Carta aberta a Luiz Nassif

José Nivaldo Cordeiro


10 de novembro de 2001

Acompanhei, como sempre faço, a sua coluna na Folha de São Paulo ao longo desta semana. Admiro-lhe a coragem e a versatilidade com que tem abordado temas alheios à economia. E sobre o caso Galdino, desde o primeiro instante senti que você iria se chocar com as patrulhas do policamente correto, dos ignorantes que não conseguem distinguir barbárie de civilização, que permite a ampla defesa do acusado, supõe a inocência do réu até que a sentença seja exarada e determina que as provas sejam devidamente debatidas e analisadas pela defesa e pela acusação. Cabe ao juiz cumprir a Lei, procurando manter distância das paixões de momento das massas ensandecidas. É um dos requintes da nossa herança greco-romana-judaico-cristã.

Mas vivemos no Brasil tempos difícieis, em que qualquer militante integrante de algum grupelho esquerdista se arvora, ao mesmo tempo, em juiz, juri, advogado de acusação, polícia e carrasco. Especialmente aqueles que estão na imprensa, cuja função de carrasco é exercida antes mesmo de se inicar o processo de acusação. Exemplo disso é o que a própria Folha de São Paulo estampa na sua edição de hoje sobre o caso Eduardo Jorge, que depois de sórdido linchamento moral teve formalmente reconhecido pela Justiça que não há provas que o incriminem. Acusados que são metafórica e, às vezes, literalmente linchados em praça pública pela turba e pela imprensa irresponsável, são declarados inocentes, à luz das provas reunidas. Como reparar o horror de tamanha injustiça? Nada há que pague isso.

Quero cumprimentá-lo pela coragem e pela integridade moral. Essas qualidades estão cada vez mais raras em nossos tempos. Seu trabalho jornalístico tem engrandecido os seus leitores.

Cordialmente

José Nivaldo Cordeiro

 

Cabeças

Olavo de Carvalho


O Globo, 10 de novembro de 2001

Por menos que se queira diabolizar o comunismo, um ponto em comum entre ele e o diabo é uma realidade inegável: ambos fazem menos dano a seus inimigos do que a seus amigos. Todos os regimes de direita, somados, mataram menos comunistas do que Stalin ou Mao individualmente, e em parte alguma da América Latina se fuzilaram tantos revolucionários de esquerda quanto em Cuba: dos veteranos de Sierra Maestra só sobraram praticamente Fidel e seu irmãozinho Raul.

Esse dado é bem conhecido, mas raramente se extrai dele a mais óbvia das conclusões: tentar aplacar a fúria comunista com agrados, lisonjas e propinas é infinitamente mais perigoso do que combatê-la de frente. Juro, amigos: eu, que não passo um dia sem cuspir nos ícones da esquerda, corro menos risco, na hipótese da ascensão dos comunistas ao poder, do que aquele que tente seduzi-los com sorrisos forçados, presentinhos extorquidos e beijocas insossas de garotinha assustada. De mim eles têm raiva e medo. Daquele, não têm senão desprezo — o desprezo do estuprador que, ao gozar no corpo da vítima, já entrevê o corpo dela morto e jogado aos urubus.

Penso nisso ao contrastar a imagem de feras domesticadas, mansas e bondosas que os jornalistas de esquerda têm neste país, com os urros de ódio à “imprensa burguesa” que eles deram ainda há pouco no “Congreso de Periodistas Lationoamericanos y Caribeños”, realizado em Havana entre 8 e 11 de outubro sob o lema “Un nuevo periodismo”. Urros de ódio que não ficaram nisso, mas foram seguidos por juras de morte e planos muito bem definidos para executá-las num prazo que surpreenderá, pela rapidez, cada empresário auto-satisfeito que se gabe de ter domado seus comunistas de estimação à força de cheques, afagos e promoções.

Jornalistas de 29 países — inclusive o nosso — participaram do encontro, que, preparatório ao Fórum Mundial de Educação anunciado para o ano que vem no Rio Grande do Sul, teve o apoio da prefeitura de Porto Alegre e foi abrilhantado por um lindo discurso do sr. Fidel Castro — aquele mesmo Fidel Castro que, na sua última visita ao Brasil, foi cortejado até o limite da obscenidade pela burguesia local.

Das teses aplaudidas pelo simpósio, publicadas pelo jornal chileno “El Siglo” de 26 de outubro, três são especialmente interessantes:

Primeira: o jornalismo da América Latina ainda “não está à altura das lutas travadas pelo povo da região”.

“À altura”? Todos os cargos conquistados, todas as páginas concedidas, sem réplica, ao assassinato moral de anticomunistas, toda a amoldagem do vocabulário aos cânones politicamente corretos, todo o ataque maciço à moralidade religiosa tradicional, toda a eliminação de qualquer anticomunismo explícito, toda a supressão de notícias inconvenientes ao renascimento do comunismo, toda a progressiva e implacável redução do espaço dos liberais e conservadores que não consintam em ater-se a inócuas objeções econômico-administrativas, toda a glamurização idolátrica de artistas e intelectuais militantes, tudo isso — toda a hegemonia gramsciana, em resumo — não basta. Os comunistas exigem mais. Precisamente, que mais? Leia a segunda tese.

Segunda: é preciso “romper o bloqueio informativo estabelecido pelas grandes cadeias de imprensa” em torno do regime cubano; desencadear, como resumiu Fidel, “la batalla de la verdad contra la mentira”.

Pelo menos no Brasil, o único bloqueio vigente é o de notícias contra Cuba. Há 30 anos não leio em nossos jornais uma única menção aos prisioneiros políticos em Havana, às armas bacteriológicas desenvolvidas no laboratório de “La Fabriquita”, às ligações entre o governo cubano e o narcotráfico, aos intermináveis fuzilamentos de fugitivos, aos últimos livros proibidos, à nova tabela de preços das “gineteras” (um sanduíche, um maço de cigarros), à eficácia invejável de um Estado policial que tem um olheiro para cada 28 habitantes. Em contrapartida, lêem-se toda semana imprecações contra o bloqueio econômico americano, homenagens chorosas à memória do Che, recordações nostálgicas de nossos velhos terroristas em Havana, notícias de prêmios, cargos, desagravos e indenizações concedidos a assassinos profissionais treinados em Cuba.

Mas tudo isso ainda “não está à altura”. E tudo o que não esteja à altura da expectativa de Fidel — é bloqueio. A que altura se pretende chegar na luta pela sua remoção, eis o que se torna explícito na terceira tese.

Terceira: destruir a liberdade de imprensa “burguesa” defendida pela SIP, Sociedade Interamericana de Imprensa, e implantar no continente a verdadeira liberdade de imprensa, tal como existe… em Cuba! Sim, a liberdade de imprensa que conhecemos é apenas a liberdade “de um grupo de indivíduos poderosos”. Liberdade efetiva, completo direito à informação, só em Cuba.

Como funciona esse direito à informação, todos sabemos. Cabrera Infante deu-nos uma descrição dele em “Mea Cuba”. Todas as editoras são do Estado. Para publicar o que quer que seja em livros ou periódicos o sujeito tem de se inscrever num sindicato que, ao primeiro desvio da política oficial, cassa o seu registro. Aí o ex-jornalista vai procurar emprego, mas é proibido dar emprego a quem tenha sido expulso de um sindicato. Ele pode pedir ajuda aos amigos, mas dificilmente eles vão dar, porque é crime ajudar um inimigo do Estado. Restaria a mendicância, se também não fosse proibida, ou o exílio, se sair de Cuba não fosse mais proibido ainda. Mas, se o sujeito sobreviver aos tiros da polícia marítima e escapar incólume aos dentes dos tubarões no mar do Caribe, a bordo de um pneu, poderá talvez arranjar emprego em algum jornal de exilados em Miami. E aí tudo o que ele escreva sobre o que passou em Cuba será impugnado pelo mundo afora — sobretudo no Brasil — como sórdida propaganda emanada da “máfia cubana”.

Tal é o tipo de liberdade que os 300 jornalistas signatários da declaração final do congresso desejam para nós.

Se, diante disso, ainda há quem ache que a ânsia de poder dos comunistas pode ser aplacada mediante promoções e afagos ou mediante o sacrifício ritual de algum reacionário sobrevivente, pense nisso: nenhuma ambição pode ser mais forte que a de tornar-se um “transformador do mundo”. Quem, sonhando com poderes demiúrgicos, há de se contentar com um emprego na mídia? Não há emprego, não há lisonja, não há amizade que possa desviar de seu objetivo a casta de intelectuais ativistas que aspira a moldar a Humanidade, como Deus, à sua imagem e semelhança.

Ou vocês arrancam o comunismo da cabeça dessa gente, ou ela arrancará suas cabeças. As suas, primeiro. A minha, depois, talvez.

 

A voz do trovão

 

José Nivaldo Cordeiro

A revista Época dividiu por quatro o espaço ocupado pelo filósofo Olavo de Carvalho em suas páginas, vez que a sua coluna semanal passou agora a ser mensal. À primeira vista pode parecer um mero ato administrativo interno daquele periódico, mas não é assim. Olavo de Carvalho é uma das maiores referências nacionais do pensamento liberal e conservador e mexer com ele é um ato político contra essas correntes de pensamento. Não se cala impunemente uma voz de trovão. Houve troca de direção na revista, isso é certo, mas com ela chegou a ordem de minimizar o clarão dos relâmpagos e o fogo dos raios saídos da pena de nosso maior polemista vivo, que está incomodando muita gente.

É preciso que se diga que Olavo de Carvalho tem sido uma das poucas vozes dissonantes em nosso meio intelectual, dos poucos que não apenas se recusa a fazer coro com a ação gramsciana, mas a denuncia firme e claramente, sem medo de peitar os áulicos da academia, do governo, da política. Tem sido um analista ferino das coisas nacionais e dá o devido nome aos bois: o destemido filósofo é hoje a referência nacional contra a maré vermelha e tem aberto os olhos de muita gente para as mentiras e falsificações que o meio letrado – da academia aos órgãos de imprensa – têm militantemente realizado em nosso país.

Calar Olavo é impedir que uma multidão de homens e mulheres ouça o murmúrio da fonte mais cristalina do saber.

Mas não é possível calá-lo. A revista Época não é o único canal a fazer chegar seus dardos flamejantes sobre a cabeça dos filisteus. Ele tem acesso a outros meios de expressão para seus escritos, mas não resta dúvida que retirá-lo da revista, ainda que parcialmente – de uma tribuna tão notável! – não deixa de ser um ato de censura e uma tomada de posição política contra os leitores que o têm em mais alta conta.

Na verdade, todo o público leitor de tendência liberal e conservadora, que enxergava na revista Época a sua publicação preferida, ficou órfão, em prejuízo da própria revista, que perderá leitores, a começar por mim. Só comprarei os exemplares que contiverem os seus artigos, o que estou recomendando a todos os amigos e conhecidos, admiradores de Olavo de Carvalho, que não são poucos.

6 de Novembro de 2001