Da piedade ao orgulho

Olavo de Carvalho

Época, 7 de outubro de 2000

O trajeto do catolicismo de esquerda termina na beatificação do Mal

“Lênin era completamente indiferente ao sofrimento humano, que só o comovia quando apto a sublinhar seu ódio ao capitalismo.” Quem diria que essa observação de Franz Borkenau sobre o inimigo jurado do cristianismo viria um dia a poder aplicar-se, ipsis litteris, aos sacerdotes da Igreja de Cristo?

No entanto, quem ler as declarações de certos bispos brasileiros nos últimos anos haverá de reparar que, nelas, a piedade e a compaixão, longe de ocupar o centro e o topo de seu universo de valores, estão sempre subordinadas a um projeto político, reduzidas a instrumentos e adornos retóricos da luta de classes: não é qualquer sofrimento que merece a atenção dessa gente – é só aquele que, exposto, sirva para despertar o ódio e a revolta contra o governo, os ricos ou o FMI.

Isso é empiricamente verificável por simples análise textual, e basta para comprovar que tais indivíduos não são cristãos nem mesmo num sentido remoto e figurado da palavra. São simplesmente comunistas. São movidos pela mesma ambição milenarista que tornava Lênin tão insensível ao padecimento alheio quanto sensível às oportunidades de aproveitá-lo politicamente.

Compaixão é sofrer junto, é partilhar de uma dor que nem sempre se pode aliviar. É afeição que não entra em nosso peito sem trazer consigo a lembrança de nossa fragilidade, portanto a exigência incontornável da humildade e da paciência. Um dos atrativos mágicos do socialismo é justamente a perspectiva de nos libertar desse sentimento constrangedor, absorvendo-o e superando-o na síntese moral de um serviço prestado à História. O Bem, aí, identifica-se com a vitória sobre o presente, com a criação do “mundo melhor”. A convicção de servir ativamente a esse Bem infunde no homem tamanho amor-próprio que ele já não precisa das virtudes passivas, restos sombrios de uma era de submissão e impotência.

Por isso o comunista não se deixa afetar pelo sofrimento de seus contemporâneos. Ele já lhes deu o que há de melhor: sua luta pelo futuro, sua promessa de construção do socialismo. Que mais poderiam exigir?

Com as velhas virtudes abandonadas, vai embora também a consciência de culpa – e o neovirtuoso, com a maior naturalidade, subtrai-se aos julgamentos humanos. Aponte-lhe os pecados, e ele não verá em você senão a obstinação do Mal antigo que resiste ao advento do novo Bem. Já não há outro pecado no mundo senão o “reacionarismo”: quem está livre deste é puro por definição e eternamente imaculado e imaculável, faça o que fizer.

É por isso que o saldo de 100 milhões de mortos e a miséria indescritível criada pelas economias socialistas não abalam em nada a boa consciência esquerdista, imersa de uma vez por todas numa atmosfera embriagante de autobeatificação que transfigura em expressões supremas do Bem e do amor todos os crimes e desvarios: L’amour en action voilà la révolution. É também por isso que com tanta desenvoltura a mais anticristã das ideologias se adorna do encanto residual de um cristianismo em dissolução. Esse fenômeno encontra sua cabal explicação, com séculos de antecedência, na fórmula de Agostinho: “Todos os vícios se apegam ao Mal, para que se realize; só o orgulho se apega ao Bem, para que pereça”.

É dos pastores desse novo culto que o rebanho foge, buscando abrigo nas igrejas evangélicas.

Socialismo e cara-de-pau

Olavo de Carvalho


O Globo, 7 de outubro de 2000

Um dos mais notórios apóstolos do socialismo nestas plagas, cujo nome não declinarei para que não digam que é perseguição, gabava-se outro dia de que a esquerda sempre foi a primeira a reconhecer o fracasso da URSS.

Quatro décadas de experiência não bastaram para me habituar à cara-de-pau esquerdista. Ainda me surpreendo quando, batendo nela com os nós dos dedos, ouço o inconfundível “toc-toc” da madeira velha. Como os livros anticomunistas foram desaparecendo de circulação desde os anos 60, enquanto seus contrários abarrotavam cada vez mais as prateleiras das livrarias (mostrando que a censura extra-oficial das patrulhas foi muito mais persistente do que a censura governamental), é uma delícia, para essa gente, poder falar à platéia jovem com a plena segurança de que ela ignora tudo da história do socialismo, ou pelo menos de que só a conhece pela versão conveniente.

Nenhum sujeito com menos de 50 anos conhece hoje os nomes de Viktor Kravchenco, Walter Krivitsky, Elizabeth Bentley, Whittaker Chambers. Se os conhecesse, saberia a que prodígios de falsificação e difamação organizada a esquerda pôde chegar para ocultar a divulgação de qualquer notícia que pudesse manchar a santa imagem do comunismo.

Kravchenco, um exilado russo em Paris, publicou em 1946 o primeiro testemunho detalhado sobre os campos de concentração soviéticos. Imediatamente ergueu-se contra ele o vozerio maciço da intelectualidade francesa – numa gama que ia do comunista Roger Garaudy e seu “companheiro de viagem” Jean-Paul Sartre até as revistas católicas “Esprit” e “Témoignage Chrétien” (pois na França os Boffs & Bettos já abundavam naquela data) – para acusá-lo de ser um mentiroso a soldo da CIA. Homem simples, Kravchenco enfrentou com brio a assembléia de vacas sagradas, processando seus detratores e trazendo para diante do júri dezenas de ex-prisioneiros, entre os quais Margarete Buber-Neumann, neta do eminente filósofo Martin Buber, que confirmaram de ponta a ponta seu depoimento. Sartre et caterva foram condenados a pagar indenização, mas o vencedor, velho e extenuado, morreu logo depois da batalha. Então foi fácil para seus inimigos fazer baixar sobre o caso uma pesada e durável cortina de silêncio. O livro de Kravchenco, “Escolhi a liberdade”, é hoje impossível de encontrar exceto em sebos.

Whittaker Chambers e Elizabeth Bentley, ex-agentes do Comintern, descreveram as operações secretas de que tinham participado nos EUA, deixando claro que o Partido Comunista americano e sua rede de colaboradores informais nos meios elegantes não eram senão uma fachada da espionagem soviética. O establishment universitário fez o possível para desqualificar os depoimentos de ambos, ainda que confirmados pelo de Krivitsky, um general com alto posto na NKVD que fugiu para o Ocidente e, logo após contar o que sabia, apareceu morto a tiros num hotel em Washington, sendo sua memória sepultada sob densas camadas de material acadêmico difamatório. As memórias de Chambers, “Witness”, um dos mais belos livros da língua inglesa, desapareceram dos catálogos das editoras.

Após o fim da Guerra Fria, os governos ocidentais suspenderam todo esforço sistemático de propaganda anticomunista. A esquerda, em vez de retribuir o gesto cavalheiresco, aproveitou-se da trégua unilateral para consolidar sua posição nos meios intelectuais. Nas décadas de 70 e 80, a produção de teses anti-Kravchenco, anti-Chambers etc. foi tão intensa que, na entrada dos anos 90, a doutrina de que a esquerda americana era puramente autóctone e sem qualquer ligação significativa com a URSS podia se considerar triunfante. Então… Bem, então veio a queda da URSS e a abertura dos arquivos da KGB. Aí houve choro e ranger de dentes. Toneladas de telegramas, de bilhetes cifrados, de ordens de serviço, de recibos milionários vieram à tona. Hoje não é mais possível ocultar: cada palavra de Kravchenco, de Krivitsky, de Bentley, de Chambers era verdade, assim como as de Robert Conquest, o primeiro historiador científico dos Processos de Moscou, fartamente difamado entre seus pares. O estado de espírito atual, entre acadêmicos que estudam o assunto, pode ser resumido nos títulos de dois livros de pesquisadores que mergulharam a fundo nos arquivos de Moscou. O primeiro é o de John Lewis Gaddis, publicado pela Oxford University Press: “We now know”, “Agora nós sabemos”. O segundo é o de Richard Gid Powers (Yale University Press), “Not without honor”, “Não sem honra” – o reconhecimento de que o anticomunismo americano não foi uma sórdida campanha de mentiras, mas um sério esforço de fazer prevalecer a verdade sob o fogo cerrado de um exército mundial de prestigiosos vigaristas. Até ao remoto Brasil a onda de revelações trouxe alguma luz, mostrando que o famoso “ouro de Moscou”, longamente explicado como invenção maldosa da CIA, havia com efeito tilintado nos bolsos de nossos grotescos heroizinhos comunistas.

Depois disso, que mais restava à esquerda senão passar um tardio e vergonhoso recibo do fato consumado? Foi assim que em 1997 apareceu o “Livro negro do comunismo”, que, comprovando item por item as denúncias direitistas que a esquerda mundial desmentira desde a década de 30, ainda procurava diminuir a extensão quantitativa do desastre mas não conseguia reduzir o número de vítimas do comunismo para baixo da cifra dos cem milhões. Mesmo assim, o livro não saiu sem provocar reações indignadas (tipo “Onde já se viu dar munição ao inimigo?”), nem sem suscitar a produção de um atabalhoado e ineficacíssimo contraveneno, o qual, sob o título “O livro negro do capitalismo”, só é levado a sério, precisamente, pela anônima figuraça aludida no início deste artigo, cujo anonimato preservo, também, por julgar que esse deveria ser o seu estado natural.

O Império e a globalização

A metalinguagem do colonialismo

Deslumbrados com o conceito de “Império” que acabam de importar dos Estados Unidos, intelectuais brasileiros desconhecem – ou fingem desconhecer – que o filósofo Olavo de Carvalho já o criara no Brasil há cinco anos.

por José Maria e Silva
silvajm@uol.com.br

Opção (Goiânia), 1º de outubro de 2000

Como os índios e escravos do período colonial, que por força da sobrevivência batizavam seus deuses com nomes de santos, os intelectuais brasileiros rendem-se ao imperialismo com um despudor de espantar. Só são capazes de aceitar o Brasil quando descobrem um modo de pronunciá-lo em inglês, como faz o antropólogo Hermano Viana, arremedo de Mário de Andrade. Entre os incontáveis exemplos dessa conduta servil da elite pensante brasileira, o mais recente encontra-se no caderno Mais! do jornal Folha de S. Paulo, que, na edição de domingo passado, 24 de setembro, apresentou como grande descoberta do século o conceito de “Império”, proposto pelo italiano Antonio Negri e pelo norte-americano Michael Hardt, no livro Empire, que está sendo lançado nos Estados Unidos pela Universidade de Harvard. Só no próximo ano o livro será lançado no Brasil, pela Record, todavia, já está sendo festejado por intelectuais como André Singer, professor do departamento de ciência política da USP e autor do recém-lançado Esquerda e Direita no Eleitorado Brasileiro. Segundo ele, o aspecto “mais original” da obra de Negri e Hardt “está em perceber o quanto o modelo político norte-americano, inventado no século 18, quando as 13 colônias se fizeram independentes, é adequado ao sistema imperial, hegemônico a partir de 1991”. O que significa que, para ele, o próprio conceito de “Império”, que se propõe a substituir o de “Imperialismo”, já é original.

André Singer parece não saber que essa suposta originalidade importada dos Estados Unidos já se encontrava aqui, autóctone, nas páginas candentes do livro O Jardim das Aflições, do filósofo Olavo de Carvalho, publicado em 1995 pela Editora Diadorim, com o subtítulo De Epicuro à Ressurreição de César: Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil. Nesse estudo magistral, que se estende por 20 séculos de civilização e permeia os mais variados ramos do conhecimento (inclusive o estudo de religião comparada, verdadeiro deserto no pensamento brasileiro), Olavo de Carvalho critica o descaso com que a teoria política trata o “fenômeno Império” e sustenta que “a história política do Ocidente pode ser, sem erro, facilmente resumida como a história das lutas pelo direito de sucessão do Império Romano”. Sem advogar para o seu ensaio o estatuto de uma “teoria”, já que é um crítico do sentido imanentista da história, Olavo de Carvalho procura mostrar que o Império no Ocidente é uma realidade — e realidade “contínua“, com ligeiro interregno entre a queda de Roma e o reinado de Carlos Magno; “problemática“, porque não apresenta a unidade estável e o crescimento orgânico de Roma; “decisiva“, uma vez que se serve indistintamente de todas as demais doutrinas; e “atual“, especialmente depois que a União Soviética sucumbiu ante os Estados Unidos e uma nova Roma ressurge no mundo. Em suma, cinco anos antes dos dois autores estrangeiros, o filósofo brasileiro já mostrava que o Ocidente se move para realizar sua sina de Império.

Sequer a idéia de que os Estados Unidos encarnam o “Império” — considerada por Singer a contribuição “mais original” de Negri e Hardt — deveria ser uma novidade para o país de Olavo de Carvalho. Num estilo primoroso, em que as imagens faíscam como fogos e os sons jorram como cascata, tirando o fôlego do leitor de bom gosto, o filósofo paulista já observava que os Estados Unidos vão “unificando e homogeneizando a humanidade, impondo por toda parte suas leis, seus costumes, seus valores, sua língua, e, administrando sabiamente as diferenças nacionais, é elevado à condição de supremo magistrado do universo”. O Império, segundo Olavo de Carvalho, é “destituído de convicções teóricas”, apoiando, indiferentemente, a revolução ou a reação, a escravatura ou a abolição, o moralismo puritano ou a rebelião sexual, o domínio colonial ou as reivindicações de independência nacional” — o que lhe importa é assegurar a “marcha ascendente da Revolução Americana” sobre o mundo. Depois de várias tentativas frustradas de restauração do Império Romano por parte de potências européias, César ressuscitou do outro lado do Atlântico. Os Estados Unidos — afirma Olavo de Carvalho — são uma “República imperial, capitalista, maçônica e protestante”.

O Conto da Carochinha — Irônico é que exatamente Olavo de Carvalho — tido como sequaz da extrema-direita pela gente da USP — seja muito mais crítico em relação aos Estados Unidos do que Antonio Negri e Michael Hardt, dois discípulos de Marx que pretendem fazer de Empire o Manifesto Comunista do século XXI. Informa o uspiano André Singer, sem fazer nenhuma ressalva, que o Império norte-americano, para os dois autores, é um poder benigno sobre o mundo. Entre outras coisas porque Negri e Hardt, segundo Singer, defendem a tese de que os Estados Unidos “nunca cultivaram um projeto imperialista”, salvo na colonização das Filipinas, e quando interferiram em outras partes do planeta, sua intenção era apenas resguardar a ordem mundial, em nome de valores como “o equilíbrio, a liberdade, a democracia”. Olavo de Carvalho sustenta o contrário desse conto da carochinha: “A vocação imperial norte-americana não nasceu junto com os Estados Unidos: nasceu antes”. E mostra essa “impressionante escalada” imperialista enumerando desde a ajuda “discreta mas decisiva” que os Estados Unidos deram à Revolução Francesa, em 1793, até a construção do Canal do Panamá, em 1906, passando pela compra da Louisana (1803), a tentativa fracassada de invasão do Canadá (1812), a Doutrina Monroe (1823), a anexação do Texas (1845), a intervenção branca na Califórnia e a guerra com o México (1846), a instalação de ponta-de-lança no Japão (1854), a compra do Alasca (1867), a anexação das Filipinas, a intervenção em Cuba e a guerra com a Espanha (1898).

Mas o que leva dois comunistas a tecerem loas aos Estados Unidos e de um modo aparentemente tão entusiasta que o fazem a quatro mãos? Essa questão já está antecipadamente respondida por Olavo de Carvalho no mesmo livro. Estimulado pelo poeta Bruno Tolentino, que lhe escreveu o prefácio da obra, O Jardim das Aflições nasceu de uma necessidade imperativa — encontrar a razão de uma conferência do filósofo Motta Pessanha parecer-se com uma palestra do neurolingüista Lair Ribeiro. Mas o que poderia ser apenas uma provocação sem maior importância revela-se um empreendimento intelectual de inaudita coragem, que devassa as entranhas do Ocidente desde a Antigüidade Clássica à pós-modernidade contemporânea, num vasto painel de erudição vestida de clareza e argúcia despida de malícia, embaladas, ambas, pela sinfonia de um estilo épico, capaz de abalar chavões da história, sofrear devaneios da filosofia e, sobretudo, fixar a verdade em sua única morada possível — na consciência que introjeta o mundo para melhor exprimi-lo. Se a esquerda brasileira perdoasse o polemista corrosivo do Imbecil Coletivo e buscasse o filósofo sincero do Jardim das Aflições, sem dúvida encontraria em Olavo de Carvalho sua melhor arma contra a globalização que tanto a assusta.

Convencido de que o filósofo José Américo Motta Pessanha — em sua conferência sobre ética no Masp e na direção da série Os Pensadores da Editora Abril — “não havia procurado mostrar o passado, mas moldar o futuro”, apresentando a filosofia como uma contínua “tradição materialista”, de Epicuro a Marx, intercalada por recaídas transcendentes, Olavo de Carvalho se propôs a demonstrar o contrário: “A tradição materialista, se existe, não se constitui de outra coisa senão do amálgama fortuito de negações antepostas, por diferentes indivíduos e por um número indefinido de motivos, a toda e qualquer afirmação do espírito. Ela está, para a densidade contínua da linhagem espiritualista, como os buracos estão para o queijo suíço”. Escrevendo numa dialética em espiral, em que as antíteses ascendem em turbilhão, Olavo de Carvalho amplia seus argumentos até o ponto em que parecem desafiar qualquer síntese, como quando intenta conciliar o alegado materialismo de Karl Marx com o caldeirão espiritualista da Nova Era, e o leitor já sem fôlego, atirado ao buraco negro de crenças em agonia, teme que o filósofo não lhe aponte uma outra cosmovisão capaz de substituir aquela que o catecismo materialista lhe ensinou desde o berço. Mas Olavo de Carvalho não o decepciona e, pouco a pouco, recompõe a história do pensamento ocidental — e o faz virando pelo avesso o mundo das idéias para que ele pare de revirar a realidade do mundo.

Conspiração do Silêncio — É tarefa impossível sintetizar O Jardim das Aflições em míseras páginas de jornal, sem ofuscar a cintilância de seu estilo, a profundidade de suas análises e, sobretudo, a originalidade de suas idéias. Filósofo e escritor, Olavo de Carvalho é melhor compreendido quando desfrutado — sua obra, como a melhor arte, é um amálgama de conteúdo e forma. Mesmo quando se discorda dele, — e é possível discordar de muita coisa do que escreve, — não se pode negar que sua obra viverá por si, porque vivifica quem a lê. Ao contrário de quase tudo o que se produz no pensamento brasileiro, ela não é transplante de idéias nem dissimulação doutrinária: Olavo de Carvalho ousa refletir com a própria cabeça e busca a adesão do leitor com argumentos. Daí o silêncio circundante em relação a tudo o que escreve — combater os possíveis senões pontuais de seu pensamento exigiria a admissão de que ele corrói pela base quase tudo o que se ensina nas escolas brasileiras. É o que faz, por exemplo, no livro O Jardim das Aflições. Afirmando que seu propósito “não é mudar o rumo da História, mas atestar que nem todos estavam dormindo enquanto a História mudava de rumo”, o filósofo começa demostrando o absurdo de se apresentar uma história da ética que elege Epicuro em lugar de Platão e Aristóteles, reduz a filosofia medieval a uma Inquisição que vicejou 200 anos depois dela e faz de uma Idade Moderna falsificada a baliza de toda a humanidade, além de transformar a religião numa variável da equação histórica quando ela é a constante que perpassa todas as épocas e os mais diversos regimes.

Olavo de Carvalho desmonta o Epicuro de José Américo Motta Pessanha, mostrando a inconsistência do epicurismo, mas sustenta que a espécie de ilusionismo filosófico proposta pelo filósofo do jardim sempre ressurge em momentos de crise, como uma fuga ante a realidade adversa. E pinta Motta Pessanha, cassado das cátedras sob a ditadura militar e exilado na Editora Abril onde formulou Os Pensadores, como um retrato dessa fuga, consubstanciada no auditório do Masp em maio de 90, quando uma platéia desiludida com a recente derrota de Lula e ainda oprimida pelo sucesso de Collor rendeu-se à “moral evasionista” do epicurismo, que assustava o próprio Marx, apreciador de Epicuro pela sua “crítica da religião oficial grega e sua mistura –dialética– de teoria e prática”. Mas como conciliar duas acusações diferentes contra o mesmo Motta Pessanha: a evasão epícurea do mundo com a transformação marxista da realidade? — perguntaria o leitor a Olavo de Carvalho. Mas não perguntará, porque é o próprio Olavo de Carvalho quem faz essa indagação a si mesmo, dialeticamente, para melhor respondê-la no Livro III do Jardim das Aflições, intitulado “Marx” (os dois primeiros são, respectivamente, “Pessanha” e “Epicuro, e os dois últimos, “Os Braços e a Cruz” e “Cæsar Redivivus”). Depois de provar que a filosofia de Epicuro é o ancestral da programação neurolingüística de Lair Ribeiro e do “materialismo espiritual” de Marx, Olavo de Carvalho explica a “invulnerabilidade do marxista convicto à argumentação racional”.

Esse argumento é um capítulo à parte, em que Olavo de Carvalho demonstra a tragédia axiológica e o rombo epistemológico que a 11ª tese de Marx contra Feuerbach provoca no homem moderno. Ao criticar a filosofia por limitar-se a interpretar o mundo, convidando os filósofos a transformá-lo, Marx, como demonstra Olavo de Carvalho, incorre numa das censuras morais que dirigiu ao capitalismo — sendo “teoria da ação e não do objeto”, a práxis marxista nega a existência ontológica de gentes e coisas para vislumbrá-las apenas como matéria-prima da revolução. Se no capitalismo o homem ainda é uma “mercadoria”, capaz de resistência ao menos por seu valor de troca, no marxismo o homem se reduz ao barro antes do sopro — isto é, a um nada ontológico nas mãos do demiurgo revolucionário. Esse materialismo, observa o filósofo, só foi possível depois que Nicolau de Cusa divinizou o espaço e Giambattista Vico divinizou o tempo, possibilitando ao homem abdicar de Deus para adorar, respectivamente, a geometria e a história. E ante a empáfia do intelectual moderno, capaz de sustentar a morte de Deus em meio a um oceano de crenças, Olavo de Carvalho esgrime uma argúcia afiada na ironia e compara esses desamparados filhos de Nietzsche com os iorubas e os bantos da África, vendo em sua rendição ao materialismo o mesmo culto tribal à natureza (deuses do espaço) e em sua louvação à história o mesmo culto aos antepassados (deuses do tempo).

Os Sacerdotes do Império — A originalidade de Olavo de Carvalho, como filósofo deste fim de século, não está apenas em refletir sobre o Ocidente a partir do conceito de “Império”, mas também em resgatar a importância de Deus como sujeito da história, demonstrando que a libertação da consciência pessoal, iniciada pela filosofia grega, só foi consumada no cristianismo, herdeiro da cultura judaica, talvez a primeira a escrever a história humana como a história da salvação da alma. Espécie de filosofia grega com apelo de massas, o cristianismo libertou a humanidade do mais despótico dos jugos — aquele do Rei que se acredita Deus e faz do Estado uma religião. Dando a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, o cristianismo conferiu ao homem um destino pessoal transcendente, relativizando o poder temporal do Estado, daí o martírio maciço dos primeiros cristãos, por incomodarem os poderes estabelecidos. Olavo de Carvalho demonstra que todas as religiões anteriores ao cristianismo encarnavam uma cosmovisão religiosa numa estrutura social determinada, não admitindo “qualquer possibilidade de uma verdade exterior à crença coletiva”. Contrariando o materialismo dos livros de história, ele sustenta que foi o cristianismo, encerrando a era do Estado sacerdotal, que possibilitou o verdadeiro nascimento do homem, como um ser autônomo e solitário.

Por isso, a Idade Média e a Escolástica saem do livro redimidas. Olavo de Carvalho demonstra que o homem moderno é quem intenta reconduzir o Estado para o trono de Deus, proposta que Comte deixou explícita em seu Catecismo Positivista. “Se Comte era o Messias da Religião da Humanidade, Hegel foi pelo menos seu São João Batista”, ressalta o filósofo, lembrando que a Revolução Francesa, sob o Terror de Robespierre, tentou fazer do civismo uma forma de beatitude. Os Estados Unidos, por encarnar desde o seu nascimento os ideais iluministas, é o lugar em que se realiza a profecia de Hegel — ele é o supremo Estado leigo que absorve indiferentemente elementos capitalistas e socialistas, impondo “à humanidade a imersão no historicismo absoluto”. Como Negri e Hardt, Olavo de Carvalho também reconhece que o Império pode ser “parcialmente um bem”, uma vez que, além de não suprimir as nações, limitando-se a ordená-las, também garante ao mundo um tribunal universal, capaz de reparar as injustiças de potências intermediárias contra nações pequenas. Mas, se do ponto de vista político, jurídico e até econômico o Império pode ser vantajoso, Olavo de Carvalho finaliza O Jardim das Aflições demonstrando que, “do ponto de vista de suas conseqüências psicológicas, culturais e espirituais”, a ascensão do Império mundial “é uma ameaça tenebrosa”. Ele é a ressurreição de César, a materialização da Religião Civil, a redução do homem a um objeto do Estado — sem Deus algum a quem recorrer.

Ironicamente, os intelectuais de esquerda — como Negri, Hardt e Singer — são os que mais contribuem para essa nova escravidão que se avizinha. Reduzindo todas as religiões a meras ideologias, relativizando todos os valores em nome da liberdade e pregando uma ética leiga que se assenta na opinião pública, eles contribuem para fazer do Estado norte-americano o único tribunal da humanidade. Como vem sustentando Olavo de Carvalho em sua cruzada, a única maneira de evitar essa tragédia é devolver ao homem o direito a uma consciência individual. Ela não é burguesa, como querem os comunistas; é simplesmente divina — aquilo que a matéria tem de humano.