Racismo, aqui e em Cuba

Olavo de Carvalho


Época, 9 de junho de 2001

Há menos negros na elite cubana que na brasileira

Nunca houve no Brasil partido racista, militância racista, pregação racista, imprensa racista, comícios racistas, panfletos racistas, filmes racistas, programas de rádio ou peças de teatro racistas.

Não obstante a total ausência de meios materiais de difusão, a ideologia racista, transmitindo-se por meios telepáticos, sutis e não identificados, parece ser um sucesso entre nós. A acreditarmos nas altas autoridades que opinam sobre a matéria, inclusive o presidente da República, este é um país barbaramente racista.

Muitos intelectuais brasileiros vivem hoje de divulgar essa tese, encomendada e paga por fundações americanas, por motivos, decerto, puramente humanitários e de maneira alguma geopolíticos. Um dos argumentos decisivos alegados em favor dela é que negros e mulatos, constituindo a maioria da população, são minoria nas elites e nos bons empregos.

A diferença de nível econômico-social entre comunidades raciais pode ter várias causas. Uma delas é que do fim da escravatura até o primeiro surto industrial brasileiro decorreram mais de 40 anos: a população negra e mulata cresceu vertiginosamente sem que aumentasse ao mesmo tempo o número de empregos. A industrialização, por sua vez, coincidiu com a chegada de imigrantes, que, com excelente formação profissional, levaram a melhor no mercado de trabalho.

Mas nunca se fez um estudo científico que confrontasse as várias causas possíveis. Uma delas foi escolhida a priori e oficializada como única explicação permitida: a “discriminação”. Os negros e mulatos ficaram na pior porque somos todos uns malditos racistas e não lhes damos a mínima chance. Uma revista semanal chegou a anunciar “a prova definitiva” do racismo dominante: numa enquete, 90% dos entrevistados disseram que sim, que existe muito racismo no Brasil. Logo, provado estava.

Não ocorreu aos editores ponderar que, se tantos diziam isso, era precisamente por serem contra o racismo e que os demais podiam ter negado a existência dele por julgá-lo coisa feia demais para existir aqui. Isso evidentemente inverteria a conclusão da pesquisa. Mas esse cuidado metodológico foi excluído in limine como preconceito racista – e a pesquisa chegou cientificamente ao resultado premeditado. Desde então, consagrou-se como norma designar o fenômeno investigado pelo nome da causa a averiguar, ficando assim dispensada a averiguação e provada a discriminação racial.

Os partidos de esquerda, sempre devotos da probidade científica, exultaram, adotando a denúncia do racismo brasileiro em seus programas eleitorais. Escrevo este artigo na piedosa intenção de sugerir que a retirem de lá imediatamente, porque descobri uma coisa temível: examinada pelo mesmo critério estatístico, Cuba é o país mais racista da América Latina. Com 60% de negros e mulatos na população em geral, só 10% de sua elite política não é branca. Fulgencio Batista era um ditador mulato rodeado de assessores mulatos. Pelo método científico brasileiro, a conclusão se impõe: uma revolução racista branqueou o governo.

Para piorar as coisas, Oscar Lopez Montenegro, um mulato que fugiu de Cuba e hoje distribui em Miami panfletos contra o racismo cubano, informou ao Washington Times que, quando o governo de Fidel é pressionado pela opinião pública estrangeira para soltar prisioneiros, invariavelmente solta um branco. Outro exilado, Manuel Questa Morna, diz que no Exército de Cuba não há generais negros. “Cuba é um país dirigido por velhos brancos”, confirma Juan Carlos Espinosa, diretor do Cuban Studies Center da St. Thomas University, em Miami. E Denis Rousseau, ex-correspondente da France-Presse em Havana, afirma que a elite cubana está preocupadíssima com o aumento do número de mestiços na população.

Logo, das duas uma: ou vocês param de denunciar o racismo brasileiro, ou param de louvar as qualidades excelsas da democracia cubana.

A mão direita da esquerda

Olavo de Carvalho

O Globo, 9 de junho de 2001

Desde o fim da URSS, a esquerda nacional tem-se empenhado dia e noite em advertir os nossos nacionalistas — especialmente os das Forças Armadas — contra o perigo do mundo unipolar e em persuadi-los a tornar-se esquerdistas por patriotismo. Há pessoas que vivem disso, e há pessoas — até nas Forças Armadas — que acreditam nelas. Mas só um perfeito idiota não percebe que a potência dominante que nos impõe as políticas econômicas contra as quais a esquerda se bate é a mesma que nos impõe o politicamente correto, o abortismo, o feminismo, o ecologismo e, enfim, todos os modelos culturais que constituem o restante do programa da própria esquerda.

Muito menos é possível a um cérebro medianamente são deixar de notar que as fundações e empresas multimilionárias que subsidiam a difusão desses novos modelos de conduta são as mesmas que, por outro lado, sustentam a implantação da Nova Ordem Mundial e das tais políticas econômicas que os apóstolos desses modelos alardeiam execrar.

E quem quer que perceba essas duas coisas não tem como evitar a conclusão de que o mundo unipolar é ainda mais unipolar do que os porta-vozes da esquerda desejariam dar a entender. Tão unipolar, que dele provêm não somente as propostas que a esquerda odeia, mas também as que ela ama e personifica. E dele, igualmente, vem o dinheiro para subsidiar a implantação de uma coisa e da outra.

A esquerda, em suma, utiliza-se de um vocabulário estereotipado da época da bipolaridade para iludir os nacionalistas, desorientá-los e subjugá-los à estratégia mundialista, atraindo seus ataques numa direção falsa para que não atinem com a verdadeira. O componente essencial desse vocabulário é a velha identificação do “norte-americano” com o “liberal-capitalista”, da qual decorre, automaticamente, a confusão do nacionalismo com o estatismo, o Estado previdenciário e, “last not least”, o socialismo.

É com a finalidade de legitimar esse brutal engano que o discurso corrente dos homens de esquerda contra o FMI e a Nova Ordem Mundial apresenta estes dois fenômenos como se fossem a quintessência do liberal-capitalismo e não, precisamente ao contrário — como o demonstra a história — invenções puramente socialistas destinadas a estrangular, junto com a liberdade econômica, a liberdade política no mundo. FMI e Nova Ordem Mundial são capítulos da história do centralismo avassalador que tudo sacrifica no altar do controle burocrático e da economia planificada, os ídolos já mil vezes desmascarados, de cujos poderes místicos a propaganda socialista promete, no entanto, obter a cura de todos os males. Do primeiro, disse seu próprio inventor, Lord Keynes, que era “essencialmente uma concepção socialista”. Quanto à segunda, foi de ponta a ponta uma criação do famoso “think tank” londrino do socialismo gradualista que, após passar por várias denominações, acabou se notabilizando como Fabian Society. Foi um de seus membros mais ilustres o escritor H. G. Wells, que delineou já em 1928 o programa inteiro da Nova Ordem Mundial e o publicou no seu livro “Conspiração Aberta”.

“Aberta” é força de expressão. “Conspiração” também. O socialismo fabiano jamais se envolveu em atentados, comícios, passeatas, muito menos em conspirações de porão. Tudo o que ele faz é preparar intelectuais para colocá-los em altos postos de assessoria desde os quais possam, discretamente, mas sem nenhum segredo, incutir idéias socialistas nas cabeças dos governantes. O esquema foi inventado pelo teórico Graham Wallas, que com cinco décadas de antecedência formulou a estratégia gramsciana da “ocupação de espaços” e da “revolução passiva” (e dizer que Gramsci ainda passa por gênio!). A magnitude dos efeitos da coisa contrasta singularmente com a circunspecção dos meios. Praticamente todos os grandes giros da economia moderna no sentido centralizador e socializante do Estado previdenciário foram planejados por socialistas fabianos. Só para dar uma idéia do alcance da sua influência, os planos de governo de três dos mais poderosos — e dos mais estatizantes — dentre os presidentes dos EUA, Roosevelt, Kennedy e Johnson, foram diretamente copiados de obras de autores fabianos e adotaram até seus títulos: o “New Deal” de Roosevelt é um livro de Stuart Chase, a “New Frontier” de Kennedy um livro de Henry Wallace, e a “Great Society” de Johnson um livro do próprio Graham Wallas.

Malgrado seu estilo soft, antes social-democrático que comunista, os fabianos sempre consideraram a URSS uma valiosa aliada na sua luta contra o liberal-capitalismo. No fundo, ela foi bem mais que isso: desertores da KGB informaram que pelo menos um dos livros de Sidney Webb, o mais célebre presidente da Fabian Society, não foi escrito por ele, mas veio pronto do Ministério das Relações Exteriores soviético. É compreensível. Muito antes de Gramsci, a URSS também já havia descoberto as virtudes do gradualismo reformista que, pelo alto e no macio, socializa o mundo mais depressa do que poderiam fazê-lo alguns milhares de Ches Guevaras — os autênticos bois de piranha do único socialismo que sai sempre vencedor.

A suprema vantagem do método discreto é que, quando os engenhosos planos estatizantes de intelectuais socialistas desconhecidos do povão fazem por fim pesar sobre o bolso das massas o custo imensurável da sua tolice, nunca faltam na praça intelectuais de esquerda radical, que, ignorando ou fingindo ignorar tudo do trabalho de seus parceiros fabianos, lançam a culpa do desastre… no capitalismo liberal!

Não veja a tua mão esquerda o que faz a tua direita, ensina a Bíblia. O socialismo tem a sua própria versão demoníaca desse ensinamento: não vejam as tuas massas barulhentas o que fazem os teus aliados silenciosos — e assim, não sabendo quem as oprime, elas descarregarão sua fúria no bode expiatório que melhor convenha à tua estratégia.

Resta saber apenas se os nossos nacionalistas — sobretudo os das Forças Armadas — consentirão em reduzir-se ao papel de massas manipuladas.

Honra ao mérito

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 7 de junho de 2001

De uma polêmica que o dr. Oswaldo Porchat Pereira teve comigo, e da qual saiu com o rabo entre as pernas após uma vã tentativa de me assustar com uns argumentos supremamente calhordas, concluí que ele era um fracote. Da leitura de um de seus escritos filosóficos de maturidade, concluí que era um idiota.

Lendo, agora, sua tese de doutoramento, retirada do baú pela Editora da Unesp, descubro, com grata satisfação, que 33 anos atrás ele não era nada disso: era um estudioso sério, capaz de trabalho intelectual pesado, honesto e até corajoso.

Tendo divulgado as duas primeiras conclusões, vejo-me na estrita obrigação de publicar a terceira, ao menos para que se veja que o homem não é ruim por natureza, mas ficou assim por força de três décadas e tanto de serviço público na USP, uma experiência capaz de corromper até os santos e da qual eu, que nunca passei por ela, não posso jurar que me sairia melhor.

Ciência e Dialética em Aristóteles permaneceu inédito e agora vem a público por mérito de d. Marilena Chauí, a qual, por distração ou malícia, inaugurou com o livro uma coleção à qual deu o mesmo nome daquela que há dois anos dirijo na Editora Record: Biblioteca de Filosofia.

Dona Marilena é mesmo uma pessoa estranha. Anos atrás (corrijam-me, por favor, se eu estiver errado), acusada por José Guilherme Merquior de plagiar uns escritos de Claude Leffort, respondeu que tivera um caso amoroso com o autor plagiado, sugerindo que páginas inteiras da obra dele teriam sido transmitidas à sua pessoa por meios que não são da nossa conta.

Mas ela não há de ser acusada de ter por mim análoga simpatia. A palavra mais doce que já disse a meu respeito foi “cafajeste”, recebendo uma resposta que, embora publicada, não ouso repetir, de vez que já passou há tempos a emoção do insulto que me fez proferi-la.

Lembro o episódio apenas para atestar que d. Marilena não tem comigo nenhuma intimidade afável que justificaria, como no caso Leffort, uma transmissão telepática. Permanece, pois, o mistério. Não podendo resolvê-lo, voltemos ao dr. Porchat.

Para avaliar a importância do seu trabalho, é preciso estar ciente de que ele, no seu momento, respondeu eficazmente a uma polêmica de meio século que se travava em torno da continuidade ou descontinuidade da idéia de ciência em Aristóteles, e que essa discussão não tinha somente interesse histórico, dada a inspiração que muitos filósofos da ciência e cientistas de ofício, especialmente biólogos, estavam buscando no Estagirita para revigorar o senso da unidade orgânica do saber.

A disputa nasceu com Werner Jaeger (depois autor da celebradíssima Paidéia), quando, aplicando a Aristóteles o método biográfico-genético que tão bem funciona com autores mais recentes, concluiu que a filosofia do mestre tinha passado por substanciais mutações e nela não se encontrava mais unidade do que aquela que se pode vislumbrar nas expressões de qualquer alma humana, que se transforma no curso dos tempos e se esquece de si.

Embora rejeitando em essência o método de Jaeger, o grosso do “establishment” acadêmico subscreveu a idéia de que haveria em Aristóteles, e sobretudo em sua concepção do saber científico, vários começos e recomeços, não sobrando no fim um sistema, porém ao menos dois, num conflito sem solução.

Opondo-se valentemente a essa respeitável maioria, Porchat matou a questão pelo método que aprendera de Victor Goldschmidt e Martial Guéroult: a reconstituição meticulosa, mediante leitura analítica, da “ordem das razões” que estruturam uma filosofia. Daí surge brilhantemente restaurada a unidade da teoria aristotélica da ciência, acima de qualquer dúvida razoável.

No curso de minhas investigações sobre a concepção do discurso em Aristóteles, topei, evidentemente, com a mesma questão. Cheguei à mesma resposta, sem ter o tempo ou os meios de prová-la, e passei adiante, pois o objeto da minha investigação era outro. Mas sempre conservei algumas dúvidas quanto a esse ponto em particular, sabendo que um dia eu ou alguém teria de voltar lá para tirá-lo a limpo. Diante da constatação de que Porchat, numa tese inédita, já tinha matado o problema, só posso exclamar: bravo!

Evidentemente, se eu tivesse lido a tese enquanto trabalhava no meu Aristóteles em Nova Perspectiva, isto em nada teria mudado minha conclusão global, mas certamente eu a teria afirmado com mais vigor e certeza, pois a unidade da lógica científica é um argumento decisivo em favor da unidade da concepção aristotélica do discurso em geral, que é o que ali procuro defender.

Só lamento que um sujeito tão capaz fosse sepultar seus talentos no cemitério uspiano. Dá para entender por que, começando com Aristóteles, ele terminou no pirronismo, a mais demissionária das filosofias. Era pedir demissão do emprego — ou da filosofia.