Filhotes do genocídio

Olavo de Carvalho

Época, 2 de junho de 2001

Para cada homicídio que denunciam, eles foram cúmplices de outros 49

Os brasileiros que foram treinar guerrilha em Cuba não se tornaram somente pontas-de-lança da estratégia cubana no Exterior, mas também, obviamente, suportes do regime de Fidel Castro no próprio âmbito cubano. Recebidos com honras, sustentados com verbas do Estado, tiveram funções e utilidades bem nítidas no esquema de poder fidelista, alguns como oficiais da inteligência militar, outros como símbolos legitimadores e garotos-propaganda do regime, um papel a que muitos ainda se prestam com cínica devoção.

Como qualquer ajudante e beneficiário de uma ditadura, fizeram-se cúmplices dos crimes cometidos por ela, no mesmo sentido e na mesmíssima proporção com que acusam de parceria nos crimes da ditadura nacional qualquer indivíduo, daqui ou de fora, que de algum modo tenha apoiado o regime militar ou recebido favores dele. Moralmente, a única diferença que pode haver entre uma cumplicidade e a outra reside na magnitude dos crimes praticados pelas ditaduras respectivas. Mas essa comparação não é nada favorável aos que hoje detêm o monopólio do direito de acusar.

O Brasil do período ditatorial não teve mais de 2 mil prisioneiros políticos. Cuba teve 100 mil. Para cada esquerdista brasileiro preso no DOI-Codi, no Dops, na Ilha Grande, 50 cubanos foram jogados nas prisões políticas de Havana, com a solícita cumplicidade política e moral desse brasileiro. E os mortos, então? A ditadura brasileira fez 300 vítimas; a cubana, 17 mil. Para cada comunista brasileiro morto pelos militares, morreram mais de 50 dissidentes cubanos.

A diferença não é só quantitativa. Ela afeta a própria natureza dos crimes. Dezessete mil mortes, numa população cerca de 14 vezes menor que a do Brasil, já são um genocídio, a liquidação metódica e sistemática de um grupo, de uma classe. Genocídio com um detalhe ainda mais pérfido: em Cuba, desde a fuga de Batista, não houve resistência armada interna. A ditadura brasileira matou guerrilheiros e terroristas. Cuba, com o apoio deles, matou cidadãos desarmados, pacíficos e sem periculosidade alguma, a maioria por motivos fúteis, muitas vezes por uma simples tentativa de sair em busca de uma vida melhor.

Se é lícito denominar “filhote da ditadura” a qualquer um que tenha colaborado com o regime militar, com igual rigor e justiça os que se beneficiaram da ajuda de Cuba devem ser chamados “filhotes do genocídio”.

Mas 17 mil são só os que morreram em território cubano. Não estou contando aqueles que tropas armadas, instruídas e financiadas pelo governo de Havana, co-irmãs da guerrilha brasileira, assassinaram no Peru, na Nicarágua, na Colômbia. São 80 mil no total: para cada comunista morto no Brasil, seus companheiros mataram mais de 49 não-comunistas no continente. E continuam matando. Seus sofrimentos, além de fartamente indenizados em dinheiro, já foram vingados 49 vezes. Com que autoridade moral, pois, ainda erguem seu dedo acusador contra os “filhotes da ditadura”? Malgrado a força intrínseca desses fatos e números, a malícia esquerdista poderá tentar neutralizá-los alegando que saem da boca de um anticomunista. Mas seria inverter causa e efeito. Não penso essas coisas por ser anticomunista: tornei-me anticomunista porque me dei conta dessas coisas.

Mesmo assim, guardei-as comigo anos a fio, por medo de prejudicar aqueles a quem um dia chamara “companheiros”. Se de algo posso ser acusado, é desse comodismo pusilânime do qual por fim me libertei, mas que me fez tardar demasiado em dizer a verdade. Muitos, sabendo dela tanto quanto eu, vivem ainda de camuflá-la sob jogos de palavras, e não para proteger a terceiros, mas a si mesmos e às vantagens de que hoje desfrutam, seja como membros do governo, seja como ídolos da oposição. Nisso consiste toda a sua moral: culpa reprimida, transmutada em fome insaciável de retaliações e compensações.

É claro que os crimes da ditadura militar devem ser denunciados, investigados e punidos – mas não por esse tipo de gente. Não por essa escória.

Refúgio dos canalhas

Olavo de Carvalho


Época, 26 de maio de 2001

O nacionalismo de esquerda é uma fraude

Os apóstolos do Estado nacional, que espumam de indignação patriótica à simples idéia de privatizar alguma empresa estatal, tornam-se de repente globalistas assanhados quando um poder supranacional vem defender os interesses deles contra os interesses da pátria.

Essa conduta é tão repetida e uniforme que só um perfeito idiota não perceberia nela um padrão, e por trás do padrão uma estratégia. Desde logo, “a pátria” que eles celebram se constitui exclusivamente de estatais, onde têm sua base de operações e de onde dominam não somente uma boa fatia do Estado, mas também os sindicatos de funcionários públicos e seus monumentais fundos de pensão.

Defendendo sua toca com a ferocidade de javalis acuados, desprezam tudo o mais que compõe a noção de “pátria” e não se inibem de colocar-se a serviço de ONGs e governos estrangeiros quando atacam as instituições nacionais, desmoralizam as Forças Armadas, desmembram o território brasileiro em “nações indígenas” independentes, impõem normas à educação de nossas crianças, fomentam conflitos raciais para destruir o senso de unidade nacional e, em suma, arrebentam com tudo o que constitui e define a essência mesma da nacionalidade. Da pátria, só uma coisa lhes interessa: o dinheiro e o poder que lhes vêm das estatais.

Em segundo lugar, o nacionalismo que ostentam é de um tipo peculiar, desde o ponto de vista ideológico. É um nacionalismo seletivo e negativo, que enfatiza menos o apego aos valores nacionais do que a ojeriza ao estrangeiro – e mesmo assim não ao estrangeiro em geral, como seria próprio da xenofobia ordinária, mas a um estrangeiro em particular: o americano.

Assim, por exemplo, não sentem a menor dor na consciência quando, sob o pretexto imbecil de que toda norma gramatical é imposição ideológica das classes dominantes, demolem a língua portuguesa e acabam suprimindo do idioma duas pessoas verbais (mutilação inédita na história lingüística do Ocidente); mas, ante o simples ingresso de palavras inglesas no vocabulário – um processo normal de assimilação que jamais prejudicou idioma nenhum, e que aliás é mais intenso no inglês do que no português –, saltam ao palanque, com os olhos vidrados de cólera, para denunciar o “imperialismo cultural”.

Ser nacionalista, para essa gente, não é amar o que é brasileiro: é apenas odiar o americano um pouco mais do que se odeia o nacional. Mas, para cúmulo de hipocrisia, seu alegado antiamericanismo não os impede de celebrar o intervencionismo ianque quando lhes convém, por exemplo quando ajudam alegremente a desmoralizar a cultura miscigenada que constitui o cerne mesmo do estilo brasileiro de viver e lutam para impor entre nós a política americana das quotas raciais, em consonância com as campanhas milionárias subsidiadas pelas fundações Ford e Rockefeller.

Do mesmo modo, seu antiamericanismo fecha os olhos à entrada de novos códigos morais – feministas e abortistas, por exemplo – improvisados em laboratórios americanos de engenharia social com a finalidade precisa de destruir os obstáculos culturais ao advento da nova civilização globalista.

Redução do nacionalismo à defesa das estatais, substituição do antiamericanismo ao patriotismo positivo, adesão oportunista ao que é americano quando favorece a esquerda: desafio qualquer um a provar que a conduta constante e sistemática da chamada “esquerda nacionalista” não tem sido exatamente essa que aqui descrevo, definida por esses três pontos.

Nunca, na História, houve patriotas a quem se aplicasse tão exatamente, tão literalmente e com tanta justiça a observação de Samuel Johnson, de que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas.

 

Intelectuais orgânicos

Olavo de Carvalho

O Globo, 26 de maio de 2001

Só agora li uma entrevista que o prof. Carlos Nelson Coutinho deu ao jornal “Valor”, na qual, forçando até onde é possível o sentido das palavras, ele me incluiu entre os que teriam “preconceito contra o marxismo”. Apesar da data já um pouco longínqua, vale a pena examinar o documento, que ilustra o peculiar modus pensandi de um “intelectual orgânico”.

“Preconceito”, caso alguém ignore, é opinião prévia a um exame racional. Na deterioração geral da língua, no entanto, a palavra tornou-se um estereótipo infamante que os mais preconceituosos usam para rotular qualquer conclusão adversa a seus preconceitos, à qual alguém tenha chegado após longo estudo e ponderação.

O prof. Coutinho aderiu ao marxismo militante na entrada da juventude, antes de ter examinado senão um fragmento infinitesimal da bibliografia marxista, e, passadas quatro décadas, ainda é marxista sem ter mais que um conhecimento periférico da argumentação antimarxista; ao passo que eu, tendo feito idêntica escolha prematura, coloquei minha opção entre parênteses uns anos depois e, abstendo-me por duas décadas de emitir opiniões políticas enquanto pesava criteriosamente os argumentos pró e contra o marxismo, emergi enfim do silêncio dizendo coisas que contrariam os sentimentos juvenis em que se fossilizaram a pessoa, a vida e os neurônios do prof. Coutinho.

Entre nós dois, obviamente, o preconceituoso é ele, que nunca escreveu uma linha senão para dar retroativamente ares de requinte intelectual às crenças a que já tinha aderido de corpo, alma e carteirinha antes de fazer qualquer uso revelante do intelecto.

Isso não quer dizer que hoje ele faça desse instrumento um uso mais intenso do que na aurora da sua militância. Pelo menos ele não o utiliza o bastante para perceber que não tem sentido afirmar que entrei na mídia “com grande respaldo” e logo em seguida referir-se a mim como “uma voz isolada”, que “não é representativa de nada”… Ou bem eu, isolado, falo com a minha própria voz, ou alguém que me respalda fala pela minha boca. O prof. Coutinho que trate de decidir se quer me chamar de pau-mandado ou de excêntrico solitário. Se entre les deux, son coeur balance, isto só prova que ele quer me rotular de alguma coisa, qualquer coisa, não importa o quê.

Quando digo que o marxismo imbeciliza, é a esse tipo de fenômeno que me refiro. Nenhum esquerdista, até hoje, conseguiu dizer contra mim algo de inteligente. Ante a “voz isolada” que os atemoriza, todos têm dado um show de inépcia, de covardia e de maledicência sussurrante. Tempos atrás desafiei para um debate sobre Gramsci, inclusive oferecendo troca de links entre nossas respectivas páginas na internet, o prof. Coutinho e seus oitenta fiéis escudeiros de um site devotado à beatificação do fundador do Partido Comunista Italiano. Fugiram, como de hábito, afetando ares de dignidade ofendida, e, em pleno dia de Natal, redigiram uma carta enfezada na qual denunciavam como imposição ditatorial a oferta do intercâmbio de links.

É sempre aquela coisa do “1984”: democracia é ditadura, ditadura é democracia. Discussão é imposição, imposição é discussão. Conceito é preconceito, preconceito é conceito.

O leitor desacostumado ao trato com comunistas pode estranhar a desenvoltura, a tranqüilidade de consciência com que posam de vencedores após uma debandada tão ostensiva. Mas, creia-me, o fenômeno não se explica pela simples cara-de-pau. Eles conservam na fuga um ar triunfante porque não são intelectuais como os outros. São — e gabam-se de ser — “intelectuais orgânicos”, células de um vasto corpo combatente. Nunca agem sozinhos. Têm sempre o apoio logístico de uma rede inumerável de militantes obscuros, anônimos, que podem prosseguir o combate nos bas fonds da intriga e da calúnia quando os porta-vozes mais respeitáveis do “coletivo” se saem mal nos confrontos públicos. Quando as vozes de cima se calam, as de baixo começam o zunzum nos porões.

Agora mesmo, enquanto meus detratores mais notórios se recolhem para lamber as feridas das últimas refregas, um jornalista de São Paulo, mais comunista que a peste, deplorável farrapo humano que busca no ódio político o alívio de sua indescritível miséria de alma, está espalhando na internet avisos segundo os quais eu, Olavo de Carvalho, não trabalho há trinta anos e… vivo da exploração de mulheres. Dito em voz alta, numa tribuna acessível aos olhos do público, isso exporia o fofoqueiro ao desprezo de todos. Sussurrado no mundo virtual, pode até funcionar. A intriga propaga-se por reflexo condicionado, não por adesão consciente. Não é preciso acreditar nela para passá-la adiante, repeti-la por automatismo e acabar tomando-a como premissa implícita de julgamentos e decisões.

A manipulação de automatismos mentais torna-se ainda mais fácil numa atmosfera infectada de ódios e temores coletivos contra alvos mais ou menos distantes, só conhecidos por ouvir-dizer. O ambiente de esquerda é o caldo de cultura ideal para esse tipo de bactérias.

É por sempre contar com esse fundo de reserva que o “intelectual orgânico” pode se sentir vitorioso mesmo quando perde. Ele perde, mas o Partido não perde nunca. Não adianta nada você derrubar um desses sujeitos no ringue. Enquanto você recebe sua medalha, eles já fizeram a sua caveira entre os vizinhos. E quando você, imbuído de seu prestígio de campeão, vai pedir fiado um quilo de feijão no armazém da esquina, o português, desviando os olhos, lhe explica que os negócios vão mal e que você não tem mais crédito.

O mais pérfido em tudo isso é que o comunista famoso pode sempre sair bonito, alegando que desaprova os métodos imorais usados por seus companheiros anônimos. Mas, a partir do momento em que aceita ser um “intelectual orgânico”, ele não pode mais deixar de beneficiar-se dos métodos que desaprova. Não é uma questão de escolha. O Partido trabalha para ele como ele trabalha para o Partido, na unidade orgânica e indissolúvel da bela imagem pública com a safadeza escondida.

A imoralidade da militância comunista é intrínseca e independe de aprovação pessoal. E o máximo da imoralidade consiste precisamente em que o sujeito pode permanecer limpo no instante mesmo em que tira vantagem da sujeira praticada por outros, da qual ele nem precisa saber. É a síntese perfeita da boa consciência com a falta de consciência.