Gonçalo Armijos Palácios
Opção (Goiânia), 18 de novembro de 2001
Pode parecer estranho, mas é isso mesmo. Vamos falar de uma caverna em que brilha (mas não queima) a luz do Sol e dentro da qual, presos por grilhões, uns homens se reproduzem sem o auxílio das mulheres. Nesta caverna, quem entra sai e quem sai se adentra. Estes milagres, e outros mais portentosos que o da multiplicação dos pães, encontramos na ‘leitura’ que a Dra. Marilena Chaui faz de Platão e que reproduz no seu alucinante Convite à filosofia (São Paulo : Ática, 1995). A Dra. Chaui explica o mito já na Unidade 1, Capítulo 3.
Contemos a história como ela foi narrada pelo seu autor. Na República (Livro VII), Platão pretende exemplificar nossa condição no que diz respeito ao conhecimento. No diálogo, Sócrates pede a Glauco imaginar uma caverna subterrânea. “Estão lá dentro desde a infância”, diz, uns homens acorrentados de pernas e pescoços, “de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente”, para o fundo da caverna, sem poder olhar uns para os outros. A iluminação, diz Sócrates, provém “de um fogo que se queima ao longe, numa eminência, por detrás deles”. Entre o fogo e os prisioneiros há um caminho “ao longo do qual se construiu um pequeno muro”. Por esse caminho passam “homens que transportam toda espécie de objetos… estatuetas de homens e de animais, de pedra e de madeira (…) dos que os transportam, uns falam, outros permanecem calados”. Pois bem, o único que estes homens acorrentados poderão observar é as sombras dos objetos projetadas no fundo da caverna. Como os homens que passam pelo muro, atrás deles, falam entre si, ouvirão os ecos que chegam a eles do fundo da caverna, atribuindo a origem dos sons às próprias sombras. “De qualquer forma” – afirma Sócrates -, “pessoas nessas condições não pensavam que a realidade fosse senão a sombra dos objetos.”
Essa é a caverna e os prisioneiros como Platão os descreve. Agora vejamos a mesma explicação na versão erótico-tropical da Dra. Marilena Chaui: “Imaginemos uma caverna subterrânea onde, desde a infância, geração após geração [!!] seres humanos estão aprisionados.” (p. 40) Geração após geração!!?? É essa uma ‘informação’ adicional interessantíssima. Porque, se estão acorrentados e não podem mexer a cabeça nem as pernas, como será que conseguem mexer outros órgãos para conseguir reproduzir, não uma, mas várias gerações? Enquanto os prisioneiros de Platão estavam ali desde sua infância, os da Dra. Chaui conseguem, imóveis, produzir várias e várias gerações! Como dizia no início, isso é mais portentoso que o milagre da reprodução dos pães. Mas vamos deixar isso. Enquanto a fogueira de Platão está, e só podia estar, dentro da caverna para projetar sombras no fundo dela, a fogueira da Dra. Chaui está na parte de fora! Pois, segundo ela, há uma abertura que permite a luz de fora iluminar lá dentro. Diz ela: “A entrada da caverna permite que alguma luz exterior ali penetre, de modo que se possa, na semi-obcuridade, enxergar o que se passa no interior.” Ora, se a luz penetra na caverna, para que precisaria Platão daquela fogueira dentro da caverna? Para a Dra. Chaui, a luz que penetra é da fogueira que está na parte de fora! Difícil de acreditar? Pois segurem seus queixos: “A luz que ali entra provém de uma imensa e alta fogueira externa“! (Meu grifo) Será que a Dra. Chaui usou a palavra equivocada? Não, ela insiste em que a fogueira é exterior e o diz no próximo período: “Entre ela e os prisioneiros – no exterior portanto – há um caminho ascendente ao longo do qual foi erguida uma mureta…” (Meu grifo) Aqui acabamos de ser informados que também a mureta está na parte exterior da caverna. Como pode uma fogueira exterior a uma caverna subterrânea produzir, no fundo dessa caverna, as sombras dos objetos que estão dentro da caverna? Esse talvez seja um desses mistérios que só no além poderemos compreender… Se a fogueira está na parte de fora e a caverna é subterrânea, isto é, não está no mesmo nível que as coisas fora da caverna, a luz da fogueira só poderia produzir as tais sombras se percorresse o espaço, contra todas as leis conhecidas, descrevendo ângulos retos, obtusos ou agudos…
Que a tal fogueira se encontra fora da caverna, contrariamente ao que o próprio Sócrates afirma, é dito pela Dra. Chaui com todas as letras e em mais de uma oportunidade. Numa parte da sua intervenção, Sócrates pergunta que aconteceria se libertássemos um desses prisioneiros, o transportássemos para onde está o fogo e, depois, para fora da caverna, para onde está o Sol: “Logo que alguém soltasse um deles, e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso, sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objeto cujas sombras via outrora.” (515c) “Portanto, se alguém o forçasse a olhar para a própria luz, doer-lhe-iam os olhos e voltar-se-ia, para buscar refúgio junto dos objetos para os quais podia olhar…” Não cabe dúvida de que é a fogueira o que o prisioneiro vê primeiro pois só olhando primeiro para a fogueira poderia depois, ao sair da caverna, ver a luz do Sol: “E se o arrancassem dali à força e o fizessem subir o caminho rude e íngreme – diz Sócrates -, e não o deixassem fugir antes de o arrastarem até à luz do Sol, não seria natural que ele se doesse e agastasse…?” (515e-516a) Aquele prisioneiro que fosse forçado a sair da caverna, só depois de muito tempo, depois aliás de passar uma noite inteira, poderia, o dia seguinte, se acostumar com a luz do Sol e enxergar o próprio Sol. Vejamos: “Precisava de se habituar, julgo eu, se quisesse ver o mundo superior. Em primeiro lugar, olharia mais facilmente para as sombras, depois disso, para as imagens dos homens e dos outros objetos, refletidas na água, e, por último, para os próprios objetos. A partir de então – continua Sócrates -, seria capaz de contemplar o que há no céu, e o próprio céu, durante a noite, olhando para a luz das estrelas e da Lua, mais facilmente do que se fosse o Sol e o seu brilho de dia. (…) Finalmente, julgo eu, seria capaz de olhar para o Sol e de o contemplar…” (516a-b) (Meus grifos) Segundo a Dra. Chaui, as coisas se passam de outro modo. Uma vez libertado, seu prisioneiro já enxerga a fogueira que é o próprio Sol: “Num primeiro momento, ficaria completamente cego, pois a fogueira na verdade é a própria luz do sol e ele ficaria inteiramente ofuscado por ela.” Temos, então, esta sui generis alternativa: ou Sol está lá dentro, por ser a própria fogueira, ou a fogueira está de fora, por ser o próprio Sol!
O mito da caverna é, sem dúvida, a passagem mais reproduzida e explicada em toda a história da filosofia. Não há aluno nessa área que não tenha sido obrigado a ler ou a escutar uma aula sobre o que Platão quer dizer com ele. Como o próprio leitor pode notar, não há nenhuma dificuldade em compreender o que Platão diz nem em visualizar o interior da tal caverna, o fogo, o caminho, o muro e, do outro lado do muro, acorrentados e olhando para o fundo da caverna, os prisioneiros. Como é possível afirmar que a fogueira é o próprio Sol? Que espécie de sortilégio faz aparecer gerações de prisioneiros? Por geração espontânea talvez? Será que os alunos do Departamento de Filosofia da prestigiosa Universidade de São Paulo são expostos unicamente a esta versão esdrúxula de uma das passagens mais conhecidas e menos problemáticas do pensamento ocidental? A resposta é “não”. Depois veremos que, nas mãos da autora de Convite à filosofia, o heliocentrista e copernicano Kant se torna – mais um milagre – ptolemaico e geocentrista, isto é, sua mesmíssima antítese.
Se tudo isso é um convite à filosofia e ao templo do saber, Deus livre os jovens de seus anfitriões!
Gonçalo Armijos Palácios é Doutor em filosofia, autor do livro “De Como Fazer Filosofia Sem Ser Grego, Estar Morto ou Ser Gênio” (veja www.multimania.com/palavracesa/goncalo.htm) e professor da Universidade Federal de Goiás)