Um livro que ninguém verá

Olavo de Carvalho

Época, 18 de agosto de 2001

O terrorismo intelectual do qual ele fala não vai deixar que você o leia

Um livro de sucesso na Europa, mas que só por milagre será publicado no Brasil, e que se for publicado não será comentado, é Le Terrorisme Intellectuel de 1945 à Nos Jours, de Jean Sévillia. Se o leitor compreendeu o título, já sabe por que digo isso. O terrorismo intelectual, que consiste num conjunto de mecanismos jornalísticos e publicitários inventado por Lênin para intimidar e reduzir ao silêncio os inimigos do comunismo, ainda é bem forte na França, mas não o bastante para impedir que o livro fosse publicado, semanas atrás, pelas edições Perrin. O monstro decadente defende com bravura o velho terreno conquistado, mas se debilita dia a dia com as revelações dos Arquivos de Moscou e as defecções de ex-colaboradores que se cansaram de mentir a seu serviço, como aconteceu com os autores de O Livro Negro do Comunismo. Já no Brasil o sistema está em franco progresso, tendo conquistado praticamente todos os postos importantes na imprensa cultural, na educação e nos meios editoriais, tornando-se dia a dia mais despótico, mais arrogante e mais intolerante.

Jean Sévillia, redator-chefe do Figaro, o principal diário parisiense, passou anos vasculhando a imprensa francesa em busca de jóias da propaganda comunista travestida de jornalismo, como, por exemplo, as descaradas apologias do injustamente prestigioso Le Monde ao regime genocida de Pol Pot, os ataques coordenados da intelectualidade bem-pensante ao dissidente Victor Kravchenko (o primeiro a revelar a existência dos campos de concentração soviéticos), a tempestade de ódio que desabou sobre Aleksandr Soljenitsin quando publicou O Arquipélago Gulag. De entremeio, alguns momentos de desabafo nos quais a alma esquerdista revela sua verdadeira índole, como nesta tirada de Jean-Paul Sartre, que Jean-François Revel considerava o terrorista intelectual por excelência: “Um regime revolucionário tem de se desembaraçar de um certo número de indivíduos que o ameaçam, e não vejo outro meio de fazer isso senão a morte. Da prisão, sempre se pode sair. Os revolucionários de 1793 provavelmente não mataram o bastante”.

Na Europa o terrorismo intelectual continua, como diz Jean d’Ormesson, da Academia Francesa, a “construir seus muros de silêncio, mais difíceis de derrubar que o Muro de Berlim”. Mas esses muros já mal conseguem tapar a visão do passado, ao passo que, no Brasil, é a atualidade mesma que é sonegada, cada vez mais, ao conhecimento do público. Ao terrorismo intelectual nacional as mais belas esperanças de domínio completo são hoje permitidas. Tanto que a área sob sua jurisdição já se ampliou dos círculos intelectuais para a imprensa noticiosa, onde, com eficácia infinitamente superior à dos velhos censores do regime militar, ele veta a seu bel-prazer o acesso dos leitores brasileiros aos fatos inconvenientes, como, por exemplo, o próximo julgamento do clã Pol Pot no Camboja por um tribunal das Nações Unidas (certamente o acontecimento judiciário mais importante desde a condenação dos nazistas em Nuremberg) ou a prisão recente de mais um bispo pela polícia política chinesa, que eleva para 14 o número de dignitários católicos (sem contar padres e leigos aos montões) mantidos prisioneiros, sob tortura, nos cárceres do regime tão apreciado por nosso eterno candidato presidencial, o católico, certamente devotíssimo, Luiz Inácio Lula da Silva.

Uma máquina que vai funcionando tão bem, e cuja operação exige que ninguém perceba que é uma máquina, mas que todos imaginem que gritos e silêncios se coordenam pela somatória impremeditada de puras coincidências, não há de querer que seus mecanismos internos sejam de repente divulgados, analisados, postos a nu. Ante a mais mínima ameaça de tradução do livro de Jean Sévillia, folhas de parreira choverão miraculosamente, e o terrorismo intelectual continuará encoberto, invisível, disfarçado de anônima e espontânea “opinião pública”.

Sobre a violência e as armas

Sérgio Alberto de Castro

17 de agosto de 2001

Sérgio Alberto de Castro, coronel da reserva do Exército Brasileiro, enviou a esta homepage a contundente análise das contradições do monopólio estatal das armas de fogo, que abaixo reproduzimos. Dado o cerco publicitário que protege contra todo argumento adverso o novo dogma globalista imposto aos brasileiros, a internet se torna o único meio de difundir o pensamento de quem diverge do establishmentcínico e ditatorial. Agradeço ao Cel. Castro pela coragem e pertinência das suas observações. — O. de C.

A lei estadual em vigor e a lei federal proposta por FHC ao Congresso, ambas proibindo a venda de armas de fogo ao público, complementam lei anterior que restringe o porte de armas. Na prática agora será impossível ao cidadão não só portar como possuir uma arma de fogo, mesmo em casa, para sua defesa pessoal.

À primeira vista, ainda ecoando a intensa campanha promovida pela mídia e pelas auto-intituladas “organizações representantes da sociedade civil” (1), parece que a intenção governamental é meritória. Assim sendo, todo homem de bem deveria aplaudir as referidas medidas. Não obstante essa presumível boa intenção, há pessoas que têm o péssimo hábito de pensar e, caso alguém pense um pouco, logo fica claro que por trás das boas intenções existe um conjunto de monstruosidades. Vamos a elas.

Comecemos pelo conceito de violência. Violência — o que todos querem combater — é um substantivo. É necessário, pois, adjetivá-lo, ligá-lo a uma situação concreta e determinada, para que adquira sentido de valor, de certo e errado. Assim sendo, dizer que “devemos combater a violência”, de forma genérica, significa igualar em valor moral ações completamente distintas. Quando, no nobre dever de educar um filho, sua mãe o coloca de castigo ou lhe dá uma palmada, está cometendo uma violência. Quando um policial, arriscando a vida, trava um tiroteio com bandidos, pratica um ato violento. Da mesma forma, quando um exército faz a guerra a um agressor. Apesar de violentas, todas essas ações são meritórias, inspiradas no altruísmo, cujo ponto mais alto é arriscar sua vida por outrem (2). Da mesma forma, quando um facínora espanca ou mata alguém, estupra uma mulher, ou assalta um cidadão, comete violência. Creio, porém, que o valor moral da ação é completamente diferente, pois trata-se de ações criminosas.

Essa generalização, a violência sinônimo de crime, é a primeira monstruosidade. Torna iguais o mérito e a torpeza.

Ressaltada essa pequena diferença — o valor moral —, fica evidente que o que deve ser combatido é o crime. Curiosamente, nenhuma fundação Viva Rio, nenhum formador de opinião, nenhum dirigente político se refere a combater o crime (os últimos às vezes falam em combater o “crime organizado” e os “crimes dos colarinhos brancos”), todos porém são unânimes em falar de “combater a violência”. Esta é a segunda monstruosidade.

Por que, será que são obtusos? Não, a resposta é simples. Vamos a ela.

A resposta está no conceito de que o crime seria conseqüência da injustiça, da desigualdade social. Ou seja, a priori o criminoso, definido como pobre, preto, pardo etc. etc., ao cometer o crime só o faz porque é uma vítima da sociedade. Assim sendo, ele, de criminoso, passa a vítima. Por sua vez, a vítima original (o assaltado ou o seqüestrado) é definido como um membro da classe dominante, ou seja, ele é um “criminoso de classe”, aquele que se beneficia com a injustiça social. Assim, nada mais justo do que o crime cometido, que na verdade não é crime, mas sim justiça social (3). Esta é a terceira monstruosidade.

É claro que a tese “crime conseqüência da desigualdade social” é falsa, o que se pode demonstrar facilmente, porém não é o caso. Basta lembrar que, se verdadeeira, a Índia, a China, o Irã, entre muitos outros países, seriam habitados por criminosos, o que é falso. Da mesma forma, os pobres brasileiros seriam todos criminosos, o que também é falso. De fato, a criminalidade se distribui igualmente por todas as camadas da população — o que varia é o tipo de crime, por exemplo: pobre não comete “crime de colarinho branco”.

Juntando-se a generalização conceitual, a definição incorreta e o conceito de “crime social”, teremos, obviamente, a impossibilidade de qualquer ação contra o crime por parte do Estado. Senão vejamos:

1. Combater a violência é também combater a ação policial. Em um tiroteio, caso haja uma vítima inocente, a responsabilidade é sempre da polícia, não dos facínoras que não se renderam quando acuados pelos policiais.

2. Como se combate a “violência “, o combate ao crime deixa de existir como tal, pois estaria implícito.

3. Como o criminoso (bandido) é “vítima social”, não há por que combater o crime, é sim necessário e suficiente “mudar a injusta estrutura social do Brasil ” (ou criar outra utopia qualquer).

Esta é a quarta monstruosidade.

Há, contudo, um outro aspecto. Mesmo sendo o acima exposto o pensamento dos nossos líderes, legisladores, ativistas civis, etc. etc., fica meio feio não fazer nada (FHC disse isto, em outras palavras, a O Globo). Assim sendo, tomou-se a iniciativa brilhante: proibir, aos homens de bem, o porte e a posse de armas de fogo. Digo homens de bem, porque os facínoras, dada a sua própria natureza facinorosa, não cumprem leis, logo, não são atingidos por elas. Era, porém, necessário justificar tal abominação sob uma capa lógica e positiva. Isto foi feito com o seguinte raciocínio:

1. As armas de fogo matam.

2. Se você tiver uma arma de fogo e resistir a um facínora, será morto e sua arma, além de inútil, será usada por outro facínora.

3. Logo, se você não tiver uma arma, o facínora não o matará.

É evidente que a argumentação é falsa, como se demonstra a seguir:

1. Arma de fogo não mata, quem mata é quem a usa, da mesma forma que uma faca, um porrete, as mãos, etc. Quem mata é um ser vivo, não um instrumento.

2. Alguém que resiste, armado, a um facínora, pode também matá-lo, salvando assim sua vida, o que é o mais elementar direito humano.

3. O raciocínio aludido atribui ao facínora a virtude da clemência. Ao homem de bem, no papel de vítima, caberá a passividade. Será assaltado, espancado, etc. etc., porém poderá não ser morto, visto não resistir e, por conseguinte, poder despertar a compaixão do facínora. É possível que, após uma sodomização prazerosa, a vítima sinta até amor pelo facínora, talvez a sexóloga Suplicy saiba explicar isso.

Esta é a quinta monstruosidade.

Finalizando, há o aspecto político-institucional. É presumível que todos saibam que a primeira obrigação do Estado, sua própria razão de existir, é propiciar segurança para o cidadão contra agressões locais e vindas do exterior. Como, por motivos diversos, inclusive os apresentados anteriormente, atualmente o Estado não cumpre esta função, torna-se necessário torcer a realidade, impedindo, até, que os homens de bem busquem se defender. Isto seria a confirmação do fim do Estado Brasileiro. Assim, o mais elementar direito dos seres vivos, uma atitude que todo animal, da barata ao elefante toma se atacado, que é resistir ao ataque de predadores, é negada aos brasileiros. Sendo ilegal ter uma arma, aquele que quiser resistir ao agressor terá de fazê-lo com as mãos nuas, sendo obviamente morto. Para não ser, terá de ser passivo e covarde. A obrigação de ser covarde é a sexta monstruosidade que está implícita na legislação que FHC levou ao Congresso, com o apoio de Garotinho, Viva RioMotoboy, Dr. Gregori etc., etc.

Só resta, para concluir, que passe a ser obrigatório que nossas casas fiquem abertas , sem chaves ou cães. Que estacionemos com os carros abertos e com as chaves na ignição, que portemos, também obrigatoriamente, cem reais para serem cedidos ao primeiro excluído que os exigir. Bem como que nossas filhas e mulheres se exponham, já de antemão, para ser violentadas por pobres meninos carentes que as desejam e não são correspondidos. Com este adendo à nova lei, a violência termina e FHC será um estadista.

Notas

(1) Para mim, e para o conceito de República, quem representa a sociedade civil é o Congresso, para isso seus membros são eleitos. Não é, nem pode ser um ou vários grupos de ativistas autopromovidos. Isto é dever único dos parlamentares.

(2) Assim era ao longo de 5.000 anos de história, pode ser que agora seja diferente.

(3) A origem desse conceito está nos literatos russos do séc. XIX e no conceito marxista da luta de classes

A proibição de perguntar

Mendo Castro Henriques

Euronotícias, 17 de agosto de 2001

O Ministério da Educação anda a ser acusado por alcançar o que nem a Inquisição conseguiu: proibir Camões. Mas o que se passa é muito mais grave. Andam, sim, a proibir a capacidade de perguntar, a liberdade que só nasce quando aprendemos a pôr questões em conjunto com as grandes vozes e textos da humanidade, neste caso, em português.

O que está à vista é assustador. No Programa de Língua Portuguesa para os 10º, 11º e 12º anos dos Cursos Gerais e Tecnológicos, com 77 páginas, e que formará a mente de uns 90.000 adolescentes por ano, a partir de Outubro de 2002, o primeiro autor referido vem na p.36, e é Camões; os seguintes vêm na p.41: Vieira, Garrett e Eça; o último vem na p. 46, Pessoa, por suposto Fernando. Depois, Camões e Pessoa na p.61. E não há mais nomes, nem autores, nada. Em 77 páginas, é obra.

O que se passa é que a revisão curricular nivela por baixo os antigos Português A e B num único programa para cada ano do Secundário. Se os antigos programas do 10º ano tinham as líricas medievais e renascentistas, o actual propõe textos: “informativos”, “publicitários”, “dos media”, “de carácter autobiográfico”, “expressivos e criativos do séc XX” e “contos/novelas de autores do séc. XX”. Está-se a ver a “Lírica” de Camões a par das “Sandálias de Prata”, do Herman José, e da prosa de anúncios, requerimentos, declarações, e contratos. No 11º resistem Garrett, Vieira, e Eça reduzido a um romance. No 12º ano, vem Camões aliado a Pessoa. E mais “textos “, informativos, e dos media.

Perante este espectáculo, elementos do PSD denunciaram “um deplorável complexo de esquerda retrógrada que tem vergonha do passado de Portugal”. No PP, fala-se numa “tentativa de demolição nas gerações mais novas de factores preciosos da identidade portuguesa”. O presidente da CNAP refere “Os Lusíadas” como “documento histórico e cultural importantíssimo”. Elementos da esquerda aproveitaram para denunciar “os burocratas do ministério”; outros fizeram o elogio da literatura pura e “da festa da língua” violentadas por este programa inqualificável. Poucos lembraram como Teófilo começou a abalar a monarquia com o jubileu nacional de Camões, em 1880, em que “Os Lusíadas” “tornou-se para os portugueses o depósito dos germens da sua liberdade”.

Pormenor decisivo: os mais de 120 títulos da bibliografia do novo programa não incluem um estudo sequer sobre Camões, Garrett, Vieira, Eça ou Pessoa. Podia-se estar a falar de livros de cozinha, de manuais de Gulag, de literatura oriental ou de quaisquer outros textos. É o deserto dos conteúdos, recoberto da areia cinzenta das ciências ocultas da educação.

E por aqui se começa a perceber que o problema não é só “acabar com “Os Lusíadas” mas sim acabar com a capacidade de pôr questões. Há já muitos anos que “Os Lusíadas” não são dados na íntegra. Os alunos do secundário liam pouco mais de uma centena de entre as suas 1102 estrofes. Mas agora na ânsia de satisfazer os jovens sem paciência para ler, e dar-lhes textos à altura deles, esqueceu-se que a melhor aprendizagem da língua é a que resulta dos momentos literários culminantes e não dos usos banais. E isso requer interpretações.

A “História da Literatura Portuguesa”, de António José Saraiva e Óscar Lopes, formou uma geração inteira de professores de Português numa síntese instável de humanismo e marxismo. Sem obras de referência, Os Lusíadas e outros clássicos são ininteligíveis para o leitor comum. O que se reclama de cada época é que traga explicações inovadoras, conforme os paradigmas culturais, as perspectivas de comunicação e a sensibilidade estética. Por isso existem enormes bibliografias secundárias sobre a literatura portuguesa, e espectaculares meios audio-visuais e informáticos para auxiliar o estudo.

O cinzentismo do actual programa ignora tudo isso em nome das fatídicas Ciências da Educação. Está por fazer um balanço objectivo dos males que estas infligiram em trinta anos de Ministérios de Educação iniciados pelo Professor Químico Veiga Simão. Mas vê-se pelos resultados, e com horror, que o neo-positivismo dominante nas Ciências da Educação é um cancro da inteligência portuguesa. Opera com esplendor catedrático no que se refere às formas didácticas e como despachante de alfândega no que toca aos conteúdos. Aqui a responsabilidade é da Universidade Portuguesa, mais depressa liquidada pela relativização dos conteúdos que pela falta de vencimentos.

Já quanto à “política cultural”, a responsabilidade é do Governo, que desfaz de noite a rede tecida durante o dia. De dia manda o Ministério dos Negócios Estrangeiros celebrar a lusofonia, o Instituto Camões difundir a língua portuguesa, a Comissão para a Comemoração dos Descobrimentos divulgar o encontro dos povos, o Ministério da Ciência e Tecnologia financiar projectos de literatura de viagens, o Ministério da Cultura apoiar espectáculos camonianos. E pela noite, na cabecinha alegadamente rasca dos alunos portugueses, manda o Ministério da Educação apagar os vestígios da língua, do humanismo, e do universalismo do vate. Homero diz que Penélope esperava pelo marido. O Governo desespera (d)os portugueses.

Por fim, verifica-se que não basta desfazer-nos da Santa Inquisição e da PIDE fisicamente violentas, que proibiam as respostas. A Nova Inquisição educativa, mentalmente brutal, proíbe as perguntas: apenas permitirá comunicar no nível rebaixado do novo ensino.

Manda o bom senso que em Portugal se ensine e aprenda Camões, Fernão Lopes, Gil Vicente, Sá de Miranda, António Ferreira, Fernão Mendes Pinto, Bocage, Camilo, Antero, Cesário, Vergílio Ferreira, Torga, com igual entusiasmo com que os ingleses lêem Shakespeare, os espanhóis Cervantes, e os italianos Dante. Só mesmo os textos das famigeradas Ciências da Educação é que são idênticos em todas as línguas europeias.