Ética sociopática

Olavo de Carvalho

Época, 18 de novembro de 2000

Maquiavelismo revolucionário camuflado em luta pela ética faz mal à saúde moral do país

Outro dia escrevi que Fidel Castro começara sua carreira assassinando um político qualquer só para cavar favores de um inimigo da vítima. Alguém replicou, indignado, que não era justo polemizar contra o regime cubano mediante “ataques à vida pessoal” de seu representante. Estão vendo por que digo que o atual esquerdismo brasileiro não é um fanatismo simples, mas um fanatismo de sociopatas? O simples fanático não chega ao desvario de proclamar que um homicídio político é puro assunto de foro íntimo do homicida, sem peso no julgamento de seu desempenho de homem público. Para tanto é preciso que ele tenha sacrificado no altar de sua fé o último vestígio de discernimento ético. Fanatismo, por si, não implica dessensibilização moral. Essa é, em contrapartida, a definição mesma da sociopatia.
Não se trata, evidentemente, de sociopatia individual e espontânea, mas coletiva e induzida. Milhões de brasileiros estão se deixando reduzir à completa obtusidade pela prostituição de seu senso ético a uma formidável mentira eleitoral. Um partido que, em seus planos estratégicos, se propõe implantar no país um regime comunista de tipo cubano, mas em sua propaganda escamoteia esse dado essencial e vende uma imagem ideologicamente inócua de probidade administrativa, está, com toda a evidência, introduzindo um grave desvio de foco nas discussões públicas. O PT, de fato, parece ter menos corruptos que os outros partidos. Ao sugerir, porém, que essa diferença o torna especialmente apto a governar com lisura num regime democrático, ele omite que ela é apenas um subproduto da disciplina revolucionária voltada à destruição desse regime. Todo partido revolucionário é, nesse sentido aparente, “honesto”: não porque respeite as leis e a ordem, mas porque os rigores da guerra contra a lei e a ordem não lhe permitem o luxo de sacrificar a estratégia geral a ambições individuais. Ele não pode dizer isso em público, mas pode se aproveitar dessa mesma circunstância para fazer da luta em favor da moral a mais perfeita camuflagem de uma radical insinceridade. Não foi à toa que Antonio Gramsci fez do partido revolucionário a nova encarnação do Príncipe de Maquiavel.

Falando em nome dos mais altos anseios éticos, usando de sua falsa identidade até mesmo como instrumento de chantagem psicológica para instilar sentimentos de culpa nos eleitores que votassem contra ele, o bem-sucedido discurso petista ficou muito abaixo, não digo das injunções superiores de uma ética de virtudes, mas das exigências mais comezinhas do Código de Defesa do Consumidor.

Nunca, na história psicológica deste país, uma estratégia tão visceralmente fraudulenta logrou colocar a seu serviço, mediante propaganda enganosa, os sentimentos mais nobres e elevados de tantos eleitores. Nunca aquilo que há de melhor na alma dos cidadãos foi tão maquiavelicamente usado, desvirtuado, prostituído.

Corruptio optimi pessima: não há improbidade administrativa que possa se comparar, na malignidade de seus efeitos profundos, a essa propositada deformação da inteligência moral de um povo. Não espanta, pois, que pessoas submetidas a tamanha deseducação acabem se estupidificando a ponto de julgar que homicídios políticos sejam detalhes da vida pessoal, inaptos a manchar no mais mínimo que seja uma bela carreira de homem público.

Precauções de leitura

Olavo de Carvalho

O Globo, 18 de novembro de 2000

Uma grande bobagem que você pode fazer ao estudar a história das idéias filosóficas é compará-las umas às outras no mesmo plano, como teorias científicas ou visões da realidade, diferentes apenas segundo o ponto de vista adotado, os talentos pessoais de seus criadores e a mentalidade das épocas.

Muitas doutrinas famosas não são de maneira alguma teorias sobre a realidade, nem tiveram jamais a pretensão de sê-lo. Surgidas no bojo de grandes projetos de ação política, são ficções propositais calculadas para produzir impressões na opinião pública e predispô-la às condutas que se supõem adequadas à consecução desses projetos. São, no sentido mais estrito, informação estrategicamente manipulada. Não se destinam a diagnosticar, descrever ou compreender a realidade, mas a produzi-la – ou melhor, a produzir uma falsa realidade que atue sobre a realidade efetiva, no mesmíssimo sentido em que um falso rumor de traição conjugal, soprado aos ouvidos de um marido ciumento, pode induzi-lo a um crime passional de verdade.

Não são teorias: são atos políticos. Discuti-las como teorias pode ser útil apenas para desmascarar a falsa identidade científica que se arrogam, mas, precisamente, esse desmascaramento não pode ser feito sem um conhecimento prévio do projeto que encobrem e que ocultamente as modela.

Uma precaução elementar no estudo de qualquer doutrina é averiguar se seu autor corresponde ao tipo do homo theoreticus, do estudioso sincero que irá às últimas conseqüências na investigação da verdade, pouco importando a quem favoreçam ou desfavoreçam os resultados de suas investigações, ou se, ao contrário, é um líder, um chefe, um homem de ação e revolucionário interessado em transformar o mundo. Neste último caso, a hipótese de que a verdade objetiva prevaleça em seu pensamento é uma casualidade que pode se dar aqui ou ali, em afirmações parciais, mas que no conjunto deve ser considerada improvável e remota.

Há, evidentemente, o caso intermediário do educador, que é homem de ação e produz teorias. A diferença é que a ação do educador visa a transformar almas individuais – as de seus alunos atuais e virtuais – e não o Estado, as leis e a sociedade, pelo menos de maneira direta e intencional. Esse tipo de ação não só é compatível com a fidelidade ao saber objetivo, mas de certo modo a exige.

Até certo ponto, todo filósofo é um educador e não pode deixar de sê-lo. Idêntica observação pode-se fazer, mutatis mutandis, quanto ao “médico de almas”, que é um tipo especial de educador.

Há também a possibilidade de que o autêntico homem de saber, em certas circunstâncias, tome posição em questões políticas específicas, sem comprometer-se num plano de reforma do mundo que chegue a determinar, por si, os princípios de sua doutrina. Se esse é o caso, suas opções políticas refletirão sua orientação teórica geral (ou as mudanças dela), e não ao inverso.

Mas, feitas estas ressalvas, vigora a distinção entre o homo theoreticus e o homo politicus. A noção marxista de ideologia, com sua hipótese pueril de que todas as idéias têm, por igual, objetivos políticos inconfessados, só serviu para obscurecer essa distinção, que não obstante continua indispensável.

Platão, por exemplo, é caracteristicamente homo politicus. Na sua famosa “Carta sétima”, ele admite que o objetivo de sua obra é a reforma do Estado. Mas não seria preciso isso para alertar-nos da conveniência de ler os seus escritos não como descrições da realidade, e sim como montagens de uma realidade postiça que ele quer impingir a seus discípulos em vista de um resultado. Como autor de um projeto político, Platão não deve ser julgado só pelo teor intelectual de suas idéias, mas segundo a elevação das intenções, a lisura dos métodos e o caráter útil ou danoso dos resultados de sua ação na História.

Se não fosse por isso, certas argumentações capciosas que ele atribui a Sócrates — e que não teriam o menor sentido justamente no contexto de uma disputa entre o novo espírito de rigor socrático e o arsenal consagrado de prestidigitações sofísticas que ele pretende desmascarar – teriam de ser explicadas como lapsos de lógica ou como mentiras gratuitas.

A primeira hipótese deve ser afastada porque muitos desses erros são demasiado grosseiros para alguém que não podia ignorar os critérios dialéticos que, na sua própria academia, já vinham sendo ensinados por um seu discípulo (Aristóteles). A segunda faria de Platão um leviano indigno de atenção.

Platão, pois, quando mente, tem algo em vista, como é próprio dos políticos, e muitos de seus erros são mentiras propositais. Isto deve ser levado em conta na interpretação da sua obra, enquanto a de Aristóteles se coloca mais na pura dimensão teorética e pode ser compreendida de maneira mais literal. Quando ele diz algum absurdo (y que los hay, los hay), é simples erro científico, que pode danificar em mais ou em menos o conjunto do sistema, mas não requer a sondagem de motivações ocultas.

Mas, se tais precauções são indispensáveis no estudo dos clássicos, quanto mais não o seriam no da produção científica de uma época em que praticamente toda a classe acadêmica vive a soldo de governos, serviços secretos, partidos políticos, ONGs e outras organizações decididas a moldar o mundo? Nessa época, a autoridade intelectual em estado puro é tão rara quanto o puro heroísmo ou a pura santidade. A quota de ação política embutida na produção acadêmica é tão imensa que, num impressionante número de casos, a leitura de teses universitárias só é proveitosa para técnicos em informação estratégica, aptos a identificar e neutralizar, nelas, o elemento de desinformação. Para os demais, é apenas auto-intoxicação mental.

René Girard e a coletividade homicida

Olavo de Carvalho

17 de novembro de 2000

Transcrição de intervenção na mesa-redonda em torno do pensamento de René Girard, realizada no anfiteatro da UniverCidade (Rio de Janeiro), 17 de novembro de 2000.

          Depois do que o Prof. Girard nos ensinou, não temos mais o direito de ser ingênuos sobre nossas crenças, sobre a ética, o bem e o mal etc. O Brasil há mais de dez anos está envolvido numa espécie de discurso ético purgativo, segundo o qual acredita-se que com a punição dos corruptos tudo ficará bem. E isso está tão evidentemente relacionado com o rito sacrificial do bode expiatório que eu gostaria de sugerir que aproveitássemos a presença do Prof. Girard entre nós como uma oportunidade para meditarmos a onda moralizante brasileira à luz dos seus ensinamentos: não estaríamos procurando apenas mais um pretexto edificante para a violência e a perseguição?

          Mas eu desejaria também colocar um outro problema, de ordem teórica, que me atormenta desde que li alguns dos livros do Prof. Girard. É o seguinte: evidentemente, existe nas religiões essa constante que ele assinalou desde o início das suas investigações, que é o elemento sacrificial, porém há também outras constantes. Uma delas é a presença da linguagem simbólica. Não houve nenhuma religião que viesse ao mundo inicialmente sob a forma de uma doutrina logicamente exposta, de um sistema lógico-doutrinal. Ao contrário, pode-se desenvolver um sistema lógico-doutrinal ao longo do tempo, mas a forma inicial de representação da religião é sempre uma narrativa ou um poema simbólico, seja composto de elementos fictícios ou de acontecimentos reais — como a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo — fortemente carregados de simbolismo. O que caracteriza esse elemento simbólico é o fato de ele poder ser compreendido em diferentes níveis, que guardam entre si uma ligação analógica. Quando tomamos o conjunto das narrativas e símbolos de uma religião, podemos ver ali ou o esquema da ordem da sociedade ou o esquema da ordem da alma, do mundo interior do indivíduo humano. Nesta última hipótese, temos a perspectiva que se aproximaria mais da mística ou do “esoterismo”, e na primeira, temos uma perspectiva legalística, “exotérica”, da autoridade religiosa, das regras morais e da construção do Estado. Ora, conforme encaramos esse conjunto sob um aspecto ou sob o outro, obtemos, às vezes, sentidos inversos. Por exemplo, num aspecto místico, de busca de uma perfeição espiritual pelo indivíduo, aquilo que corresponde à ascese ou à alquimia interior, seria exatamente aquilo que no plano social, no plano coletivo, corresponderia justamente à matança, ao genocídio. Isto é muito nítido no Baghavad-Gitâ, ou na narrativa bíblica das guerras judaicas: o que, na ordem dos fatos exteriores, é violência e morticínio, na ordem interior é ascese, autodomínio espiritual, vitória sobre as paixões violentas. Na religião islâmica, há uma série de práticas interiores das ordens místicas, que têm pouco a ver com as obrigações legais e rituais da religião coletiva, mas se destinam a utilizar a substância das paixões mais inferiores, mais violentas, como matéria-prima que, queimada no forno, no altar da prática mística, se converterá em virtude, em conhecimento espiritual, naquele sentido em que é possível dizer, com Sto. Agostinho, que as virtudes são feitas da mesma matéria dos vícios: partindo dos vícios, tomando-os como matéria-prima e queimando-os no forno da meditação e da concentração, o pecado se substitui pela graça. Quando abandonamos esse nível interior e rebatemos isso para o plano da sociedade, aí entramos em plena matança dos inocentes, em plena perseguição do bode expiatório.

          Para colocar esse problema de maneira mais clara, eu vou sugerir a leitura comparativa de dois livros: um é do próprio Prof. Girard, que é O Teatro da Inveja, o qual interpreta toda a obra de Shakespeare à luz da teoria do desejo mimético, da inveja e do bode expiatório; o outro livro, que interpreta a obra de Shakespeare no sentido interior e místico, é o de Martins Lings, que se chama The Secret of Shakespeare. São as duas melhores obras que já se escreveram sobre Shakespeare. As interpretações que elas nos apresentam são radicalmente diferentes e se colocam em planos distintos, mas pessoalmente não vejo antagonismo entre elas. Vejo uma complementaridade justamente quando, passando do nível interior para o nível exterior, coletivo ou político, saímos do espírito que vivifica para a letra que mata, isto é, passamos da abordagem místico-ascética (Lings) para a abordagem ritualístico-sacrificial (Girard). É justamente o aspecto da letra exterior que corresponde ao território abrangido por este esplêndido estudo do Prof. Girard, A perseguição. O que eu gostaria de saber é como é que ele articula esses dois planos, se é que essa comparação já lhe ocorreu. O tema, em si, é de importância extraordinária e nos lança no núcleo mais vivo, mais explosivo do problema da interpretação das criações culturais: como é que aquilo que de um lado significa a matança dos inocentes pode, por outro lado, significar o sacrifício do eu, do egoísmo e das paixões violentas? O próprio Prof. Girard insinua uma solução ao dizer que o coletivo é assassino por natureza, afirmação que devemos articular com a lição de Sto. Agostinho, de que a verdade que salva habita no interior do homem. Essa articulação abre perspectivas para a compreensão do caráter intrinsecamente anti-espiritual e homicida de todo coletivismo, eternamente em guerra contra o reino interior, o reino de Cristo. Pois o reino de Cristo é, essencial e inseparavelmente, o resgate da vítima sacrificial e a afirmação do primado da interioridade.