Resposta ao deputado José Dirceu

Olavo de Carvalho

27 de janeiro de 2001

Em Época de 20 de janeiro o deputado José Dirceu diz que no número anterior da mesma revista denunciei a existência de uma rede de espionagem petista, da qual ele seria o chefe. Não é exato. Quem denunciou foi, em fins de 1993, o governador Esperidião Amin, espantado da desenvoltura com que o deputado brilhava nas CPIs exibindo documentos que não poderiam ter sido obtidos por nenhum meio legal.

Por exemplo, José Dirceu agora alega que seu partido usa de quatro e não mais de quatro meios de investigação:  “a leitura do Diário Oficial, os requerimentos de informações oficiais, a pesquisa no Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi) e a atuação nas CPIs, sendo que este último instrumento permite a quebra legal de sigilo bancário”. Mas, na CPI sobre os “anões do orçamento”, quando se descobriu o “propinoduto” que ia do bolso do deputado José Lourenço para o suplente Orlando Pacheco, José Dirceu sabia até os números das cédulas que haviam escorrido por esse canal. Nenhum daqueles quatro meios daria acesso a tal informação. Portanto, ou Dirceu participara pessoalmente da safadeza – hipótese absurda – ou tinha lá um olheiro cujo nome não foi revelado. Foi de acontecimentos como esse que o governador Amin acabou deduzindo a hipótese da existência daquilo a que, na época, deu o nome humorístico de “PTpol”.

Ao mencionar agora esses fatos, apenas repeti notícias velhas e de domínio público. Mas, como o caso foi abafado e as notícias acabaram por desaparecer das páginas da imprensa, José Dirceu, apostando na falta de memória do público, apresenta a simples repetição delas como se fosse uma novidade escandalosa inventada por um caluniador.

Com idêntica malícia, ele procura incutir no leitor a impressão de que, em vez de protestar contra o uso de meios de investigação ilícitos, reclamo contra a investigação mesma, com o objetivo de ajudar uma elite corrupta a impedir a apuração de seus delitos. Ele me associa, em particular, aos esforços da tropa de choque governista para cobrir com um manto de proteção a pessoa do sr. Eduardo Jorge.

Mas que tenho eu a ver com Eduardos Jorges e toda essa gente? Será que já não falei mal desse governo o bastante e já não me mantive longe dele o suficiente para que qualquer tentativa de me confundir com ele se desmascare, no ato, como safadíssima desconversa?

É verdade que do lado do governo há muita gente abafando averiguações de corrupção. Só que, com muito mais razão, o outro lado procura abafar não apenas a investigação, mas até a simples discussão jornalística de algo muito mais grave que suspeitas de corrupção, que é a suspeita de usurpação da autoridade policial do Estado por um partido político.

Não digo que essa usurpação seja uma certeza absoluta. Mas há indícios dela suficientes para justificar, se não a investigação oficial que o caso merece, ao menos a discussão pública, que o deputado agora quer impedir mediante uma estúpida e arrogante ameaça de processo. Ele sabe perfeitamente que essa ameaça é blefe. Ainda não vivemos numa ditadura socialista na qual um profissional de imprensa possa ser punido judicialmente por relembrar notícias de jornais velhos.

É verdade, como afirma o deputado, que “uma das mais importantes funções de um partido político em sua atividade parlamentar é justamente a de controle e fiscalização do poder público”. Mas essa verdade torna-se um simples instrumento de engano quando ela serve para escamotear uma outra verdade, igualmente simples e evidente: a verdade de que o vigia também tem de ser vigiado. O PT de José Dirceu quer fiscalizar, mas não admite ser fiscalizado. Essa atitude só dá ainda mais verossimilhança à suspeita da existência da PTpol, pois, se um partido se coloca acima do Estado, das leis e da moralidade pública, por que não haveria de colocar-se também acima dos serviços de segurança?

Aliás, outro fato esquecido, ao qual na sua réplica o deputado não alude nem de longe, e que na época deu ainda mais credibilidade às suspeitas do governador Amin, é que o mágico que tirava da cartola as mais extraordinárias informações sigilosas estava especialmente habilitado a fazê-lo por ser especialista em informação, contra-informação, estratégia e segurança militar, com treinamento em Havana. Mais habilitado ainda porque não se limitara a estudar o assunto, mas adquirira experiência profissional no serviço secreto cubano, ao ponto de, em seguida, ser considerado apto a comandar, em nome dos patrocinadores cubanos da operação, a reorganização da luta armada no Brasil. Mas também não sou eu quem o diz. É Luís Mir, nas pp. 612 ss. de seu livro A Revolução Impossível. A Esquerda e a Luta Armada no Brasil (São Paulo, Best-Seller, 1994).

Mas aí me vem à cabeça uma pergunta. Não é extraordinário que, no instante mesmo em que tinha nas mãos o poder de destruir seus inimigos, um homem que gastara os melhores anos de sua juventude estudando os meios inusitados e subterrâneos de obter informações renunciasse asceticamente ao seu “know how” de agente secreto e se limitasse estritamente ao uso dos quatro prosaicos meios legais acima mencionados?

Não digo que semelhante mutação psicológica seja impossível. As variações da mente humana são infinitas. Digo apenas que é estranha. Tanto mais estranha porque José Dirceu não caiu de pára-quedas nesse tipo de estudos, mas os desejou ardentemente e, para adquiri-los, enfrentou com valentia obstáculos difíceis. De início, ele não foi aceito para o treinamento em Cuba, porque a ALN, organização terrorista a que pertencia, impugnou sua candidatura por considerá-lo (sic) “um carreirista” e “pouco digno de confiança” (Mir, p. 613). Pois não é que Dirceu, com a obstinação de um autêntico alpinista social da revolução, foi galgando os degraus da escala até chegar a Raul Castro, irmão de Fidel, e obter dele o ansiado pistolão que lhe deu acesso à sonhada carreira? Mais até que à simples carreira: num gesto de paternal solicitude, Raul abriu-lhe documentos reservadíssimos do governo cubano (id., ibid.). Com isso, Dirceu deu a volta por cima, como um patinho feio transfigurado, e saiu de lá falando grosso com os companheiros que o tinham desprezado.

Não é notável que uma promissora carreira tão arduamente conquistada seja de repente interrompida, sem explicações, em favor de uma banal função de parlamentar, envolvido tão-somente naqueles processos constitucionais e legais que na sua juventude o futuro deputado, como bom marxista, desprezava como “formalismos jurídicos burgueses”?

Se essa transformação ocorreu de fato, é o deputado quem fica a nos dever, numa bela autobiografia, a narrativa de tão prodigioso acontecimento interior, que ouso comparar ao “estalo” de Vieira ou à conversão do Apóstolo Paulo.

Eu, da minha parte, exerço apenas o sacrossanto direito de não entender. Na verdade, não entendo nem mesmo como é possível que um ex-agente secreto a serviço de uma nação estrangeira possa, no Brasil, chegar a presidente de um partido sem que isto cause o mínimo escândalo público, a mínima discussão, a mínima pergunta. Já pensaram o que José Dirceu, o mais temível interrogador de suspeitos no palco das CPIs, faria com Esperidião Amin se descobrisse, ou apenas desconfiasse, que antes de entrar na carreira política no Brasil ele tinha sido agente da CIA?

Obrigado, dona Cecília

Olavo de Carvalho

23 de janeiro de 2001

Dona Cecília Coimbra, voltando à carga em O Globo de 20 de janeiro, queixa-se de que respondi a ela e a Márcio Moreira Alves como indivíduos, “ignorando e retirando todo o conteúdo grupal/coletivo de uma determinada luta”.

Ora, dona Cecília! Se eu dissesse que a senhora, o sr. Gilberto Molina, o Márcio e o tal de Betto, ao me atacar, agiam como grupo organizado, vocês com a maior facilidade me tachariam de paranóico. Agora, que a senhora confessou, não corro mais esse risco.

O que se passa entre os esquerdistas e eu desde há alguns anos nada tem, realmente, de uma livre discussão entre indivíduos. É uma ação coletiva de organizações poderosas, ricas, tentaculares, que, através de seus agentes na imprensa, tentam destruir um sujeito inconveniente. Vocês têm tempo, recursos, arquivos, contatos internacionais, funcionários, computadores em rede, todo um arsenal à disposição para sustentar indefinidamente uma guerra que, para cada um de vocês, custa muito pouco. Produzir calúnias e intrigas em escala industrial, nessa base, é a coisa mais fácil. O alvo solitário, tendo de responder a tudo nos intervalos da luta pela vida, desleixando família, estudos e interesses particulares, acabará por tombar, exausto, ou por desistir. Pelo menos é com isso que vocês contam. De fato, diariamente a preguiça me aconselha a desistir. Discutir com almas deformadas, que um longo treinamento ideológico tornou insensíveis à distinção entre verdade e falsidade, é tão inútil quanto tentar ensinar grego clássico a uma manada de porcos-espinhos. No entanto, algo me diz que, se eu desistisse, os porcos-espinhos continuariam porcos-espinhos, mas eu já não seria eu mesmo. No terceiro dia de silêncio, já começariam a me brotar os espinhos nas costas. Assim, pois, continuo.

A desproporção de forças nessa disputa evidencia tão bem a covardia e a perfídia de um dos contendores, que em geral ele prefere manter em segredo a unidade de suas tropas, dando a impressão de que os gritos e pedras que se elevam contra seu adversário desde pontos diversos são o efeito espontâneo de uma reação popular.

Só na última semana, recebi nada menos de seis ataques através da imprensa, sem contar os e-mails carregados de insultos, os constantes apelos à minha demissão enviados às publicações em que escrevo e as intervenções maliciosas, com nomes falsos, destinadas a confundir os debates e a criar uma atmosfera de suspeita no Forum que mantenho na minha homepage na internet. Tudo isso não me atemoriza no mais mínimo que seja mas me mantém ocupado e me exaure na faina da matar insetos – pois seria loucura recusar orgulhosamente um olhar de atenção ao escorpião que se arma para me picar o dedão do pé. E, se é óbvio que esse assédio multilateral nada tem de espontâneo, também é certo que, até agora, eu tinha uma certa inibição de mencionar sua origem “grupal/coletiva”, para não acrescentar, ao desconforto da perseguição, a humilhação de ser chamado de maluco por aqueles mesmos que me puseram nessa situação maluca. 

Mas a senhora – como direi? – deu o serviço. Liberou o assunto proibido. Mostrou que malucos são vocês, malucos e obsediados pelo “íncubo ideológico” de que falava Eric Voegelin; malucos ao ponto de tentar aprisionar um sujeito numa armadilha paranóica só para depois, quando ele se queixa, poder acusá-lo de paranóico. Mas conspiraçõezinhas de intrigantes dependem inteiramente do segredo, e o segredo depende de que, entre os conspiradores, nenhum seja vaidoso o bastante para gabar-se dele em público. Peço pois desculpas por ter atribuído inicialmente sua atitude à ma-fé em vez de à idiotice: a senhora junta as duas em doses iguais.

Devo lhe agradecer, ainda, por ilustrar com tanta clareza, neste seu segundo artigo, os procedimentos de manipulação de texto que, por alto, assinalei no primeiro. Onde digo que um crime “é menos grave”, a senhora logo traduz para “é justificável”. É assim que a senhora transmuta as minhas palavras, de um apelo ao equilíbrio, numa “defesa subliminar da tortura”.

Sou-lhe igualmente grato, aliás, pela redação atenuada que agora a senhora deu à sua caluniazinha. Antes, eu era acusado de ostensiva “defesa da tortura”. Durante a semana, a senhora – ou o “grupal/coletivo”, o que dá na mesma – leu melhor, vacilou, viu que não dava para sustentar esse absurdo, mas, não desejando dar o(s) braço(s) a torcer, optou pelo meio-termo: a “defesa” pura e simples tornou-se “defesa subliminar”. Deve ser subliminar mesmo. Tão subliminar, que nem eu a percebi.

Não obstante essa patente vontade de falsear, a senhora se gaba de que o seu grupo, “acima de qualquer pendência política, é contra qualquer tipo de terrorismo”. Para prová-lo, alega que o TNM não denuncia somente os crimes da ditadura, mas “também os que acontecem nestes tempos neoliberais”. Quer dizer: vocês não discriminam a direita nova; falam dela como falam da velha. Com essa notável declaração, vocês exibem sua carteirinha de identidade ideológica no ato mesmo de jurar que não têm carteirinha nenhuma.

O TNM, na verdade, só existe com a finalidade sectária de denunciar os crimes de um lado para esconder os do outro.

Neste mesmo momento, enquanto a senhora revolve papéis velhos, em busca de indícios que possa alegar contra direitistas nonagenários ou mortos, centenas de pessoas estão sendo torturadas nos cárceres de Cuba, do Vietnã, da Coréia do Norte, da China, com a cumplicidade moral, cultural e política de brasileiros. Um exemplo é o médico cubano Oscar Elias Biscet, reconhecido como “prisioneiro de consciência” pela Anistia Internacional, que está sendo torturado numa prisão de Havana pelo simples fato de falar contra a política fidelista de abortos em massa. Enquanto isso o governo do Rio Grande do Sul gasta um milhão e duzentos mil reais dos cofres públicos para a propaganda do comunismo cubano, ao mesmo tempo que a senhora e sua gangue se mobilizam para destruir a reputação de quem ache que é mais importante denunciar esses crimes de hoje do que vingar ofensas políticas de trinta anos atrás. Se isso não é ajudar o torturador, então não sei o que é ajudar, nem o que é torturador.

A senhora se denuncia até quando pretende bancar a esperta, acusando falhas na minha leitura do seu artigo. Digo que a senhora citou não mais que um exemplo de vítima de atentados militares, e a senhora pula de alegria, achando que descobriu um erro, pois se lembra de ter citado três. Mas não, dona. O que a senhora fez foi citar uma vítima de atentado militar… e atribuir aos militares dois atentados de autoria desconhecida. Não são, pois, três exemplos: é um exemplo verdadeiro e dois falsos. Sei que para a senhora dá tudo na mesma, mas, lamento, não sou capaz de ler do modo como a senhora quer ser lida.

Se a senhora quisesse mesmo punir pessoas más, não precisaria buscá-las nos arquivos históricos. Há muitos carrascos vivos. Se a senhora tem TV a cabo, ligue na Worldnet (Canal 29) a partir das 6h30 da manhã, no programa “TV Martí”, seção “Presídio Político”, e verá um desfile interminável de dedos cortados, orelhas arrancadas, olhos vazados. São os prisioneiros fugidos daquele país que Frei Betto, amigo inseparável do TNM, proclama ser “o reino de Deus na Terra”. Pelo seu número e atualidade, esses casos deveriam nos escandalizar muito mais do que aquilo que, numa época distante, os mortos fizeram aos mortos. Mas a senhora e o sr. Molina preferem escrever a expressão “perigosos comunistas” entre irônicas aspas, para dar a impressão de que não há periculosidade alguma nos torturadores cubanos e nos seus acobertadores locais. Isso não é ser cúmplice moral da tortura? Subliminar, portanto, é a senhora. Mas não tão subliminar que a gente não perceba claramente o viés deformante que a senhora interpõe entre o leitor e a visão dos fatos.

Perigoso, no seu entender, é o “perverso silêncio” em torno dos crimes da nossa ditadura militar. Mas que silêncio? A senhora não lê jornal, não vê televisão? Não tem filhos na escola, que venham lhe reproduzir o discurso das professorinhas contra os “horrores da ditadura”? Não ouve o alarido incessante da mídia em torno dos “anos de chumbo”? Não lê as notícias que a senhora mesma manda plantar contra meros suspeitos que, imediatamente e antes de qualquer comprovação judicial, são então demitidos de seus cargos e expostos à execração pública?

Silêncio há, sim, em torno dos crimes da esquerda. Um silêncio total, obstinado, sistemático, só varado pelo site de Ternuma, um miúdo fragmento de memória histórica cercado de ameaças e insultos por todos os lados. Os defensores da guerrilha brasileira, por exemplo, alegam que ela foi reação legítima contra a ditadura. Mas como poderia sê-lo, se já existia antes da ditadura, no tempo de João Goulart, em plena vigência das liberdades democráticas? Então ela já era dirigida e financiada desde Cuba. Eu e muita gente na esquerda sempre soubemos disso, mas era proibido falar. Se déssemos com a língua nos dentes, desmantelaríamos nossa própria retórica, confessando que a abominável “direita” tinha dito a verdade, que as guerrilhas não eram reação nenhuma contra a ditadura, que a ditadura é que era uma reação legítima contra uma agressão internacional. Para ocultar isso, não só mentimos na ocasião, mas continuamos mentindo durante vinte anos. Com uma diferença: eu parei; vocês continuam. A pesquisadora Denise Rollemberg, que segundo leio em Elio Gaspari foi a primeira a conseguir investigar o assunto depois de três décadas de compacta censura, diz que esses “episódios são guardados a sete chaves e quem conhece não fala”. Não fala, para “não dar armas ao inimigo”. No meu tempo de militância, essa desculpa justificava tudo. Éramos adestrados para sobrepor, ao critério verdade-falsidade, o par schmittiano amigo-inimigo. Esse adestramento é o pai de todos os totalitarismos, de todas as tiranias, de todas as mentiras ideológicas. E nós o aceitávamos como o mais alto padrão de moralidade concebível, cobrindo de injúrias quem não se enquadrasse nele. O seu maldito “grupal/coletivo”, dona Cecília, não é outra coisa senão o sindicato dos adestradores.

Zenão e o paralítico

Olavo de Carvalho


O Globo, 20 de janeiro de 2001

Quando digo que a queda do nível de consciência das nossas classes falantes já atingiu a faixa do calamitoso, não estou exagerando nem brincando. Acompanho com regularidade os debates políticos, leio as principais publicações culturais, recebo diariamente dezenas de e-mails de universitários que levantam discussões sobre mil e um assuntos: tenho uma boa amostragem do que se passa. Seis anos atrás ainda era possível documentar, através de exemplos selecionados, como o fiz nos dois volumes de “O imbecil coletivo”, a veloz ascensão da estupidez na intelectualidade nacional. Hoje quem tentasse coleta similar seria esmagado sob a massa de documentos. Mas esse estado de coisas não deixa de ter suas vantagens. A maior delas é que, pelo acúmulo de material, a confusão inicial dos dados cede lugar ao desenho nítido de algumas constantes: o conjunto de cacoetes e incompetências que hoje caracteriza a forma mentis do opinador nacional típico já pode ser descrito em poucas linhas.

A primeira característica é a absoluta incapacidade de distinguir entre um conceito e uma figura de linguagem. Quando temos um sentimento difuso a respeito de algo que não compreendemos bem, experimentamos naturalmente a dificuldade de expressá-lo. Uma figura de linguagem, apelando a semelhanças sugestivas, ajuda-nos a vencer a dificuldade. Saímos de um nebuloso isolamento e penetramos na corrente da conversação pública. A decorrente sensação de ter emergido das trevas para a luz é porém totalmente ilusória: maior domínio da expressão não significa melhor conhecimento do objeto do qual se fala, ingresso na tagarelice coletiva não significa contato com a realidade. Quase todo debatedor público neste país, quando consegue domar sua dificuldade de expressão, sente ter dito algo de “objetivo”, talvez até mesmo de evidente e autoprobante, quando na verdade apenas objetivou sua subjetividade. Quanto mais árduo o desafio expressivo, mais a vitória é enganosa. A libertação das brumas interiores, a capacidade de exprimir o que sentimos é, decerto, um pressuposto do conhecimento objetivo, mas ainda está muito longe de alcançá-lo. No Brasil ela tende antes a substituí-lo. A confusão entre falar e conhecer é uma regra estabelecida dos debates nacionais.

Nessas condições, qualquer pretensão de “conceito”, quando chega a despontar, se esgota em mera definição nominal. O processo de exame pelo qual o investigador, fazendo a crítica de suas figuras de linguagem, acaba apreendendo algo da coisa real por entre as frestas do que ele próprio disse dela, parece ser totalmente desconhecido nesta parte do mundo. A expressão figurada e aproximativa, em vez de ser apenas o começo do processo de investigação, é o término dele: o sujeito mal acabou de enunciar um vago problema, e crê já ter em mãos uma conclusão líquida e certa.

Eu não diria, no entanto, que essa inépcia nasce da excessiva afeição às palavras, erroneamente assinalada como traço da nossa cultura por observadores estrangeiros como James Bryce e Hermann Keyserling. O que nos faz tomar as palavras por coisas não é o amor às primeiras, mas a dificuldade de, por meio delas, chegar às segundas. Pesquisas de antropologia empresarial mostraram que nossa população é insensível à palavra escrita, necessitando do apoio dos gestos e sons para que a mensagem atinja a consciência. Mas essa dependência da presença física do emissor assinala também uma dificuldade de saltar sobre a situação concreta do diálogo e apreender diretamente as coisas e relações mencionadas. O que se capta nesse tipo de comunicação é menos algo a respeito da realidade externa do que as intenções e sentimentos do falante. O brasileiro inclina-se a apreender antes “o que querem dele” do que o quid da coisa da qual se fala. Diga você o que disser, sobre não importa o que, e ele ouvirá uma ordem, um pedido, um apelo, um estímulo, uma proibição. É natural que, ouvindo assim, também fale assim, isto é, que, numa situação que exige descrever fatos e seres, ele se atenha a expressar o que sente, sem notar sequer a diferença entre uma coisa e outra. Sua fala será então respondida na mesma clave, e assim por diante indefinidamente, numa espécie de solipsismo coletivo no qual as almas, quanto mais se abrem umas às outras, mais se fecham na sua ilusão subjetivista.

Daí a compulsiva necessidade de “tomar posição” antes e independentemente de conhecer as coisas em questão, bem como a impossibilidade de ouvir uma argumentação ou prova senão como expressão mais elaborada de uma “tomada de posição” subjetiva. No Brasil não se discutem idéias, teorias, visões da realidade: discutem-se “posições” – atitudes, preferências, gostos e antipatias. Se é verdade o que dizia Henry James, que “os senhores falam de coisas; os escravos, de pessoas”, então somos, indiscutivelmente, uma nação de escravos.

É evidente que, não alcançado o nível do pensamento conceptual, mais impossível ainda fica provar o que quer que seja. Daí a segunda característica do debatedor brasileiro hoje em dia: a completa ignorância do que seja uma prova ou demonstração, na verdade uma total inconsciência da necessidade de provas. Em vez da prova, temos a reiteração enfática ou o apelo a novas figuras de linguagem, que, pela sua carga sentimental, bastem para estabelecer uma sintonia entre os sentimentos do ouvinte e os da platéia, sem nem de longe tocar nos objetos em questão. E o sujeito que fez isso sai persuadido de que disse alguma coisa do mundo real.

Curiosamente, indivíduos que ignoram tudo dos critérios de prova em filosofia ou ciência estão bem atualizados com as limitações desses critérios, assinaladas por autores em voga. Em resultado, a limitação se torna um substitutivo do critério mesmo e é por sua vez absolutizada, com grande reconforto para o presunçoso ignorante que, justamente por nada ter provado, acredita estar no cume da evolução epistemológica – como um paralítico que, ao ter notícia dos argumentos de Zenão sobre a impossibilidade do movimento, se sentisse superior às pessoas capazes de andar.

PS – Após acusar-me de um crime que não cometi e mostrar-se indignado de que eu tivesse o desplante de achar isso ruim, o sr. Marcio Moreira Alves anuncia agora que vai abandonar o ringue para não ter de se rebaixar ao nível da minha pessoa. Sapientíssima decisão. Ele que fique lá em cima, no seu “grand monde” de comunistas chiques, e não desça mais ao humilde porãozinho que, em paz com Deus, habito. Se descer, vai apanhar de novo.

Já o tal de Betto, que de maneira mais ou menos vaga e implícita parece ter endossado as acusações do sr. Moreira, não requer uma resposta em separado, porque, tendo ido essas acusações para o ralo da completa desmoralização, com elas há de ir automaticamente, sem deixar saudades, quem quer que as tenha subscrito.