista que tem horror à teoria da evolução e um darwinista social entusiasta do domínio tecnocrático dos fracos pelos fortes, sendo ademais um fanático e um corrupto aproveitador sem convicções. Eventualmente é também malufista.

É evidente que o tipo assim delineado não existe e não pode sequer ser concebido como possível. Não obstante, o epíteto conservador é usado correntemente para lançar sobre sua vítima todas essas suspeitas ao mesmo tempo e torná-la tanto mais asquerosa quanto mais indefinível e envolta em mistério. O conservador é aí propriamente um Frankenstein, composto heteróclito de peças inconexas e sem a mínima possibilidade de encaixe. Não podendo existir no mundo real, ele é apenas a projeção das imagens disformes que se agitam na mente que o criou para temê-lo e odiá-lo. E é tanto mais fácil odiá-lo quanto menos ele pode existir no mundo real.

Uma discussão empreendida com esse tipo de vocabulário jamais será outra coisa senão um intercâmbio de alucinações. Alucinações, é claro, podem ser disciplinadas e uniformizadas, de modo que, todos delirando ao mesmo tempo segundo a mesma pauta, o geral sentimento de concordância forneça à coletividade de alucinados uma forte impressão de realidade e todos saiam persuadidos de que sabiam do que estavam falando.

Confúcio dizia que, para moralizar um país, é preciso começar pela restauração do sentido das palavras. Mas no Brasil essa restauração não vai acontecer, porque teria de começar por enviar para o hospício os moralizadores.

Palmas para Keynes

Olavo de Carvalho

Época, 16 de setembro de 2000

Ele fez do capitalismo o regime mais confortável para a esquerda

Cresci ouvindo dizer que Lord Keynes fora o salvador do capitalismo. Precisei de uma vida inteira para descobrir que o desgraçado protegera o círculo de espiões soviéticos em Cambridge, que a aplicação de suas teorias nos Estados Unidos dera a maior zebra e só a guerra conseguira resgatar do naufrágio o New Deal inspirado por ele.

A mágica besta da economia keynesiana consistia em fazer do Estado o maior dos capitalistas, colocando-o à frente de grandes projetos industriais. De imediato, tinha um efeito formidável, porque gerava empregos. À objeção de que a longo prazo isso resultaria numa inflação dos diabos, os impostos subiriam até o céu, os operários seriam pagos com papel pintado e teriam de se matar de trabalhar para sustentar uma burocracia cada vez mais voraz, Keynes respondeu com a célebre evasiva: “A longo prazo, estaremos todos mortos”. Keynes, de fato, morreu em 1946, mas a maioria dos americanos ainda viveu para carregar o Estado keynesiano nas costas até que Ronald Reagan cortasse os impostos em 1981, iniciando a recuperação econômica de que os EUA se beneficiam até hoje.

De onde vinha então o prestígio de Keynes? Vinha da esquerda. A roda de milionários, estrelas de Hollywood e intelectuais mundanos que nos anos 30 personificavam a moda do stalinismo chique – tal era, em substância, a platéia de seu show. Os fios juntavam-se. Stálin havia determinado que o Partido Comunista dos EUA não cuidaria de organizar o proletariado, mas só de arregimentar o beautiful people para subsidiar o comunismo europeu e dar-lhe o respaldo moral de celebridades com aparência de independentes. Daí a profusão de espiões comunistas e “companheiros de viagem” nos altos círculos da Era Roosevelt. A ampliação da burocracia estatal era de interesse direto para essa gente. Quando, na década de 60, a difusão das obras de Antonio Gramsci ensinou aos esquerdistas que para tomar o poder eles não precisariam fazer uma insurreição, bastaria que dominassem o aparelho de Estado pouco a pouco e de dentro, gramscismo e keynesianismo descobriram que tinham sido feitos um para o outro. De seu matrimônio espontâneo nasceu a esquerda atual. A base dela já não está no proletariado, soberbamente conservador, mas na burocracia administrativa e judiciária, nos organismos internacionais, nas ONGs, na imprensa, nas universidades – e, de outro lado, no variado leque de “minorias”, as quais, recrutadas segundo os critérios mais desencontrados (sexuais, etários, raciais, regionais), não têm em comum senão o ressentimento sem objeto e a dependência da tutela do Estado, o que faz delas a massa de manobra ideal para keynesianos e gramscianos.

Essa esquerda ocupa os melhores postos, come a parte mais nutritiva das verbas do orçamento, faz as leis, impera sobre a mídia e, ao mesmo tempo, fala em nome dos revoltados contra o establishment – os quais, precisamente, não sabem que ela é o establishment.

Lord Keynes não salvou o capitalismo. Se o fizesse, seria odiado pela esquerda. O que ele fez foi tornar o capitalismo o mais confortável dos regimes para a elite esquerdista, criando a base econômica da “longa marcha para dentro do aparelho de Estado” planejada por Gramsci. Eu também o aplaudiria, se meu sonho na vida fosse ser um comunista chique.

Ser e Conhecer – 4

UniverCidade, Rio de Janeiro, 14 de setembro de 2000

Aula gravada. Transcrição de Alexandre Bastos

A idéia que inspira esta série de aulas é da total redução da gnoseologia à ontologia. Trata-se de eliminar o preliminar crítico, a crença de que primeiro é necessário criar uma teoria do conhecimento para depois, com base nela, chegar, se possível, a uma ontologia.

Mas essa é apenas uma das idéias, a outra é eliminar a dualidade do racional e do intuitivo, reduzindo tudo ao intuitivo. Se tivesse tido a oportunidade de expor isso ordenadamente nestas aulas, em vez de abordar as partes do assunto um tanto a esmo e ao sabor da ocasião, como o fiz, eu partiria do rastreamento histórico das origens da questão do conhecimento no mundo moderno, da origem do primado do sujeito. Primeiro, mostraria como o subjetivismo de origem cartesiana está presente em todas as escolas, inclusive as mais antagônicas a qualquer idealismo, pois até escolas materialistas, como o marxismo, aceitam implicitamente a prioridade do sujeito: a diferença, no marximo, é que é um sujeito coletivo. Mostaria que todos esses três séculos decorridos desde Descartes estão contaminados com o primado do sujeito.

Tendo verificado em seguida a total inviabilidade do projeto cartesiano, também colocaríamos entre parênteses toda a questão da fenomenologia, que não é senão um meio de tentar realizar o projeto cartesiano com mais fundamento — o próprio Husserl, em seu livro Meditações Cartesianas, diz inspirar-se em Descartes, e declara que só quer aprofundar o cartesianismo até um nível a que o próprio Descartes não chegou. É claro que nesse empreendimento chega Husserl a várias conclusões que podemos aproveitar, mas eu gostaria até de saltar essa preliminar fenomenológica, se possível também neutralizando-a, pois ela ainda está dentro da idéia do “preliminar kantiano”, e a minha idéia é eliminar completamente os preliminares, mostrando que são projetos inviáveis. E, para isso, é necessário voltar ao já exposto na aula “O problema da verdade e a verdade do problema”: tantas vezes quantas seja formulada essa questão, tantas vezes sua investigação será bloqueada por contradições internas da formulação mesma. Então, é preciso retomar o próprio Descartes, e aí entra, propriamente, minha crítica do Descartes: a idéia mesma de colocar entre parenteses o objeto do conhecimento, e ficar só com o sujeito, também é impossível: há um curto-circuito desde o início, e chega a ser espantoso que ninguém tenha mexido nesse problema antes. Ora, sujeito e objeto são um modelo, uma distribuição de papéis, e ambos não são senão funções desempenhadas por determinados elementos, nenhum dos quais corresponde inteiramente à função respectiva: não é concebível nem o puro objeto nem o puro sujeito. Assim, segue-se que o que existem são situações onde um elemento desempenha tal papel, e o outro o outro papel — mas essa situação é que é o decisivo, pois tanto podemos chamá-la de conhecer como de existir, já que não há nenhum motivo para dizer que o aspecto cognitivo predomina sobre o aspecto existêncial, se existir é, simplesmente, transmitir e receber informações.

Historicamente, as primeiras análises do fenômeno do conhecimento atacaram diretamente o ato de conhecimento sem perguntar se esse ato não seria espécie de algum gênero. Na verdade, o conhecimento é espécie do gênero relação — é uma relação entre dois entes. Se isso tivesse sido levado em conta, teria resolvido muitas questões relativas ao problema do conhecimento: todas e quaisquer relações que existem entre quaisquer seres são transmissões de informações, não há uma sequer que seja outra coisa. Portanto, essa modalidade de relação chamada “conhecimento” é apenas uma modalidade, entre milhares de outras, de transmissão de informações (é claro que com suas características diferenciais específicas). Agora, se o próprio existir é transmitir e receber informações, então não existe um estudo do conhecimento que possa colocar o existir entre parênteses, caso contrário teríamos o caso de uma espécie que coloca entre parenteses o próprio gênero ao qual pertence. Assim, só é possível estudar o conhecimento como modalidade da relação, ou seja, como algo que acontece àquilo que existe; ou, dito de outro modo, estudá-lo como maneira de existir. Mas essa não é uma maneira qualquer entre outras, e sim a maneira essencial — não é concebível nenhuma, nenhuma forma de existência que não seja, em essência, recepção e transmissão de informações. O tempo todo algo é transmitido e algo é recebido: se bloquearmos toda a entrada ou saída de informações não teremos mais um ente existente, mas apenas o conceito abstrato de uma espécie. Podemos conceber, por exemplo, uma figura geométrica: Qual a modalidade de existência de uma figura geométrica? Ora, ela só existe idealmente como conceito de espécie: Que é um quadrado senão o conceito de quadrado? Ele não é outra coisa senão seu próprio conceito, ele possui mera existência ideal e lógica, existe como possibilidade de relação matemática e só. Ou seja, não existe de maneira alguma: ele faz parte do possível, não do real. Isso não quer dizer que uma figura geométrica não transmita informação; mas ela transmite sempre a mesma, a informação essencial. Que é que o quadrado nos transmite senão o conceito de quadrado? É essa a definição do inexistir real: o que existe apenas como possibilidade lógica transmite uma única informação, que diz que o ente é aquilo que ele é. Quando lidamos com pura definições, no reino puramente lógico, os entes não têm senão existência puramente lógica, e não nos passam outra informação senão o conteúdo de seu próprio conceito. Mas existir realmente é transmitir algo mais que seu próprio conceito: é transmitir propriedades, acidentes etc. E por isso mesmo essa dimensão acidental passa a ser essencial para a existência. Aí temos a idéia, esboçada no meu livreto sobre Aristóteles, do acidente metafisicamente necessário. Algumas aspectos das coisas são acidentais, mas, sem eles, esses entes não poderiam existir. Esses acidentes, portanto, só são acidentais do ponto de vista lógico: para a existência, são essenciais. A estatura do homem é acidental, perfeitamente, mas não é acidental, para a existência, que ele tenha estatura, pois não pode haver um homem sem uma precisa estatura.

Portanto, com esse enfoque, todos os problemas metafísicos e gnoseológicos acabam por tomar outra face, mediante essa simples observação de que as questões fundamentais levantadas sobre esses assuntos não são abordadas e de que, sem elas, todas as teorias do conhecimento são projetos simplesmente inviáveis. Todos são assim, todos prometeram o que não podem fazer: o projeto cartesiano da fundamentação do conhecimento objetivo a partir do sujeito não vai dar em nada; o projeto kantiano da crítica da razão tampouco: o que se cria é um curto-circuito que não permite fazer progredir o conhecimento. Como conseqüência, como não há progresso, não há possibilidade de acumulação de conhecimentos, essa impossibilidade passou a ser vista, por filósofos da tradição kantiana, como um dos traços essenciais da filosofia. Eu mesmo já vi introduções à filosofia que diziam o seguinte: existem conhecimentos que progridem, como a ciência, e outros que não progridem, como a filosofia. É o caso de dizer que filosofia não é conhecimento de maneira alguma, como dizia Jean Piaget: filosofia, para ele, não é conhecimento, é uma coordenação de valores. Mas, como se pode coordenar algum conhecimento se a própria regra coordenante não é conhecimento? É o mesmo que ter uma regra do jogo sem nenhum conhecimento do jogo. Ora, se a filosofia não é conhecimento ela não é absolutamente nada. Wittgenstein dizia: filosofia não é conhecimento, mas uma atividade. Certo, mas atividade de quê? De conhecer, naturalmente. Isso tudo são subterfúgios: ou a filosofia é uma ciência, ou não é nada. E se é uma ciência, tem de ser possível colocar as questões, investigá-las e chegar a alguma solução. Mas desde Descartes e Kant todas as questões filosóficas não têm mais solução — todo o ciclo moderno é abortado pela sucessiva formulação de projetos impossíveis. Que é o projeto de Nietzche? É a transvaloração de todos os valores. Eu digo: pode parar, isso não é possível, pois, se você derrubar todos os valores, no fim sobra você, e você passa a ser o valor. Mas você não tem mais fundamento do que os valores que derrubou, você também é apenas fingimento e auto-engano, você é um pobretão sofredor que se faz de Anticristo para se consolar da sua miséria. Então, tudo começa com uma proposta muito arrojada e termina mal: é assim com o projeto cartesiano, com o kantiano, com o marxista, com o de Nietzche. O projeto de Wittgenstein, por exemplo, termina mal duas vezes: o primeiro projeto, o da linguagem absolutamente desprovida de ambiguidades, desprovida de qualquer elemento intuitivo, não dá em nada e então Wittgenstein passa para o segundo projeto, o da crítica da linguagem comum. Ora, só há uma forma de fazer a crítica da linguagem: a partir de algo que não é linguagem, como os dados dos sentidos, por exemplo. Ora, não é possível uma linguagem absolutamente coerente, em todos os passos, pois, se assim o fosse, dispensaria os fatos: ou seja, seria totalmente coerente na medida em que não falasse de coisa nenhuma. E de fato é aí onde chega Wittgenstein: por um lado temos uma linguagem totalmente coerente e formalizada, mas sem conteúdo algum; por outro lado há um conteúdo anárquico, atomístico, sem qualquer elo interior, que ele chama de “fatos”. É claro que isso é um projeto abortado.

No fundo toda essa aparente modéstia metodológica da filosofia moderna — todas começam com autocríticas da capa

humana — termina numa pretensão desmedida: pois seus projetos ultrapassam a capacidade humana.  Mais ainda: todos esses projetos não se justificam. Por que fazer a crítica da razão pura? Por que fundamentar o conhecimento no sujeito? Por que transvalorar todos os valores? Por que transformar o mundo em vez de tentar conhecê-lo. Não há razão suficiente para nada disso.

Quando digo que determinados projetos filosóficos são inviáveis, é porque levantam perguntas sem sentido. Por exemplo, fundamentar o conhecimento objetivo a partir do sujeito considerado isoladamente é uma impossibilidade: se alegam ter abstraído todas as coisas, e ter apenas sobrado o sujeito, como produzir o objeto a partir do sujeito? Descartes vai buscar um mediador em Deus, mas, se é necessário apelar a Deus, é porque é necessário um milagre: a filosofia de Descartes é tão inviável que, para realizá-la, é preciso um milagre.

Esses projetos filosóficos são todos abortivos por sua excessiva pretensão. O filósofo cai nessa pretensão ao tentar achar o fundamento absoluto de um objeto cuja presença ele suprime na mesma hora. Qual a possibilidade de conhecer um objeto que não está lá? Nesse sentido, toda a filosofia moderna é louca, a começar por Descartes. Ela cai na famosa definição de Borges: metafísica é um cego, num quarto escuro, procurando um gato preto… que não está lá.

Vejam que mesmo o projeto de Popper é inviável: ao dizer que as teorias ciêntificas válidas são aquelas que ainda não foram impugnadas, ele concede a toda teoria científica uma espécie de licença para o erro infinito. Se não temos um método positivo de afirmação da verdade, então não há nenhuma possibilidade de, de antemão, impugnar outras possibilidades de contestação que possam surgir. Assim, qualquer teoria está aberta a uma crítica infinita, e entramos no reino da total insegurança, onde conhecer e não-conhecer passam a ser a mesma coisa. Assim, pelo método popperiano, caímos no total irracionalismo, no convencionalismo científico, onde o único recurso que nos sobre é o apelo à autoridade científica  — “tem de ser assim porque o consenso diz que é”. Também é evidente que, não havendo confirmação positiva da verdade, é puro eufemismo dizer que na passagem de uma teoria impugnada a outra ainda não impugnada há um “progresso”. Não existe “progresso” ao longo de uma linha infinita, onde a idéia mesma de movimento é anulada por hipótese. Ou há um padrão de perfeição, ainda que meramente ideal, ou então é impossível distinguir processo, retrocesso e estagnação.

Mas, existe algo em comum entre todos esses projetos, que os condene à inviabilidade desde o começo? Existe, sim: é a proposta de que o projeto filosófico tenha de engolir o mundo, e não ser apenas uma parte dele: no fundo o que todos querem é encontrar a fundamentação filosófica do mundo, mas se a primeira coisa que fazem é suprimir o mundo, como será possível fundamentá-lo? É possível, certamente, fundamentar o mundo, mas para isso, em primeiro lugar, é preciso aceitar o mundo. É preciso reconhecer que a filosofia é apenas uma das muitas coisas que o homem faz no mundo, que a filosofia é uma resposta a uma situação que já está dada, e que ela só responde às perguntas que foram colocadas naquele momento e naquele lugar. Ou seja, ela pode remeter a uma ordem de conhecimentos e princípios universais, mas nunca vai expressar aqueles princípios na totalidade  — a função da filosofia não pode ser essa. Isso não quer dizer, no entanto, que a filosofia tenha de se contentar com o parcial e fragmentário. Quer dizer apenas que ela tem de ter a consciência de participar do todo em vez da pretensão de “abarcã-lo”. A consciência de participação é uma forma de conhecimento tão exata quanto a utópica visão desde fora, com a vantagem de ser viável. Se a função da filosofia é uma função reflexiva e crítica, de certo modo, o trabalho dela é remeter a certos princípios que já são conhecidos por participação: podem ser difíceis de exprimir, podem variar na expressão de tempos em tempos, mas a filosofia não tem de se preocupar com dar-lhes uma formulação uniforme e universalmente aceita precisamente porque o trabalho dela não é abarcá-los dentro de si, mas lembrá-los, tornar possível a sua reconquista na consciência de homens reais que em seguida terão todo o direito de os formular como desejem. A filosofia é uma correção de trajeto: ela não vai traçar o trajeto, pois este já está dado: esse trajeto é o mundo. Quando a mente humana começa a fantasias muito, e sair da realidade, a escapar da consciência viva dos princípios, a filosofia corrigem a rota, e isto é tudo. A filosofia não visa a dizer qual o sistema do mundo, pois o sistema do mundo já existe e está no próprio mundo. Se não partirmos disso, nunca iremos encontrá-lo: o mundo é sistema, e o código do sistema está no próprio mundo. Nós, como participantes dessa realidade, temos esse código em nós, e o conhecemos na medida do papel que nesse todo desempenhamos: não mais que isso. Assim,  todos os códigos que compõem uma tartaruga estão na tartaruga, senão ela não poderia ser tartaruga. Todos os códigos que compõem cada ente estão refletidos em todos os demais entes, mas refletidos de maneira inversa:  por exemplo, na tartaruga estão refletidos todos os códigos que a diferenciam de um gato — se faltar um só, a tartaruga estará imperfeita, será indistinta de um gato. Se tomarmos dois entes, todas as diferenças que os separam estão registradas nos dois — não podem estar registradas num só –, mas de maneiras diferentes e multiplamente complementares. Então, o sistema do mundo está refletido no mundo e em nós também: de maneira direita na nossa constituição enquanto homens, de maneira indireta na nossa diferença em relação a todos os demais homens e a todos os demais seres e coisas, inclusive o todo universal. Essa lei imanente, que tem de existir absolutamente, é o que chamamos sabedoria. É a sabedoria que está no próprio ser, na realidade mesma, e que pode estar presente também no homem segundo uma modalidade especificamente humana. E o que é filosofia? É o amor à sabedoria. É a reconquista de um conhecimento desse sistema universal, que está dado o tempo todo, e que conhecemos reduzidamente mas suficientemente. Então, é um conhecer que é um ser. O ser humano tem em si todas as determinações que o fazem humano, que o fazem ser fulano ou ciclano individualmente e que o fazem existir, ser real num universo real. Não é possível que ele abarque em toda sua mente subjetiva todos elementos dessa constituição, pois, se abarcasse, não abarcaria não só conceitualmente mas existencialmente: seria necessário produzir um novo homem que contivesse o primeiro, o que não é possível.  Portanto aquilo que você tem em você como ser, quando rebate no plano do seu conhecer subjetivo, rebate de maneira reduzida. Mas, em compensação, você conhece a constituição de muitos outros seres. Esse conhecimento, não é necessário registrá-lo porque o próprio real é o registro deles, e essa realidade, de certo modo, não é opaca, é translúcida: você pode sempre voltar à leitura dos mesmos registros. Não é necessário saber tudo, pois o universo sabe tudo e ele está permanentemente à nossa disposição. Ele é a nossa memória, a nossa biblioteca, o nosso saber. Ele, e não o nosso cérebro. E qual o papel da filosofia? É restaurar no ser humano a confiança e a capacidade da leitura dos registros no ser: no momento em que o ser deixa de ser opaco para alguém, está cumprida ali a função da filosofia. Agora, é necessário fazer a transcrição do ser? Ora, se é transcrição é parcial, ela não é o próprio ser. E é feita apenas para responder apenas às perguntas determinadas que alguém fez. Assim, a função da filosofia não é fazer a doutrina universal, mas remeter-nos à própria realidade, que já é a sua própria doutrina, a doutrina do ser que transluz no corpo do próprio ser. A função da filosofia é corretiva e, por isso, a maior parte da atividade filosófica é reflexiva e crítica. Nesse sentido é que não acredito em “progresso infinito do conhecimento”, mas sim em conhecimento infinito. O ser que se dá a conhecer é infinito e se dá a conhecer infinitamente. O real é infinito, é inteligível, e é inteligível infinitamente: no momento em que compreendemos isso, estamos curados: terminou a missão da filosofia, e, então começa a sabedoria: Que é sabedoria? É o conhecimento, e, se o é, não pode ser uma doutrina, mas a própria modalidade da nossa existência. Onde está a sabedoria? Está no homem sábio, não no que ele disse, pois o que ele disse pode não ser compreensível para todos. Há sabedoria nos provérbios de Salomão? Sim, mas apenas se a compreendermos, caso contrário não há nenhuma: o que há, isso sim, é o testemunho da sabedoria. E onde está a sabedoria de Salomão? Está em Salomão, e, se a compreendermos, ela já não será mais sabedoria de Salomão, e sim nossa. Daí podemos entender que a finalidade da filosofia é fazer sábios: é despertar a possibilidade da sabedoria, que não é senão a inteligibilidade direta do real. Existem obstáculos para atingi-la: obstáculos de ordem moral, fisiológica, cultural. Esses últimos obstáculos, criados pela própria atividade de busca do conhecimento, são os que a filosofia pode remover.  Por isso, se a sociedade não chegar ao ponto de criar confusão na esfera cultural, não há necessidade de filosofia.

Não se pode transmitir a sabedoria porque a sabedoria é o real, não o que pensamos ou dizemos a respeito dele. Caímos hoje numa série de ambiguidades por estarmos acostumados a entender sabedoria como conteúdo de consciência, não como algo que está no ser, no real. Onde está a ciência da mineralogia? Está nos livros de mineralogia? Não: ela está nos minerais. Se assim não fosse, ela não poderia estar também nos livros de mineralogia. Os livros são apenas registros que criam um intermediário humano entre nós e o mineral, de modo que não é necessário recapitular todas as observações anteriores para chegarmos até o mineral. Se ao estudarmos um tratado de mineralogia conhecermos apenas o que nele está escrito, sem referência aos minerais enquanto coisas reais, então não sabemos nada.

O real propriamente dito é registro infinito de conhecimento, essencialmente translucidez, acidentemente obscuridade, pelo jogo dos reflexos devido a uma ocasional posição impropícia que assumimos para enfocá-lo – aí é necessário mudar de posição. Ora, mas se tomarmos todas as possíveis dificuldades de foco, e, com elas, tentarmos formar um sistema, formaremos o mundo das sombras, o sistema da ignorância. É a isso que a filosofia acadêmica francesa tem se dedicado nos últimos trinta anos. Ora, é necessário eliminar essa idéia de que conhecimento só existe na mente humana, e entendermos que conhecimento é uma relação ativa existente entre o ente e o restante do real, o qual é conhecimento, ainda que sob a forma potencial. Tome a própria idéia de observação: para entender a vida dos tigres, nós os observamos. Ora, se nenhum conhecimento sobre tigres transparecesse na conduta dos tigres, de que adiantaria observá-los? Se o conhecimento existisse apenas na mente humana, ao observarmos o tigre não conheceríamos o tigre, mas apenas a nós mesmos, a nossos pensamentos — e cairíamos no curto-circuito kantiano: estamos observando apenas fenômenos que não são senão projetados por nossa forma cognitiva, portanto não estamos vendo um tigre, mas estamos vendo a nós mesmos e chamando de tigres os nossos esquemas lógicos e formas de percepção. Muito bem, mas aí o tigre come o filósofo kantiano, e que é que havemos de dizer? Que foram as formas a priori que comeram? Ora, o tigre que nos ataca é o mesmo que antes conhecíamos; ou seja, o objeto que conhecemos é o mesmo com que nos relacionamos fisicamente e praticamente.

Conhecimento e ato de conhecer são certamente distintos. O real é registro infinto de conhecimentos. Existe, entretanto, o ato de conhecimento, que apenas ocorre nos atos individuais concretos. E mesmo assim, quando estes ocorrem, ocorre duplamente, não apenas no sujeito: os escolásticos dizem que ao conhecermos algo, esse objeto não é alterado pelo fato de nós o conhecermos. Mas isso não é totalmente exato: aquilo que conhecemos está transmitindo informação a seu respeito naquele mesmo momento, e ser conhecido por um outro é alterar-se, sim. Não é alterar-se internamente, mas alterar sua relação com o mundo em torno.

Imagine o primeiro homem que descobriu o diamante. Naquele mesmo instante não apenas o homem transformou-se, mas também transformou a relação do diamante com o homem, ou seja, daí por diante tudo foi diferente não só para os homens mas também para os diamantes. Tornar-se conhecido é ser alterado, não internamente, é claro, mas relacionalmente. Foi porque os diamantes se tornaram conhecido que os homens começaram a escavar para procurar diamantes. No mínimo, cada coisa conhecida abre uma nova possibilidade de ação sobre ela: a partir daquele momento, ela pode sofrer um tipo de ação que antes não podia. Dizer que o objeto não foi alterado em nada é o mesmo que dizer que, para o objeto, ser conhecido ou não ser é o mesmo: ora, mas não me é possível comer um frango se nunca o conheci. Ser conhecido abre, para o objeto, a possibilidade de uma nova paixão, de sofre um novo tipo de ação –- isso muda o destino dele, o lugar dele na ordem cósmica. É uma mudança objetiva.

Se entendermos que o real é registro de conhecimento, poderemos compreender o porquê do símbolismo do “grande livro da natureza”: o que é ele senão o símbolo da inteligibilidade do real? E o homem tem, dentre os seres do mundo físico, o privilégio de poder conhecer teoricamente todas as relações entre todos os seres que estejam a seu alcance. Isto é, o homem é o local onde esta inteligibilidade da natureza se realiza sob a forma de linguagem, mas não podemos esquecer que esta é apenas uma relação entre milhares de outras possíveis.

Por isso a filosofia tem sempre de ser sistêmica, tem de ter um centro e não pode ser arbitrária, mas não pode ser “sistemática”. Sistêmico é aquilo que tem um centro e se desenvolve de forma mais ou menos orgânica a partir desse centro, sistemático é aquilo que procura conscientemente abranger e conter nos seus próprios limites o todo. É perda de tempo tentar uma filosofia sistemática: é o mesmo que tentar recriar o universo. Mas ela tem de ser sistêmica no sentido em que se refere ao sistema do universo, não perde de vista a sistematicidade do próprio real. Ela não é um amontoado de observações anárquicas, mas tampouco se constitui da construção sistemática de um todo abrangente. Quando desenhamos uma árvore, tentamos desenhá-la de todos os ângulos possíveis? Não, o que tentamos fazer é um retrato parcial referido ao todo e ao sistema, um retrato parcial que esboce, signifique ou aponte para essa totalidade — quanto mais simples for o desenho e quanto mais claramente apontar para o centro do sistema, melhor. Então, a finalidade da filosofia é devolver o indivíduo a esta posição de observador central, na qual o conteúdo sapiencial da própria realidade se mostra para ele. E quando ela se mostra? Quando ele quer: o universo responde quando perguntamos. Se for possível recuperar essa posição, está realizada a função da filosofia. Aí começa a sabedoria propriamente dita.