Medalha do Pacificador

30 de agosto de 2001

Embora eu nunca tenha pacificado coisa nenhuma e tenha antes passado os últimos anos a arranjar encrenca em cima de encrenca, o Exército Brasileiro, representado pelo Comando Militar do Leste, me conferiu no dia 25 de agosto —Dia do Soldado — a Medalha do Pacificador.

Habitualmente indiferente a aplausos e homenagens, estou profundamente comovido com essa honra que a força terrestre me concedeu, pois, numa nação onde todas as instituições vêm se desmoralizando rapidamente, entre volúpias de autodestruição masoquista, o Exército brasileiro tem conservado bem alta a sua dignidade que, pensando bem, é a dignidade de todos nós.

Quando assumi a defesa dessa dignidade contra os ataques que lhe desferiam uns sujeitos levianos e hipócritas, sempre soube que estes me chamariam de reacionário, direitista, servo do imperialismo, etc. Pois servos do imperialismo são eles, que, corroendo incessantemente a honra do Exército Nacional a pretexto de vingar ofensas praticadas por meia dúzia de oficiais trinta anos atrás, acabam por colaborar servilmente com o projeto da Nova Ordem Mundial de desmontar as Forças Armadas da América Latina e transformá-las em polícias a serviço do neodespotismo globalista, do feroz monopolismo que se arroga — valha-nos Deus! — o prestígio do nome “liberal”. E a Nova Ordem bem lhes retribui, fazendo chover sobre suas organizações e partidos toda sorte de prêmios, incentivos, estipêndios e subsídios. Foi preciso que esta nação descesse ao fundo mais obscuro da cegueira moral para que indivíduos a soldo de potências estrangeiras tivessem o desplante de chamar de servo do imperialismo um defensor da integridade nacional. É, definitivamente, o reino da Novilíngua.

Mas com os militares ainda se pode falar o português claro e dizer, sem medo de represálias lingüísticas, que dois mais dois são quatro, que as vacas dão leite e as galinhas botam ovos, que imperialismo é imperialismo e Brasil é Brasil.

Estou cansado da lenga-lenga antimilitar que, nos círculos intelectuais, sempre foi emblema de bom-mocismo e sinal convencional da pretensa superioridade metafísica da gente de toga sobre a gente de farda. Nos últimos anos, só entre homens fardados encontrei interlocutores sensíveis, inteligentes, informados, capazes de perceber as sutilezas da presente situação do Brasil no mundo, as quais escapam, no entanto, àqueles doutores que por seu ofício teriam a obrigação de ser os primeiros a percebê-las. É que esses doutores se esclerosaram e mumificaram no culto idolátrico do seu próprio passado, se debilitaram na nostalgia de utopias onde já nem se distingue o cheiro do bolor e o do sangue, se corromperam até à completa paralisia intelectual no vício deprimente do ressentimento e do revanchismo, enquanto os militares, com devoção sincera, se renovavam, estudavam, pensavam, discutiam e zelavam pelo futuro do Brasil. Foi assim que a toga virou mortalha da inteligência e os homens de farda assumiram as responsabilidades da classe intelectual moribunda.

Estou, portanto, muito orgulhoso e profundamente comovido por ter sido objeto dessa atenção carinhosa que o Exército Brasileiro me devotou.

Que Deus lhes retribua, meus irmãos.

Olavo de Carvalho

Golpe de Estado

Olavo de Carvalho


Zero Hora (Porto Alegre), 26 ago 2001

Golpe de Estado é uma mudança súbita da ordem político-jurídica, realizada desde dentro do esquema de poder vigente. Quem quer que compreenda essa definição perceberá que a ação conjunta de jornalistas e procuradores para bloquear as investigações do Exército em torno das atividades ilegais do MST, da CUT e de algumas ONGs esquerdistas é nada mais, nada menos, que uma tentativa de golpe de Estado.

O sucesso ou fracasso dessa tentativa depende do que acontecerá nos próximos dias.

Se, convocado a prestar esclarecimentos ao Congresso, o comandante do Exército adotar uma atitude tímida, sacrificando ante o altar da fúria midiática oficiais que não têm outra culpa senão a de alguns excessos verbais cometidos na redação de um relatório, estará repentinamente instaurada neste país uma nova ordem legal, na qual a propaganda e a preparação de guerrilhas estarão sob a proteção do Estado e o que quer que se faça ou se diga contra elas será crime.

Marginalizado o Exército das investigações antiguerrilha, toda a autoridade sobre elas será transferida para a Polícia Federal, que o próprio jornal envolvido na denúncia contra o Exército informava, já em 1993, estar repleta de agentes das entidades agora investigadas.

Em suma, só o MST, a CUT, as ONGs esquerdistas e seus militantes e “companheiros de viagem” na imprensa terão o poder de investigar-se a si próprios, livres de qualquer interferência alheia. O encargo das investigações ficará, oficialmente, entregue à responsabilidade dos suspeitos.

Para impedir que isso aconteça, o comandante do Exército só tem uma atitude a tomar: recusar peremptoriamente qualquer explicação a esses indivíduos, e em vez disso acusá-los de conspiração para bloquear qualquer ação possível do Estado contra os que pretendam derrubá-lo à força.

Afinal, quem são esses procuradores que, no dia 25 de julho, se apropriaram de documentos sigilosos do Exército e, num inquérito conduzido “sob segredo de justiça”, tomaram a iniciativa de convidar um grupo de jornalistas de esquerda para que violassem o segredo mediante escandalosas denúncias estampadas na primeira página de um grande diário paulista?

São pessoas isentas ou são, eles próprios, militantes, simpatizantes ou colaboradores das entidades investigadas pelo Exército? E quem são esses jornalistas? São meros profissionais interessados em informar a opinião pública ou estão entre os 800 que, já em 1993, a CUT reconhecia ter em sua folha de pagamento?

Curiosamente, o próprio jornal, ao fazer-se de escandalizado ante o fato de que o Exército investigasse o que sua missão constitucional lhe ordena investigar, noticiava sem o mínimo espanto, e como se fosse a coisa mais normal e lícita do mundo, que o próprio MST tem seu serviço de espionagem, com “colaboradores informais” infiltrados nas Forças Armadas.

Sem a colaboração desses espiões, como poderia alguma informação sobre o inquérito do Exército ter vazado, seja para os procuradores, seja para os jornalistas?

Uma vez aceitas pelo seu valor nominal as denúncias do diário paulista, estará legalmente consolidado um estado de coisas que legaliza a espionagem esquerdista e criminaliza os serviços de inteligência das Forças Armadas.

Se isso é apenas um escândalo jornalístico e não um golpe de Estado, então as acepções desses termos devem ter mudado profundamente sem que eu me desse conta disso.

De todas as crises políticas já vividas por este país desde 1988, esta é seguramente a mais grave. E o que a torna especialmente mais alarmante é justamente que transcorra sem nenhum sinal de alarma em torno, que toda a população assista aos acontecimentos com a total indiferença de quem não percebe nem de longe o sentido do que se passa.

Aqueles que imaginem que as grandes mutações políticas têm de ser acompanhadas de anúncios espetaculosos e intensa emoção popular esquecem que foi precisamente numa atmosfera de indiferença e desconhecimento que se deu a derrubada do Império, inaugurando a longa série de revoluções e golpes de Estado que fez com que, ao longo do século XX, o Brasil nunca tivesse mais de quinze anos seguidos de ordem e democracia.

A nova ordem nacional

Olavo de Carvalho


O Globo, 25 de agosto de 2001

Nunca, na História do mundo, uma revolução comunista foi abortada com tão escasso derramamento de sangue como aconteceu no Brasil em 1964. Mesmo o regime autoritário que se seguiu, ao defrontar-se com a resistência armada dos derrotados, conseguiu desarticulá-la com um mínimo de violência: 300 mortos à esquerda, 200 à direita. Eis um placar que não permite, em sã consciência, fazer de um dos lados um monstro de crueldade, do outro uma vítima inerme e angelical — principalmente quando se sabe que a guerrilha não foi um último recurso encontrado por opositores desesperados após o esgotamento das alternativas legais, mas a retomada de uma agressão que, subsidiada e orientada desde Cuba, já havia começado em 1961, em pleno regime democrático.

Muito menos é razoável admitir a hipótese mongolóide —- ou mentira pérfida —- de que guerrilheiros armados, treinados e financiados pelo governo genocida de Fidel Castro, fossem democratas sinceros em luta contra a tirania, em vez daquilo que de fato eram: agentes revolucionários a serviço da mais sangrenta ditadura do continente, que só se opunham a um autoritarismo de direita em nome de um totalitarismo de esquerda.

Na mais modesta das hipóteses, o retorno à democracia deveria implicar, para os dois lados, a obrigação de confessar publicamente seus pecados e crueldades, bem como de renunciar formalmente ao uso futuro de qualquer meio de ação revolucionário, autoritário ou totalitário.

Não obstante, o fim do período militar não trouxe a pacificação, mas apenas a transferência dos combates do campo da luta armada para o da guerra de informações. Nesta nova fase, o conflito adquiriu uma feição das mais estranhas: só um dos lados prosseguiu combatendo, enquanto o outro se recolhia à passividade e ao silêncio, confiando, com boa-fé suicida, na cicatrização espontânea das feridas que seu adversário, enquanto isso, ia reabrindo à força, tenazmente, dia após dia.

Passados 37 anos do golpe e uma década e meia do retorno à normalidade, a campanha pertinaz e crescente de ódio aos militares e de beatificação dos comunistas poderia parecer apenas um sádico e gratuito exercício de revanchismo. Os poucos protestos que se elevaram contra ela condenaram-na precisamente nesses termos.

À luz dos acontecimentos das últimas semanas, porém, a aparente loucura revela toda a sua razão de ser, toda a premeditação certeira que a articulava por trás do pano. A deformação sistemática do passado não visava apenas a obter para os esquerdistas o consolo tardio e simbólico de uma vingança verbal, nem mesmo a valorizar sua mercadoria histórica na disputa por indenizações e pensões estatais. Visava a preparar o terreno para que, um dia, qualquer iniciativa das Forças Armadas contra o retorno da violência revolucionária pudesse ser denunciada, criminalizada e enfim bloqueada como ameaça de retorno à violência reacionária.

Esse dia chegou. Um conluio de jornalistas de esquerda, policiais federais e procuradores vem conseguindo fazer com que pareça um crime intolerável o Exército investigar uma entidade empenhada em fomentar guerrilhas, enquanto essa entidade, por seu lado, se gaba publicamente de ter seu próprio serviço de espionagem e o usa para dar apoio a esse mesmo conluio, sem que ninguém veja nisso nada de anormal ou condenável.

Políticos, repórteres, articulistas, comentaristas de TV, em uníssono, cobram do Exército, em tons de moralismo escandalizado, “explicações” sobre sua iniciativa de manter sob vigilância pessoas e entidades ligadas à ditadura cubana e aos narcoguerrilheiros genocidas das Farc, como se o crime não residisse nessas ligações mesmas e sim na ousadia de investigá-las para impedir que o Brasil se transforme numa Colômbia. Ao mesmo tempo, ninguém pergunta se, no vazamento de informações que desencadeou a investida dos policiais federais em busca de documentos sigilosos do Exército, houve alguma participação do serviço de espionagem ilegal mantido pelo MST. Também ninguém se pergunta se, ao abrir para jornalistas o acesso a documentos colhidos num inquérito realizado “sob segredo de Justiça”, os procuradores não agiram como dóceis instrumentos a serviço das entidades que o Exército investigava.

Ninguém se pergunta se esses procuradores e policiais federais não estão entre aqueles que, em 7 de julho de 1993, o mesmo jornal que agora incrimina o Exército acusava de constituírem um núcleo de agitação esquerdista montado para fomentar rebeliões dentro do aparato judiciário e policial.

Ninguém se pergunta se esses jornalistas estão entre os 800 que naquele mesmo ano a CUT reconhecia ter em sua folha de pagamento, ou se pelo menos não são militantes, colaboradores ou “companheiros de viagem” de uma esquerda que alardeia seu desejo de paz enquanto entrega as crianças nas escolas aos cuidados educacionais de agentes das Farc para que instilem nelas o ódio guerrilheiro.

E, quando o coro dos protestos é engrossado pelo maior partido político da esquerda nacional, ninguém se pergunta se essa organização, presidida por um ex-agente secreto cubano, tem mais isenção para opinar no assunto do que a teria, num caso de conspiração da direita, algum partido presidido por um agente aposentado da CIA.

Não, nada disso pode ser investigado. A nação, estupidificada pela propaganda, não se lembra, sequer, de que essas perguntas possam ser formuladas, mesmo em imaginação. Mas, para além de todas as perguntas possíveis, resta uma certeza histórica: um movimento político revolucionário que através da engenharia do escândalo consegue humilhar e pôr de joelhos as Forças Armadas para usurpar o controle do seu serviço de inteligência é, ponto por ponto, a repetição do que se passou na Alemanha entre 1933 e 1939.

Quem quer que aceite esse novo estado de coisas deve estar preparado para aplaudir a realidade política que ele instaura: proibido o Exército de investigar a propaganda e a preparação de guerrilhas, o monopólio dessas investigações ficará inteiramente nas mãos daquelas mesmas pessoas e entidades que ele vinha investigando. Uma pesada cortina de silêncio baixará sobre todas as operações paramilitares da esquerda, sobre suas ligações possíveis com a tirania cubana e com o narcotráfico. Colaborar em segredo com essas operações será atividade protegida pelo Estado, denunciá-las será crime. A esquerda terá conquistado o poder absoluto pelo meio mais simples, mais rápido e mais indolor -— sem insurreição, sem greves, sem protestos e até sem eleições —-, pela simples manipulação hábil de uma opinião pública reduzida ao estupor cataléptico, incapaz de atinar com o sentido das transformações que se desenrolam bem diante dos seus olhos.