Nazismo de cátedra

Olavo de Carvalho


O Globo, 2 de junho de 2001

Por baixo de suas afinidades profundas e de sua abominável parceria na década de 30, socialismo e nazi-fascismo conservaram durante algum tempo uma diferença irredutível que permitia reconhecê-los à distância e — como direi? — pelo cheiro. O socialismo, com toda a sua absurdidade infernal, alegava-se no entanto fundado numa ciência, numa interpretação racional da história e da sociedade. O fascismo desprezava todas as argumentações e apelava diretamente às paixões, ao instinto, à irracionalidade bruta.

Era uma diferença antes de embalagem que de substância, pois ambos, no fundo, eram igualmente irracionais. Talvez por isso mesmo, à medida que o nazi-fascismo some do horizonte visível e permanece conhecido apenas pela imagem estereotípica que dele se conserva na mídia popular, mais fácil se torna para os socialistas copiar suas idéias, suas propostas e até mesmo seu estilo, seguros de que a ninguém ocorrerá chamá-los de nazi-fascistas por isso.

Nazista em toda a linha é a ebuliente fusão de ódio nacionalista, moralismo inquisitorial e retórica populista, que se tornou a marca inconfundível da esquerda brasileira. Mais nazista ainda o assalto irracionalista à idéia de verdade e de ciência objetiva, hoje promovido nas universidades por tropas de choque de vândalos togados, que não se vexam de reprimir nos alunos, mediante a chacota magisterial e a ameaça de sanções disciplinares, qualquer tentação de argumentar com lógica contra sua doutrina. Esta pode resumir-se num breve parágrafo:

“Não existe ciência ou conhecimento objetivo. Não existe verdade. Tudo o que existe são discursos ideológicos, legitimadores de interesses econômicos. Há o discurso dos privilegiados e o discurso dos excluídos. Sejam bonzinhos e tomem partido deste último.”

Esse parágrafo contém, rigorosamente, tudo o que um estudante brasileiro pode aprender hoje em qualquer curso universitário da área de “humanas”. Milhões de arranjos e variações são feitos para adaptar a mensagem às exigências das várias disciplinas, podendo-se portanto encontrá-la, sem qualquer diferença ou acréscimo substancial, em linguagem jurídica, psicológica, teológica, historiográfica, sociológica, filosófica, geográfica etc. Nada, nem uma única idéia se admite, em qualquer área do conhecimento, que não seja redutível, sem prejuízo do seu conteúdo, à fórmula-padrão universal, o parágrafo dos parágrafos, essência primeira e última do saber humano.

A variedade dos arranjos dá aos leigos e recém-chegados uma impressão de riqueza atordoante, suficiente para mantê-los sentados em suas carteiras até o dia em que, tendo percebido enfim a mágica besta que os fez de otários, já estejam cansados e amestrados demais para desejar desmascará-la, e optem pela alternativa mais cômoda de seguir os passos de seus mestres na senda da auto-estupidificação letrada.

Então, por medo de parecer ingênuos que acreditam em lógica, estarão dispostos a repetir os mais rematados contra-sensos e a defendê-los bravamente, não com argumentos, é claro, mas com aquela variada coleção de trejeitos de indignação, despeito e repugnância que hoje constitui o indispensável vocabulário facial de um perfeito sábio acadêmico.

Querem um exemplo? Dona Marilena Chauí, talvez a mais típica encarnação do ideal universitário nacional, acaba de estatuir como um “princípio nuclear da lógica do poder” a seguinte coisa: “Toda sociedade está dividida originariamente entre o desejo dos grandes de comandar e oprimir e o desejo do povo de não ser comandado nem oprimido, definindo o lugar do governante não acima das classes e sim como aliança necessária com o desejo do povo e como contenção do desejo dos grandes.”

Qualquer cidadão alfabetizado sabe que quem “comanda e oprime” não são “os grandes”, de modo geral e abstrato, mas sim justamente os governantes, e que o fazem quase que invariavelmente sob o pretexto de proteger o povo contra “os desejos dos grandes”. De Ivan o Terrível e Luís XIV até Hitler, Mussolini, Lenin e Stalin, não houve um só déspota que não impusesse sua autoridade absoluta mediante a destruição dos poderes intermediários, isto é, dos “grandes” sem cargo oficial, e que não o fizesse em nome dos pequeninos e desamparados.

Todo mundo sabe disso, mas alegá-lo é coisa do tempo em que o raciocínio lógico não era vulgaridade indigna de um acadêmico. Fica valendo, pois, o princípio chauínico, ou chauinista: governantes não comandam nem oprimem. Quem comanda e oprime são os ricos que estão fora do governo.

Não contente com isso, dona Marilena enuncia um segundo “princípio nuclear”, alegando que não é nem de sua invenção, mas que exprime a quintessência unanimitária do “pensamento político moderno”. Segundo esse princípio, “a moralidade pública não depende do caráter dos indivíduos e sim da qualidade das instituições como expressões concretas do lugar e do sentido da lei”.

Sei que argumentar não vale, mas quem quer que conheça um pouco o tal “pensamento político moderno”, de Maquiavel a Voegelin, de Hobbes a Weber, de Tocqueville a Peyrefitte (sem esquecer evidentemente Marx), sabe precisamente o contrário do que afirma essa senhora: sabe que a moralidade depende de tudo, menos das instituições e das leis. Depende do costume, da cultura, da religião, da educação, até da economia. Depende sobretudo do caráter dos indivíduos, moldado por esses fatores de base. Os códigos e instituições vêm em cima, seja como expressões da moralidade consagrada, seja como vãs e monstruosas tentativas totalitárias de mudá-la por decreto.

Nunca houve um grande pensador político que dissesse o contrário. A ideóloga da USP, num golpe de teclado, falseia todo o consenso universal — e ninguém parece reparar na prodigiosa leviandade que se requer para isso.

Num ambiente com um mínimo de racionalidade, nenhum intelectual acadêmico seria tolo e pretensioso o bastante para consagrar afirmativas pueris como “princípios nucleares”. Mas hoje isso pode ser feito impunemente. O que ninguém pode é denunciar essa intrujice sem ser assediado imediatamente pelo único tipo de argumentos que se admitem como legítimos no nazismo de cátedra: olhares de ódio, insinuações malévolas, eventualmente alguns palavrões. “Abajo la inteligencia” já se tornou, enfim, norma consagrada. Agora só falta acrescentar: “Viva la muerte.”

 

Offspring of genocide

OLAVO DE CARVALHO

Época, June 2, 2001

Translated by Assunção Medeiros

For each homicide they denounce, they were accomplices of other 49

The Brazilians that got guerrilla training in Cuba have not only become the forefront of Cuban strategy abroad, but also, obviously, supporters of Fidel Castro’s regime inside Cuba itself. Received there with honors, kept with money from the State, they had very clear functions and activities in the Fidelian power scheme, some as officers of military intelligence, others as symbols for the legitimization and figures for the propaganda of the regime, a role that many still play with cynical devotion.

As any other helper and beneficiary of a dictatorship, they have made themselves accomplices of the crimes committed by it, in the same sense and the very same proportion they accuse of partnership in the crimes of the national dictatorship any individual, here or abroad, that in any way supported the military regime or received favors from it. Morally the only difference there can be between one partnership and the other resides in the magnitude of the crimes practiced by the respective dictatorships. But this comparison is not at all favorable to those that hold today the monopoly of the right to accuse.

Brazil in the dictatorial period did not have more than two thousand political prisoners. Cuba had a hundred thousand. For each left-wing militant arrested by the DOI-Codi, by Dops, in Ilha Grande, 50 other Cubans were thrown in the political prisons of Havana, with the solicitous political and moral complicity of these Brazilians. And what about the dead? The Brazilian dictatorship made 300 victims; the Cuban 17 thousand. For each Brazilian communist killed by the military, 50 Cuban dissidents died.

The difference is not only in quantity. It affects the nature itself of the crimes. Seventeen thousand deaths in a population circa 14 times smaller than Brazil’s can already be considered genocide, the methodic and systematic obliteration of a group, of a class. Genocide with a detail a great deal more pernicious: in Cuba, since the escape of Batista, there was no internal armed resistance. The Brazilian dictatorship killed guerrillas and terrorists. Cuba, with the support of the same guerrillas and terrorists, killed unarmed citizens, peaceful persons that represented no danger at all, most of them for frivolous reasons, many times because of a simple search for a better life.

If it can be considered justifiable for them to denominate “offspring of dictatorship” anyone who collaborated with the military regime, with the same severity and fairness the ones that were beneficiaries of Cuban help must be called  “offspring of genocide”.

But 17 thousand were only the ones who died inside Cuban territory. I am not counting those that armed troops – instructed and financed by the government in Havana, co-sisters of the Brazilian guerrilla – killed in Peru, in Nicaragua, in Colombia. They are 80 thousand in total: for each communist killed in Brazil, their comrades killed more than 49 non-communists in the continent. And they continue to kill. Their sufferings, besides being well and fully compensated through indemnification, were already avenged 49 times over. With what kind of moral authority, therefore, do these people raise their accusing fingers against these “offspring of dictatorship”? Regardless of the intrinsic power of these facts and numbers, the leftist malice will try to neutralize them, alleging that they come out of the mouth of an anticommunist. But that would be to invert cause and effect. I do not think this way because I am anticommunist: I became anticommunist because I became aware of these things.

Even so, I kept these things to myself for years on end, being afraid of jeopardizing people that one day I called “comrades”. If I can be accused of anything, then it is of this craven listlessness of which I finally rid myself, but that made me tarry overlong in telling the truth.  Many, knowing all this as well as I did, still live to hide it under word games, not to protect others, but to protect themselves and the advantages they enjoy today, be it as government officials, be it as opposition leaders. This is all their morals are made of: repressed guilt, transmuted into an insatiable hunger for retaliation and compensation.

Of course that the crimes of the military dictatorship must be denounced, investigated, and punished – but not by this kind of people. Not by this scum.

Argemiro Ferreira: o estilo e o homem – I

Olavo de Carvalho

2 de junho de 2001

         Em dezembro de 2000, o jornalista Argemiro Ferreira publicou na revista Bravo! um necrológio do roteirista de cinema, Ring Lardner Jr., que o apresentava como vítima inocente da perseguição mccarthista. Na edição de fevereiro da mesma revista, contestei essa versão dos fatos. Agora, em junho, Argemiro respondeu à minha contestação.

         Como não quero que nada nessa disputa fique nebuloso, vago e sem conclusão, e como a plena elucidação do caso requer um exame longo e meticuloso, incompatível com as limitações de espaço da revista, colocarei em Bravo! apenas um aviso, chamando a atenção do leitor para as explicações que, nesta página, passo a apresentar em capítulos, que irei escrevendo à medida que me sobre tempo para consagrar a esse episódio, de escassa importância em si mesmo mas bastante oportuno pelo muito que revela da história contemporânea.

1. Estilística argemírica

§ 1. Argemiro, segundo ele mesmo

         O estilo é o homem. Antes de entrar no mérito da questão, analisemos, pois, o estilo do sr. Argemiro Ferreira.

         Segundo ele, a contestação que ofereci ao seu artigo foi “uma diatribe”, “um assalto”, repleto de “ofensas” e “insultos” à sua pessoa – tudo isso sic. Mas a única menção que ali fiz a essa pessoa está na epígrafe, extraída de Boileau: “Un sot a toujours un plus sot qui l’admire.”

         A palavra sot, como consta em qualquer dicionário da língua francesa, significa simplesmente “bobo”.

         Um menino de cinco anos, chamado de “bobo” por um colega de escolinha maternal, pode ficar profundamente magoado e achar que foi vítima de um insulto mortal, de uma ofensa intolerável, de um assalto à sua honra e dignidade mirins. Diria até que lhe desabou em cima “uma diatribe”, se conhecesse o vocábulo. Não conhecendo, pode substituí-la por um beicinho e pela ameaça temível: “Vô contá pa pofessôla.”

         Um homem adulto, se reage assim, é louco ou está tramando alguma.

         Não insultei Argemiro nem vou insultá-lo agora. Vou apenas observar que sua afetação puerilmente espalhafatosa de brios ofendidos, se premeditada, depõe contra sua honestidade; se espontânea, contra sua sanidade; em ambos os casos, contra sua credibilidade.

         Mas nada se pode concluir com certeza desse detalhe estilístico isolado. É preciso verificar se, ampliando histrionicamente a expressão de seus próprios sentimentos, o sujeito não faz o mesmo com a dos alheios.

§ 2. Eu, segundo Argemiro

         Vejamos portanto como ele descreve os meus sentimentos.

         Do senador Joe McCarthy fiz, no meu artigo, os seguintes julgamentos:

         1) Inépcia: “Longe de ter intimado gente demais, o senador pode ser acusado de parar o serviço na metade… O mccarthismo… foi uma investigação mal feita, que não conseguiu provar a verdade.” Estas frases referem-se ao seguinte fato: comparado à montanha de provas que investigações posteriores nos Arquivos de Moscou encontraram contra os suspeitos dos quais McCarthy, tendo as dicas certas, não conseguira provar nada de substancial, o seu belo Comitê de Atividades Anti-Americanas foi obviamente um fracasso.

         2) Fraqueza moral: “Quanto a McCarthy, bem, ele não foi um herói. Sempre buscou mais brilho do que resultados. Quando atacado em sua vida pessoal (coisa que só um idiota não previria que os comunistas iriam fazer, sendo eles o que são), começou a beber e morreu de depressão. Também não foi homem de elevada moralidade: quando não tinha provas, permitia que sua assessoria as inventasse, (se bem que todos os incriminados fossem mesmo culpados, como se revelou depois).”

         3) Ausência de culpa: “Mas não foi nenhum bandido, não mentiu em nada de substancial e, ao contrário, acertou em praticamente tudo.”

         Para qualquer pessoa que saiba ler, esses parágrafos significam que McCarthy foi um idiota, um incapaz, vaidoso, fraco de caráter, indulgente com a mentira própria e alheia, o qual, querendo liderar uma causa patriótica que estava acima da sua capacidade, pôs tudo a perder embora tivesse, em geral, as informações certas contra as pessoas certas.

         Tal era e é minha opinião sobre Joe McCarthy. Traduzida para o argemirês, porém, ela fica assim:

         “A risível paixão do acusador [Olavo de Carvalho] pela ‘filosofia’ de McCarthy, quase guindado a panteão de herói e de grande pensador universal...”

         “A obstinação absurda de encarar o mccarthismo como escola de pensamento…”

         “O guru do sr. Olavo de Carvalho…”

         “O discípulo do ‘filósofo’ McCarthy…”

         De vaidoso e fraco que comprou uma briga superior às suas forças, McCarthy transformou-se em herói. De idiota e inepto, em grande pensador universal e meu guru.

         O estilo é, de fato, o Argemiro Ferreira.

         É o estilo de um sujeito que não tem o menor senso das proporções nem o menor respeito pela realidade. É o estilo da ênfase forçada, do hiperbolismo fingido, o estilo artificiosamente bufo dos farsantes, mentirosos e difamadores.

         Mas, por favor, nada de conclusões apressadas. Nada de inferir, só do estilo, o homem. Antes de dizer que Argemiro é farsante, mentiroso e difamador, é preciso examinar a substância do que ele escreve.

         Pois, quando eu disser que ele é farsante, mentiroso e difamador, não quero dizê-lo como insulto. Quero dizê-lo como tradução exata da realidade, sem ênfases argemíricas.

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Argemiro Ferreira, o estilo e o homem – II