Revolução

Mendo Castro Henriques

Euronotícias, 27 de abril de 2001

Para os que ainda não perceberam que a esquerda, mesmo onde adote uma fachada nacionalista, é hoje o principal agente de trituração das autonomias nacionais na máquina do globalismo, este notável artigo do prof. Mendo Castro Henriques, que só agora chegou às minhas mãos, pode soar como um estridente toque de despertador. – O. de C.

Estamos hoje confrontados com uma revolução global sem encontrarmos respostas locais. Enquanto no 25 de Abril os factores de decisão internos foram mobilizados “tant bien que mal” para os três objectivos de democratização, descolonização e desenvolvimento, 26 anos depois a paralisia invade progressivamente os governantes à medida que tomam consciência que não conseguem, ou não sabem, compensar a perda de instrumentos nacionais de decisão com a defesa das prioridades do povo português.

A opinião pública converge na observação dos sintomas de crise: falta de autoridade do estado, menosprezo da justiça, descalabro da contas públicas; reconhece os diagnósticos levados a cabo por organismos internacionais e nacionais; e, contudo, tem grandes dificuldades em optar por uma terapêutica de novas políticas públicas porque lhe escondem muito do como, onde e quando se deve fazer a intervenção. O prognóstico é reservado.

As sondagens mostram que ninguém está contente mas poucos mudam já o sentido de voto; a diferença entre o socialismo democrático e a social democracia está longe de entusiasmar. E toda essa prudência popular não é um cheque em branco ao Governo Guterres nem um cheque cruzado à Oposição; só mostra que a vox populi se abstém perante partidos que não trazem gente nem ideias novas,. A seu modo, está consciente de que a democracia nacional vive uma revolução que exige alternativas a sério. 

Revolução não é apenas a conquista violenta do poder. Revolução é toda a aceleração política que arrasta um povo para um processo que não domina nem compreende. E a força das revoluções provém menos da violência, que do caos e da opacidade que as acompanham, e que faz perder o sentido dos valores e das proporções, instaurando a desorientação e dispondo a população a aceitar, em nome da segurança, quaisquer exigências dos novos poderes.

 Na actual revolução, confrontam-se poderes globais que continuam a crescer – e cuja natureza poucos parecem compreender – e as comunidades de cidadãos moldadas pelo sentido da história e da esperança que ainda dispõem de meios de afirmação. O palco dessa revolução tanto é a sede dos grandes organismos internacionais como os lugares remotos onde, simplesmente, se vive. Politicamente, Lisboa está a igual distância de Bruxelas e de Monfortinho. Se esquecer isto, o país é vencido pela revolução global. Quem nos fizer esquecer isto, é culpado de traição.

 A revolução global é um resultado de processos independentes que começam a entrosar-se a partir do século XVIII: o aumento da população referido por Malthus, a absorção de civilizações menores pelas maiores, conforme a constante de Ellsworth Huntington (1889-1975), a centralização do poder e aumento dos meios de dominação descritos por Jouvenel. A população do globo jamais parou de crescer, os contactos entre civilizações intensificaram-se, e o poder tornou-se cada vez mais forte e centralizado à custa dos poderes intermediários, num processo só parcialmente compensado pela democratização das instituições.

Para agravar este ciclo histórico, tivemos dois séculos de concepções prometaicas segundo as quais o homem deveria reinventar o mundo, em vez de apenas o tentar governar. O número de receitas mundiais inventadas foi impressionante, e mais impressionante ainda o número de vítimas imoladas nesse altar, até atingirmos os cem milhões de vítimas do comunismo. Supor – à Saramago – que tudo isso tenha resultado de desvios acidentais de um ideal que permanece nobre é, no mínimo, ingenuidade, nuns casos perversão e estupidez, e noutros ainda conspiração.

O problema não se extinguiu com o fim do comunismo. As democracias ficam ameaçadas onde o Estado nacional, desprovido de instrumentos de decisão pela sua integração em espaços supra-nacionais, se deixa enredar na utopia do governo mundial, na hibridez das soluções pseudo-liberais, na supressão da liberdade de decisão das gerações futuras, enfim, a herança pesada da Internacional Socialista.

Aqui chegamos a Portugal. Em vez de se bater pela coesão nacional e pelas causas nobres de que o RMG é a jóia – sem coroa – do Governo Guterres, a esquerda portuguesa conduzida por projectos fracturantes apenas contribui para eliminar bastiões da velha autonomia dos poderes nacionais.

No confronto da revolução global, a esquerda portuguesa corre o risco de cumprir com subserviência uma só tarefa: debilitar o Estado nacional, despertando reivindicações que não possam ser atendidas com os recursos internos, no que se refere à ecologia, à distribuição de rendimentos, aos direitos de imigrantes e minorias étnicas. E faz tudo isto inquietando valores e símbolos que são a base psicológica e cultural das autonomias nacionais.

O menosprezo pelo estatuto da família, a legislação sobre o aborto, os entraves à liberdade de ensino, o reconhecimento das uniões de facto, a ausência de educação para a cidadania, o equívoco permanente entre descriminalização e liberalização das drogas, a irrrsponsabilidade no tratamento da religião católica, são causas em que o próprio Partido Socialista se divide, recua, e avança, pendendo ora ao centro ora à esquerda radical.

Mas o mais preocupante é que tais iniciativas legislativas vão acostumando as pessoas a novos padrões morais pautados pela intervenção crescente do Estado na vida privada: o Estado adquire tanto mais poder sobre seus cidadãos quanto mais se submeta, no plano externo, aos desígnios mundialistas. Não queremos o Estado a dar-nos lições de moral !

“O dinheiro não tem cheiro” terá dito o Imperador Vespasiano a seu filho Tito, ao ser acusado de lançar um imposto sobre banhos públicos. Se o Estado português enveredar definitivamente pela extensão da sua capacidade legiferante a matérias que deveriam ser reguladas pela sociedade civil, nomeadamente as relações íntimas entre seres humanos, sem dúvida que até poderá vir a legislar sobre o uso de banhos públicos; mas nem sequer cobrará impostos; os assuntos sérios ficarão para os vencedores da revolução global.

 

O palanque e as chinelas

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 26 de abril de 2001

Éric Weil, filósofo judeu-alemão que em protesto contra Hitler abandonou o uso do idioma natal e se tornou um clássico da língua francesa, enunciou nela esta verdade escandalosa: “Em política, o único ponto de vista legítimo é o do governante.” As mentes incapazes de abstração podem ler isso como um apelo à obediência servil. Mas o que Weil quis dizer é que o cidadão que opine sobre política sem se colocar em imaginação na pele do governante, sem assumir no plano moral subjetivo as responsabilidades com que ele teria de arcar politicamente caso agisse segundo essa opinião, é apenas um tagarela que não tem o direito de ser ouvido pela comunidade. Esta norma é válida, inclusive, para opiniões políticas que não digam respeito ao conjunto da sociedade, mas apenas a aspectos determinados e parciais dela, pois mesmo ações de governo limitadas a esses aspectos afetariam a sociedade toda e seriam por ela julgadas.

A sucessão de decepções que o Brasil tem tido com seus governantes, cada qual tão hábil em censurar os erros de seu antecessor quanto propenso a cometê-los ainda piores quando sobe ao poder, mostra que essa exigência elementar da moralidade intelectual é completamente desatendida entre nós.

Os políticos de carreira, candidatos a cargos eletivos, são tão incapazes de imaginar-se na posição do governante quando o criticam que, quando chega o dia de substituí-lo no cargo, estão completamente despreparados para o papel: tão logo assumem o governo, descobrem um outro mundo, imprevisto e rebelde a seus planos, que nem de longe haviam previsto quando pontificavam do alto das tribunas da oposição. E então, sonsos e desorientados, cometem erro atrás de erro.

Mas, se até os políticos são assim, que dizer do cidadão comum e, sobretudo, dessa classe especial de cidadãos que são os intelectuais, os críticos de tudo, os opinadores profissionais entre os quais me incluo? Cada qual, aí, se crê no direito de julgar em nome de ideais abstratos e critérios hipotéticos de perfeição, sem ter na mínima conta as dificuldades reais da situação concreta. Pior ainda, ninguém, ao opinar sobre problemas nacionais, se atém ao domínio daquilo em que pode interferir pessoalmente. O professor não se contenta em opinar sobre o que ele e seus pares devem ensinar, o escritor sobre o que os escritores podem fazer para escrever melhores livros, o jornalista sobre como fazer melhores jornais. Não: cada um, quando abre a boca, tem planos de escala nacional que, para ser executados, supõem no mínimo um poder presidencial. No Brasil só se debate uma coisa: planos de governo – e esses planos nem sequer são planos: são ideais genéricos, puramente verbais, que servem como padrão para julgar e condenar a realidade, mas não se tornar eles próprios uma realidade. Cada brasileiro fala como um presidente virtual, investido de plenos poderes imaginários que, quando os tiver no mundo real, haverá de fazer e acontecer. Ao mesmo tempo, todos se recusam a conceber as dificuldades concretas de exercer o poder, e cobram do governante o que eles próprios, no lugar dele, jamais poderiam fazer. Cada um fala como se tivesse nas mãos o cetro imperial, mas com as responsabilidades de simples cidadão comum, às vezes até menor de idade. O contraste entre a escala macroscópica dos temas e a incapacidade de se elevar, no exame deles, ao “ponto de vista do governante” marca os debates nacionais com os sinais inconfundíveis do puerilismo e da papagaiada histriônica.

Procurando escapar à contaminação desse vício deprimente, tenho evitado opinar em escala propriamente política, atendo-me antes àquilo que entendo que eu e os meus colegas de ofício – escritores, jornalistas, professores – podemos fazer aqui e agora, com o poder que temos. Mesmo quando os temas de meus artigos são estritamente políticos, não discuto aí o que o governante deve fazer, mas o que nós, formadores de opinião, devemos pensar e dizer.

Sou um caso raro de brasileiro desprovido de planos de governo – não os tenho nem para mim nem para quem quer que seja. Tenho planos para uma vida intelectual digna, que sou capaz de realizar na minha escala pessoal e que proponho aos que tenham as mesmas ambições que eu. Mas aquele que assim se atém ao domínio em que pode falar com plena responsabilidade se arrisca a ser totalmente incompreendido. Num país onde todos falam desde cima de um palanque, como poderiam compreender o discurso do sapateiro que não se eleva acima das chinelas?