Direito de resposta

Olavo de Carvalho


Época, 23 de dezembro de 2000

Não preciso de espaço extra para revidar os insultos: o senhor Pinto está no elenco de meu show

Desde o afastamento de Roberto Campos, sou o único anticomunista assumido que escreve regularmente em jornais e revistas de alcance nacional: os demais, que não são muitos, estão confinados no gueto das publicações regionais. Do outro lado, o espaço divide-se generosamente entre a multidão de comunistas, socialistas, centro-esquerdistas e meia dúzia de liberais timoratos, que se atêm à argumentação econômica para não ferir os melindres da maioria prepotente que se arroga o monopólio nacional das lágrimas. Tanto minha voz é solitária e destoante que chama a atenção precisamente por isso.

Como se o combate já não estivesse desigual o bastante, ainda me aparece esse tal senhor Pinto (ÉPOCA de 18 de dezembro) para verberar como injusto “privilégio” a página semanal que aqui ocupo e solicitar o rateio mensal dela com outros articulistas ”mais honestos”, categoria na qual ele próprio se inclui por absoluta falta de autoconsciência.

Que consciência de si, com efeito, há num indivíduo que, anunciando impugnar minha afirmativa de que a fé esquerdista é em geral uma opção adolescente reiterada na idade madura, oferece como argumento uma história pessoal que é a ilustração ipsis litteris dessa afirmativa?

Que domínio dos próprios atos possui o acusador que, chamando-me desonesto, tendencioso e manipulador, não apenas se esquece de tentar prová-lo, mas se abstém de dar um só exemplo, por duvidoso e remoto que seja, dos procedimentos que me imputa, e se torna assim, às tontas, réu confesso de crime de difamação?

Que governo de seu próprio pensamento possui o alucinado que, tendo alegado a desonestidade de um autor, gasta o resto de seu arrazoado falando das virtudes e dos defeitos de outro autor, como se deles fosse possível inferir algo sobre a conduta supostamente péssima do primeiro?

Jurando não ser marxista, e ostentando para prová-lo os emblemas convencionais de antistalinismo (infalíveis hoje em qualquer comunista que se preze), ele acaba apelando, para explicar a violência soviética, à tradicional alegação maoísta de que a URSS não se livrou de seu “resíduo burguês”, como se essa tolice não fosse ortodoxamente marxista e como se o tirano chinês que a inventou não houvesse matado três vezes mais gente que Stalin, exorcizando Belzebu não em nome de Satanás, mas de três satanases.

Zonzo e desencontrado, o senhor Pinto proclama ainda que certas asserções minhas “não correspondem aos fatos” – mas não diz sequer quais são elas. E os únicos fatos que arrola são dados corriqueiros sobre a vida de Karl Marx, jamais contrariados ou nem sequer aludidos por mim. Nunca vi uma coisa dessas: desmentir uma asserção desconhecida… por meio de outra que não vem ao caso.

Definitivamente, esse sujeito não se enxerga, não se entende, não sabe onde está e não sabe de quem fala quando se refere a si mesmo.

Seu artigo, inaceitável mesmo a título de redação escolar, é um ensaio de psitacismo, o tatibitate de um louco que, enraivecido contra o que não compreende, atira a esmo frases feitas no ar.

ÉPOCA só pode ter publicado essa coisa por uma efusão de generosidade natalina para com o senhor Pinto, criatura humilde que não aspira a ser Paulo Francis, mas apenas à quarta parte de Olavo de Carvalho. Em todo caso, esse gesto caritativo me forneceu, na pessoa de meu exótico antagonista, um exemplo vivo do que expliquei em 11 de dezembro sobre uma classe letrada cuja linguagem denota seu estado de catastrófica auto-alienação. A papagaiada feroz do senhor Pinto não requer, pois, resposta em separado: ela está rigorosamente na pauta desta coluna.

Lembrete de Natal

Olavo de Carvalho


O Globo, 23 de dezembro de 2000

A coincidência do Natal e do Eid-al-Fitr (fim do jejum) muçulmano é uma ocasião para lembrar que os pontos de contato entre as religiões cristã e islâmica – e também a judaica – vão muito além do que as fórmulas de bom-mocismo ecumênico podem sugerir.

Se há uma lição definitiva a tirar do estudo das religiões comparadas é que elas são incomparáveis: não são espécies do mesmo gênero, que possam ser avaliadas uma pela outra. São manifestações irredutíveis – e irredutivelmente diversas – de uma luz intelectual supra-humana que, derramando-se sobre objetos diferentes, produz diferentes refrações. A comparação, aí, só pode tomar duas direções: ou o confronto estéril do inconfrontável, ou a simples inspiração que nos leva a erguer os olhos para a fonte comum, quer a imaginemos como motor imóvel ou como a fonte eternamente silenciosa de todo Verbo.

Por isso o estudo comparativo das religiões, quando toma a forma do confronto de doutrinas prontas, desemboca na disputa dos teólogos – e esse tipo de discussão, dizia o profeta Maomé, leva indiscutivelmente ao inferno. Muito mais frutífera é a aproximação dos símbolos, que dizem a mesma coisa em linguagens diversas, mas de tal modo que a mente, ao apreender a comunidade de sentido entre elas, não pode traduzi-la numa terceira. Compreendida como disciplina contemplativa, a ciência dos símbolos sacros é uma introdução à clareza do indizível.

Talvez ainda mais significativa que a coincidência do Natal com o Eid-al-Fitr seria a aproximação dele com a Laylat-al-Qadr, a noite em que o Corão “desce” dos céus ao coração do profeta. Maomé é o analfabeto que, no silêncio da noite, recebe em ditado angélico o mais belo livro da língua árabe, livro que transcende as propriedades do idioma ao ponto de sua recitação em voz alta afetar os animais, que se detêm para ouvi-la. É também à noite que a Virgem, fecundada pelo Espírito, dá à luz a mais nobre das criaturas humanas, indistinguível do Criador mesmo. A analogia entre esses dois sublimes paradoxos é evidente. E, enquanto os teólogos disputam nas trevas, cotejando Cristo a Maomé, a narrativa, em si, é “luz sobre luz”: Maomé não corresponde a Cristo, mas a Maria, o portador humano do Verbo divino; Cristo não é Maomé, é o Verbo divino, o Logos, Kalimat’ullah.

O espírito sopra onde quer, da forma que quer. Como diz o Corão, “há nisto um sinal, para os que entendem”. Isso não quer dizer que o Papa esteja errado ao afirmar que o cristianismo é a única via de salvação. Como poderia estar errado, se o conceito mesmo de “via de salvação” não se aplica ao Islã ou ao judaísmo? O judaísmo é a lei, a constituição divino-histórica do povo eleito, não a via de salvação para as almas individuais, para os pecadores errantes e ovelhas desgarradas. E a palavra mesma “religião” não corresponde ao árabe din, que assim se traduz erroneamente. Din é o modo natural e primordial do ser social humano, a constituição civil da sociedade sacra – algo sem correspondência no evangelho, onde Deus fala às almas individuais, alheio e indiferente ao que é de César.

Como, pois, comparar essas dimensões diferentes, achatando-as no confronto doutrinal do certo e do errado?

As religiões, simplesmente, não falam da mesma coisa. É preciso ter compreendido isto para atinar que é a mesma Voz que fala por meio de todas elas. Os conflitos correm por conta da incompreensão humana, angustiada pelos seus esforços vãos de reduzir à unidade doutrinal algo que não é doutrina, mas que é a Presença mesma. O próprio Corão ensina-nos o limite dessas especulações, e adverte judeus, cristãos e muçulmanos: “Concorrei na prática do bem, que no juízo final Nós dirimiremos as vossas divergências.”

Reale ante os medíocres

 

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 21 de dezembro de 2000

Ao longo dos últimos anos, Miguel Reale raramente foi mencionado nos jornais ou na tevê sem que viesse à baila, de novo e de novo, obsessivamente, sua ligação de juventude com o integralismo. Recentemente, nas comemorações de seus 90 anos, o grande jurista e filósofo foi submetido mais algumas vezes a esse ritual humilhante e insensato.

O integralismo foi um fascismo abrandado e inofensivo, um ultranacionalismo sem racismo, que celebrava a glória de índios, negros e caboclos. Entre os líderes do movimento havia, é verdade, um anti-semita declarado, o excêntrico historiador e cronista Gustavo Barroso, maluco não desprovido de talento, várias vezes presidente da Academia Brasileira. Mas, quando começou para valer a perseguição aos judeus na Alemanha e todos os bem-pensantes do mundo fizeram vistas grossas, foi do chefe supremo do integralismo, Plínio Salgado, que partiu uma das primeiras mensagens de protesto que chegaram à mesa do Führer (e na certa foi direto para o lixo). Se os educadores deste país tivessem vergonha na cara, esse feito quixotesco seria alardeado com orgulho em todas as escolas – não por seus efeitos políticos, que foram nulos, mas como símbolo do espírito de um povo que nunca deixou seus melhores sentimentos serem sacrificados no altar de fanatismos ideológicos.

Em vez disso, tratamos de escondê-lo, para dar a criaturas inocentes e honradas o ar sinistro de cúmplices de Hitler. Fazemos isso sob a inspiração de educadores e intelectuais comunistas, que precisam mentir e caluniar o tempo todo para disfarçar a co-autoria comunista de muitos dos crimes do nazismo entre 1933 e 1941.

Os escritos de Plínio hoje nos parecem melosos e de um hiperbolismo delirante. Politicamente, seu único pecado é a completa tolice. Moralmente, são inatacáveis. Ademais, o integralismo era católico – e sob o nazismo os católicos, convém não esquecer, eram o terceiro grupo na lista dos candidatos ao campo de concentração, depois dos judeus e dos politicamente inconvenientes (v. Robert Royal, Catholic Martyrs of the XXth Century, New York, Crossroad, 2000).

Que vergonha existe em ter seguido esse líder? Nenhuma, evidentemente.

Porém, se um homem é induzido a explicar isso de novo e de novo e de novo, como um suspeito num interrogatório policial, ele acabará sempre dando a impressão de que está escondendo alguma coisa. E é essa impressão que nossos solícitos repórteres esquerdistas buscam criar em torno de Miguel Reale.

Ninguém no mundo merece esse tratamento. Mas quando a intelectualidade bem-pensante se reúne para aplicá-lo a um sábio nonagenário a quem a Nação deve algumas de suas maiores conquistas no campo das ciências humanas, então é de suspeitar que estamos diante da velha conspiração dos medíocres que enxergam no gênio alheio a mais intolerável das afrontas.

No entanto, como a loucura de Hamlet, essa mediocridade tem método. A malícia, a perversidade e a baixeza do seu ardil, cujo uso se tornou institucional ao ponto de a breve militância integralista ser mais destacada na imagem pública de Miguel Reale do que as seis décadas e meia de formidáveis realizações intelectuais que se lhe seguiram, mostram a que ponto não só as idéias comunistas, mas até os hábitos e reflexos da mente comunista se impregnaram no modo de ser dos nossos jornalistas e da nossa classe letrada em geral.

Mesmo pessoas que já não aprovam conscientemente o marxismo são presas desses hábitos. Após 40 anos seguidos de “trabalho de base” nas redações, sem encontrar a menor resistência, os comunistas conseguiram impor seus critérios ideológicos como se fossem a única norma existente, a única norma possível do bom jornalismo. Se nossa imprensa não sabe falar de Miguel Reale sem uma genuflexão prévia ante o altar dos preconceitos esquerdistas, é simplesmente porque, nisso como em tudo o mais, ela simplesmente se habituou à troca rotineira da informação pela desinformação. Hoje em dia, milhares de jornalistas que de comunistas não têm nada subscreveriam com a maior tranqüilidade a seguinte declaração: “A missão da imprensa é minar, pela crítica, as instituições vigentes” – sem saber que a frase é de Karl Marx e que ela não é uma receita de jornalismo e sim de revolução comunista. Por isso, quando pensam estar fazendo jornalismo, estão apenas ajudando o comunismo a sair do túmulo e a colocar em seu lugar, no jazigo vazio, o Brasil.

Por ter escapado a esse cacoete vulgar, atendo-se a discutir a obra do filósofo no plano que lhe corresponde autenticamente, o caderno especial do JT consagrado a Miguel Reale, semanas atrás, se destacou como um momento especialmente nobre na história do nosso jornalismo, à altura, pelo menos, da nobreza do homenageado.