O sr. Marques em quatro poses

Olavo de Carvalho

Zero Hora (Porto Alegre, 5 nov. 2000)

Numa peçazinha difamatória que redigiu ou mandou redigir contra mim, o secretário adjunto da Cultura, Luiz Marques, me chamou de serviçal do neoliberalismo, bufão do jornalismo sensacionalista e pseudofilósofo. Com cada um desses insultos ele se autodenuncia. O primeiro revela sua completa ignorância sobre a pessoa de quem fala, pois dois dias antes de sair seu artigo apareci na RBS dizendo contra o neoliberalismo coisas que nem ele nem ninguém no seu partido teria jamais a coragem de dizer. E não a teria por um motivo muito simples: metade do programa da esquerda brasileira – quotas raciais, casamentos gays, desarmamento civil, etc. – é traslado fiel e servil das leis que a Nova Ordem Mundial impõe aos países do Leste Europeu como condição para lhes dar ajuda econômica. A neoburocracia global paga a entidades como o PT para que lhe movam uma falsa oposição ante populações desinformadas, do outro lado do mundo, criticando-a em detalhes econômicos para melhor servi-la no todo, ludibriando a opinião pública. Quem é, pois, o serviçal? É o Olavo de Carvalho ou é o PT quem embolsa as verbas das Fundações Ford e Rockefeller, da CEE e de outros organismos internacionais?  O segundo insulto não se dirige a mim, mas à “Zero Hora”. O sr. Marques tem a suprema inépcia de chamar “sensacionalista” ao próprio órgão de imprensa que estampa seu artigo. E depois não quer que a gente diga que é burro.  Por fim, ele me diz “pseudofilósofo”. Será que ele imagina mesmo que seu julgamento vale alguma coisa, nesses domínios? Será ele tão bobo ao ponto de se crer habilitado a discernir, com sua culturinha de bolso, quem é e quem não é filósofo? Será mesmo que me imagina disposto a discutir minhas qualificações de filósofo com um sujeito cuja única realização no campo da cultura é fazer tocar no rádio umas cançõezinhas assassinas (assassinas da estética e assassinas no seu apelo ao morticínio revolucionário)? Ora, sr. Marques! Da cultura universal, tudo o que o senhor conseguiu pegar foi uma secretaria adjunta. Pois então, sr. secretário, vá secretariar, vá atender telefones, vá bater carimbo, que são coisas mais à altura da sua cultura filosófica, e não se meta em assunto de gente grande, está bem?  E cuidado para não errar o lado do carimbo, acertando a própria testa como fez com o rótulo de “neoliberal”.

Mas o sr. Marques ainda coloca no seu artigo um quarto detalhe, bem curioso. Ele diz surpreender-se de que alguém possa ser liberal sem enrubescer. Já a mim não me surpreende que o sr. Luiz Marques, ou qualquer outro como ele, seja socialista sem enrubescer. Não me surpreende que socialistas façam o que quer que seja sem enrubescer. Não me surpreende que matem cem milhões de pessoas sem enrubescer. Não me surpreende que reduzam um quinto da população da terra ao trabalho escravo sem enrubescer. Não me surpreende que, depois de revelados todos os crimes hediondos que durante décadas buscaram ocultar, ainda se apresentem em público, sem enrubescer, dizendo que foi tudo um ligeiro equívoco, que vão começar outra vez e que agora a coisa vai ser uma beleza. Muito me surpreenderia é que enrubescessem.  Pudor, consciência moral, arrependimento jamais foram o forte dessa ideologia, que se especializou em primeiro matar, depois caluniar a vítima e por fim parasitar o prestígio dela, apresentando-se como sua mais velha e leal amiga.

O sr. Olívio Dutra, por exemplo, proclama que socialismo e cristianismo são amicíssimos, são carne e unha, são quase a mesma coisa. Pois não é incrível? Como foi que os inventores do socialismo nunca se deram conta disso? “Expulsar Deus!”, exclamou Marx. “Varrer o cristianismo da face da Terra”, ordenou Lênin. “A Igreja Católica é o inimigo número um”, assegurou Gramsci. E não ficaram nas palavras: na mais modesta das contagens, os socialistas mataram trinta milhões de cristãos, nas ondas de perseguição religiosa que acompanharam as revoluções francesa, mexicana, russa, espanhola e cubana. Não é incrível que  trucidassem tanta gente, pensando liquidar inimigos, só porque Olívio Dutra não estava lá para avisá-los de que socialismo e cristianismo eram a mesma coisa?

Se ele avisasse, é verdade, não teriam acreditado, porque Cristo dissera que ser cristão era morrer por seus amigos, enquanto o socialismo pregava que seus militantes deveriam tornar-se, nas palavras de Che Guevara, “eficientes e frias máquinas de matar”. Mas, depois de dar cabo dos cristãos, o socialismo acabou percebendo o potencial publicitário do seu discurso religioso. Como os mortos não falam, passou a usá-lo sem que ninguém protestasse. Aí o mundo estava maduro para o advento de Olívio Dutra.

Hitlers em penca

Olavo de Carvalho


Época, 5 de novembro de 2000

Para milhões de brasileiros, o irracional tornou-se um direito e um motivo de orgulho

Numa carta recém-publicada em ÉPOCA, o remetente, após admitir que não compreendia nem meu vocabulário, nem meus argumentos, passava, com a mais cândida naturalidade, a opinar sobre minhas idéias num tom de absoluta segurança.

Eu gostaria de poder dizer que esse homem é um louco, um anormal. Não posso. No padrão atual de nossas classes alfabetizadas, sua conduta se tornou não apenas normal, mas obrigatória. Não é sintoma de maluquice individual: é sinal dos tempos. A total ignorância, a radical desorientação já não constituem, para o brasileiro legente, motivo razoável para refrear a volúpia de opinar, de julgar, de condenar ou aplaudir. A exigência de compreender é que se tornou abusiva, suspeita, intolerável.

Mas não é só isso. Quanto menos um brasileiro conhece um assunto, quanto menos tem a condição de pensar com independência, quanto mais, portanto, está reduzido a confiar cegamente em frases feitas, tanto mais se sente livre e senhor de si ao repeti-las e ao impugnar com veemência feroz o que lhe pareça contradizê-las.

E se, com a maior paciência, o interlocutor lhe demonstra ponto por ponto que tem razão, o ouvinte, ao ver-se compelido pelo peso das provas a admitir a conclusão que não deseja, se julga oprimido por uma imposição tirânica, injusta, arbitrária. Expulsa da alma, a razão é vivenciada como força externa hostil, inimiga do eu e da liberdade. Chegamos, pois, à completa inversão: a obediência automática a um ídolo amado tornou-se liberdade racional, a argumentação e a prova tornaram-se repressão autoritária. Autoridade é razão, razão é autoridade.

Eu gostaria de poder atribuir esse estado de coisas à pouca instrução. Não posso. Só as pessoas muito pobres, analfabetas ou quase, conservam o senso natural da diferença entre saber e não saber, entre anuência racional e crença cega. Nas classes média e alta esse senso foi desativado, precisamente, pela instrução: o tipo de instrução que não visa fazer do homem um sábio, um técnico, um trabalhador qualificado, mas um militante. Aquele que a recebe sente orgulho: imagina-se um “deserdado da terra” que ergueu a cabeça. Mas essa auto-explicação é pura fantasia. Um universitário não é um “deserdado da terra”. Seu orgulho, sua obscena alegria têm outra fonte. Sua vitória não foi sobre os privilegiados (pois ele próprio é um deles): foi sobre a insegurança que advém da consciência de não saber. Ressentindo-a como humilhação insuportável, ele aprendeu a vencê-la – mas não por uma longa e árdua busca de conhecimento. Aprendeu a sufocá-la pelo meio mais fácil: a repressão da consciência, substituída pelo embriagante sentimento de pertencer à multidão dos que “fazem História”. Estes não precisam “saber”. São superiores ao conhecimento. Não querem compreender, mas “transformar”. Por isso se sentem livres quando marcham ao som de slogans e palavras de ordem, escravos quando intimados a parar para pensar. Por isso seu discurso contra a opressão do mundo soa tão falso: é racionalização política de uma auto-exaltação vaidosa, é pretexto edificante de uma sórdida farsa interior.

Eu gostaria de poder resumir esse fenômeno sob o nome de “fanatismo”. Não posso. Nem todo fanatismo destrói a consciência. Esse é algo mais: é um fanatismo de sociopatas. E é a essa multidão de pequenos Hitlers que estamos confiando os destinos morais do país.

A verdadeira direita

Olavo de Carvalho


O Globo, 5 de novembro de 2000

Se nas coisas que escrevo há algo que irrita os comunas até à demência, é o contraste entre o vigor das críticas que faço à sua ideologia e a brandura das propostas que lhe oponho: as da boa e velha democracia liberal. Eles se sentiriam reconfortados se em vez disso eu advogasse um autoritarismo de direita, a monarquia absoluta ou, melhor ainda, um totalitarismo nazifascista. Isso confirmaria a mentira sobre a qual construíram suas vidas: a mentira de que o contrário do socialismo é ditadura, é tirania, é nazifascismo.

Um socialista não apenas vive dessa mentira: vive de forçar os outros a desempenhar os papéis que a confirmam no teatrinho mental que, na cabeça dele, faz as vezes de realidade. Quando encontra um oponente, ele quer porque quer que seja um nazista. Se o cidadão responde: “Não, obrigado, prefiro a democracia liberal”, ele entra em surto e grita: “Não pode! Não pode! Tem de ser nazista! Confesse! Confesse! Você é nazista! É!” Se, não desejando confessar um crime que não cometeu, muito menos fazê-lo só para agradar a um acusador, o sujeito insiste: “Lamento, amigo, não posso ser nazista. No mínimo, não posso sê-lo porque nazismo é socialismo”, aí o socialista treme, range os dentes, baba, pula e exclama: “Estão vendo? Eis a prova! É nazista! É nazista!”

Recentemente, cem professores universitários, subsidiados por verbas públicas, edificaram toda uma empulhação dicionarizada só para impingir ao público a lorota de que quem não gosta do socialismo deles é nazista. Não se trata, porém, de pura vigarice intelectual. A coisa tem um sentido prático formidável. Ajuda a preparar futuras perseguições. Consagrado no linguajar corrente o falso conceito geral, bastará aplicá-lo a um caso singular para produzir um arremedo de prova judicial. Para condenar um acusado de nazismo, será preciso apenas demonstrar que ele era contra o socialismo. Hoje esse raciocínio já vale entre os esquerdistas. Quando dominarem o Estado, valerá nos tribunais. Valerá nos daqui como valeu nos de todos os regimes socialistas do mundo.

Intimidados por essa chantagem, muitos liberais sentem-se compelidos a moderar suas críticas ao socialismo. Mas isso é atirar-se na armadilha por medo de cair nela. Já digo por que.

Socialismo é a eliminação da dualidade de poder econômico e poder político que, nos países capitalistas, possibilita – embora não produza por si — a subsistência da democracia e da liberdade. Se no capitalismo há desigualdade social, ela se torna incomparavelmente maior no socialismo, onde o grupo que detém o controle das riquezas é, sem mediações, o mesmo que comanda a polícia, o exército, a educação, a saúde pública e tudo o mais. No capitalismo pode-se lutar contra o poder econômico por meio do poder político e vice-versa (a oposição socialista não faz outra coisa). No socialismo, isso é inviável: não há fortuna, própria ou alheia, na qual o cidadão possa apoiar-se contra o governo, nem poder político ao qual recorrer contra o detentor de toda riqueza. O socialismo é totalitário não apenas na prática, mas na teoria: é a teoria do poder sintético, do poder total, da total escravização do homem pelo homem.

A formação de uma “nomenklatura” onipotente, com padrão de vida nababesco, montada em cima de multidões reduzidas ao trabalho escravo, não foi portanto um desvio ou deturpação da idéia socialista, mas o simples desenrolar lógico e inevitável das premissas que a definem. É preciso ser visceralmente desonesto para negar que há uma ligação essencial e indissolúvel entre elitismo ditatorial e estatização dos meios de produção.

O socialismo não é mau apenas historicamente, por seus crimes imensuráveis. É mau desde a raiz, é mau já no pretenso ideal de justiça em que diz inspirar-se, o qual, tão logo retirado da sua névoa verbal e expresso conceitualmente, revela ser a fórmula mesma da injustiça: tudo para uns, nada para os outros.

Porém, no próprio capitalismo, qualquer fusão parcial e temporária dos dois poderes já se torna um impedimento à democracia e ameaça desembocar no fascismo. Não há fascismo ou nazismo sem controle estatal da economia, portanto sem algo de intrinsecamente socialista. Não foi à toa que o regime de Hitler se denominou “socialismo nacional”. Stalin chamava-o, com razão, “o navio quebra-gelo da revolução”. Por isso os socialistas, sempre alardeando hostilidade, tiveram intensos namoros com fascistas e nazistas, como nos acordos secretos entre Hitler e Stalin de 1933 a 1941, na célebre aliança Prestes-Vargas etc. Já com o liberalismo nunca aceitaram acordo, o que prova que sabem muito bem distinguir entre o meio-amigo e o autêntico inimigo.

Por isso mesmo, é uma farsa monstruosa situar nazismo e fascismo na extrema-direita, subentendendo que a democracia liberal está no centro, mais próxima do socialismo. Ao contrário: o que há de mais radicalmente oposto ao socialismo é a democracia liberal. Esta é a única verdadeira direita. É mesmo a extrema direita: a única que assume o compromisso sagrado de jamais se acumpliciar com o socialismo.

Nazismo e fascismo não são extrema-direita, pela simples razão de que não são direita nenhuma: são o maldito centro, são o meio-caminho andado, são o abre-alas do sangrento carnaval socialista. Os judeus, perseguidos em épocas anteriores, podiam usar do poder econômico para defender-se ou fugir: o socialismo alemão, estatizando seus bens, expulsou-os desse último abrigo. Isso seria totalmente impossível no liberal-capitalismo. Só o socialismo cria os meios da opressão perfeita.

Não, a crítica radical ao socialismo não nos aproxima do nazifascismo. O que nos aproxima dele é uma crítica tímida, debilitada por atenuações e concessões. E essa, meus amigos, eu não farei nunca.