Meu mergulho no esterco

Olavo de Carvalho

23 de março de 2002

Resposta às observações de S. Excia. o Sr. (ex-) Ministro da Justiça quanto ao meu artigo “Carta ao Ministro”,publicado em Época de 23 de março de 2002

  1. Embora seja um tanto desconfortável ter de chamar de Excelência um indivíduo no qual não vejo excelência alguma, responder às observações publicadas em Época de 30 de março pelo sr. Ministro da Justiça (a esta altura já ex-ministro) não será tarefa de todo desprovida de encanto e diversão.

          2. Há um prazer inegável em discutir com um adversário que me acusa de, sondando os mistérios de sua vida pública e de seu caráter, “mergulhar no esterco”. Eu jamais teria pensado numa expressão tão sugestiva para descrever a substância em que andei bracejando nas profundezas do mundo político e mental de S. Excia. Nem asseguro que seja termo literalmente preciso. Mas uma coisa não hei de negar: se non è vero, è ben trovato.

          3. Também não deixa de ser uma experiência agradável o enfrentar-me com um debatedor que, na ânsia de mostrar habilidade, mete valentemente o sorvete na própria testa já nas primeiras linhas da sua missiva, ao proclamar, com relação à narrativa jornalística do seu confronto com o Dr. Tasso Jereissati, que, “na medida em que o governador e eu nos abstivemos de comentar o assunto proliferaram, naturalmente, as versões”. Pois fato, segundo todos os dicionários, é o que é relatado por testemunhas diretas, e versão o comentário posterior, sobretudo feito pelas partes interessadas. Ao noticiar as palavras grosseiras ditas pelo ministro durante uma refeição de Natal, o Correio Braziliense e Época nada mais fizeram que reproduzir o fato segundo relatado por testemunhas. O que quer que o sr. Ministro acrescentasse à notícia depois de publicada não poderia ser senão opinião, interpretação, versão. Inverter agora o sentido das palavras, fazendo dos testemunhos versões e dos comentários fatos, isto sim é tentar sobrepor à realidade a versão e, pior ainda, fazê-lo mediante um trejeito dialético de um primarismo deplorável.

          Em segundo lugar, S. Excia., assim como confunde fato e versão, troca também o singular pelo plural. Como dizer que “proliferaram as versões” se, justamente, um só relato foi publicado, idêntico e invariável, no jornal e na revista, e se ninguém, nem mesmo os personagens envolvidos, abriu jamais a boca para desmenti-lo ou corrigi-lo?

          Em terceiro lugar, o detalhe mais notável: mesmo agora, ao protestar contra a publicação de suas palavras, o ministro não as desmente por extenso, limitando-se a alegar que “não obstante a aspereza da troca de palavras, nós (isto é, ele e o governador Jereissati) nos mantivemos no terreno da crítica política”. Ora, as palavras mencionadas no Correio e em Época foram as seguintes: “Está olhando o que? Não tenho medo de você. Não quero bater num safenado.” Foram essas as palavras que considerei injuriosas e perversas, sobretudo porque dirigidas em tom ameaçador a um homem que, operado recentemente, não tinha a menor condição de entrar em confronto muscular com S. Excia.

          Dando-se ares de quem vai desmenti-las, S. Excia. se esquiva espertamente de esclarecer se jamais pronunciou a injúria ou se, tendo-a pronunciado, a considera apenas uma “crítica política” sem qualquer sentido ofensivo. Dito de outro modo: não dá para saber, pelo texto do desmentido, se S. Excia, nega o fato ou apenas sua tipicidade jurídica.

          As ambigüidades, afinal, existem precisamente para tirar do aperto quem não pode dizer o português claro.

          4. Também fingindo desmentir que tenha havido algo de indecoroso na indenização dada com dinheiro público à sua ex-esposa pelos crimes que ela própria cometeu, o ministro confessa que a portaria que a determinou não foi assinada pelo seu antecessor, e sim por ele próprio, sem o mínimo reexame da decisão tomada e não executada pelo dr. José Gregori, o qual o próprio ministro Nunes Ferreira, usando aliás de uma expressão tão do seu agrado, dificilmente hesitará em reconhecer como “alguém da sua laia”.

          5. O belo discurso do dr. Nunes Ferreira quanto ao “sagrado direito de rebelião contra uma tirania insuportável” jamais poderá abolir a ordem cronológica dos fatos: a dita rebelião começou três anos antes da “tirania insuportável” e depois  usou o advento desta como pretexto para dar à sua iniciativa belicosa, retroativamente, as aparências de uma legítima autodefesa.  Mas por que o homem que confunde tão galhardamente fatos e versões, singular e plural, não confundiria também o antes e o depois? Também é fato, e as palavras do dr. Nunes Ferreira não podem mudá-lo em nada, que entre 1964 e 1968 a tal “tirania insuportável” se limitou a demitir figurões e cassar mandatos — não se lhe podendo imputar outra maldade senão a de ter cortado as asinhas políticas de tipos ambiciosos como ele próprio –, e só começou a usar de violência contra a esquerda depois que esta já havia explodido 84 bombas, matando e ferindo umas dezenas de pessoas que o ministro ou ex-ministro exclui a priori da categoria dos “patriotas”, reservada por certo a pessoas que trabalharam para regimes democráticos como os da Alemanha Oriental e de Cuba. Igualmente verdadeiro é que, se a atmosfera de cassações e demissões podia ser “insuportável”, só um patológico mau gosto haveria de julgar mais confortável o ambiente de fuzilamentos generalizados, prisões arbitrárias e tortura em massa no qual os Nunes Ferreiras e tutti quanti foram buscar abrigo e ajuda.

          Mais ainda: o termo “direito de rebelião” só pode ter alguma validade quando a situação política contra a qual alguém se rebela exclui toda possibilidade de oposição pacífica. Tal é, precisamente, a argumentação subentendida no emprego que S. Excia. faz da expressão. Mas como admitir que a guerrilha brasileira nascesse da inexistência de meios pacíficos de oposição, se ela brotou justamente de um “racha”, no seio do próprio Partido Comunista, entre a minoria que julgava dever partir para a violência e a maioria que, lendo Gramci, apostou (e venceu) na viabilidade maior da luta pacífica? Se algo a história daquele período deixou claro, foi que o governo militar concentrou suas baterias no combate à guerrilha, dando campo livre à atuação da esquerda pacífica não somente infiltrada nos partidos legais mas autoconstituída, já então, em senhora e dona absoluta dos meios culturais e jornalísticos, tanto que jamais, na história brasileira, a indústria de livros esquerdistas floresceu como naqueles anos, coisa provada e arquiprovada pelos registros da Câmara Brasileira do Livro. A própria história subseqüente do Partido Comunista, com a completa derrota da guerrilha e a vitória incontestável da “revolução cultural” gramsciana, basta para impugnar toda tentativa de legitimar a guerrilha pela suposta ausência de canais pacíficos de oposição ao governo militar.

5. S. Excia. acusa-me de “tomar as dores” da empresa maranhense vasculhada pela Polícia Federal numa ação cujos resultados judiciais serão incertos e de longo prazo mas cujo efeito eleitoral, que S. Excia. finge nem perceber, foi imediato e inquestionável.

          Não me espanta que o homem capaz de tentar intimidar fisicamente um recém-operado seja também capaz de lançar uma insinuação dessa ordem contra um jornalista que uma semana antes, em vez de tomar as dores de quem quer que fosse, já havia manifestado de público todo o seu desprezo pela candidatura lesada, e que por isso nem tem por que se defender de uma imputação que antecipadamente já se anulou a si mesma.

          Mas chega a ser admirável a facilidade com que S. Excia. desce, num relance, da pose altiva de dignidade ofendida aos golpes rasteiros da intriga de botequim, com a ressalva de que é tão inábil numa coisa como na outra.

          Quanto à operação referida, bem sei que obedeceu a todos os trâmites formais, nada podendo se lhe imputar de ilegal. Mas a escandalosa oportunidade eleitoral da data escolhida para realizá-la mostra que a lei às vezes tem outras utilidades além da manutenção da ordem e da justiça. Quem disse “Para os inimigos, a lei” ensinou que não é preciso fazer nada de ilegal contra os desafetos, quando se pode simplesmente usar do aparato legal como de um porrete ou de uma gazua — e aliás alguns ministros da Justiça são nomeados especialmente para isso.

          6. S. Excia. chama-me “filósofo de meia tigela”. Confesso que essa imputação me deixa um pouco atônito, pois jamais me ocorreu que se pudesse filosofar com tigelas. Não me lembro de jamais ter lançado mão de um desses utensílios, seja inteiro, seja pela metade, no exercício dos meus discretos afazeres filosóficos, dos quais suspeito que S. Excia. não saiba grande coisa, donde sua extravagante presunção de avaliá-los pela capacidade das tigelas que ele aí supõe utilizadas.

          Confesso que a idéia que o sr. ministro faz da filosofia me escapa totalmente. Para mim, essa é a parte mais enigmática da sua carta. A julgar, porém, pelo uso que ele faz da primeira e mais elementar das disciplinas filosóficas, que é a lógica, creio que não me conviria de maneira alguma pedir-lhe mais explicações a respeito, pois ele poderia querer trocar idéias sobre o assunto e, inevitavelmente, eu levaria prejuízo na troca.

          7. S. Excia., imaginando que com isto vai trazer algum dano à minha argumentação, acusa-me de usar o termo “terrorista” como o usava a Gestapo para denegrir os alemães que atentaram contra a vida de Hitler. A imagem não é nada boa, porque os autores do atentado eram aristocratas conservadores, e a Gestapo a polícia política de um Estado socialista. S. Excia. não deveria abusar desses giros retóricos pueris que só melam mais um pouco sua reputação já nada invejável. E a palavra “terrorista” tem atualmente uma acepção tecnicamente fixada que nenhum advogado sério pensaria em tergiversar. S. Excia. e sua digníssima esposa foram terroristas no sentido mais estrito e menos pejorativo do mundo, e qualquer uso próprio ou impróprio que a Gestapo ou quem quer que fosse possa ter feito do termo meio século antes não muda isso em nada. Mais ainda: disse e repito que S. Excia. jamais condenou explicitamente o recurso político aos assaltos, aos seqüestros e às bombas cujo emprego define, precisamente, a atividade terrorista. Limitou-se a declarar que nem sempre são oportunos em certas circunstâncias, observação que nem bin Laden ou Carlos o Chacal hesitariam em endossar.

          8. Por fim, uma mensagem direta ao ex-ministro:

Se V.. Excia tem por mim sentimentos análogos aos que nutre pelo Dr. Jereissati — e, pelo texto da sua carta, não vejo quais outros poderia ter –, não deve refrear a expressão deles como o fez, entre dentes, no infausto encontro de Natal. Seu colega do Ministério da Saúde nada lhe adverte quanto a esse ponto, mas o fato é que fingir autocontrole quando a baba já começa a lhe escorrer pelo canto da boca pode fazer mal ao coração de V. Excia., tornando-o candidato a usuário de pontes de safena.

Portanto, Excia., se tem negócio comigo, não se iniba: estou com um pouco de gripe, mas não sou safenado nem cardíaco, nem me consta jamais ter corrido de medo de quem quer que fosse.

Com meus melhores votos,

Olavo de Carvalho

A maior fábrica de mentiras

Olavo de Carvalho


O Globo, 23 de março de 2002

Oficiais do FBI andam dizendo que o núcleo vivo do terrorismo internacional não está em Bagdá ou em Cuba, mas dentro dos EUA, onde entrou de contrabando na bagagem da imigração irrestrita. Mas essa maciça importação de encrencas não começou do nada. Foi longamente preparada pela “revolução cultural” que, desde os anos 60, impôs como doutrina oficial do governo e das elites americanas todo um repertório de crenças que, antes, até uma criança saberia reconhecer à primeira vista como amostras típicas do discurso stalinista.

Não há hoje uma só universidade americana que não subscreva como autêntico relato da história da guerra do Vietnã as mais torpes invencionices da propaganda vietcongue, ou que não aceite como descrição adequada da geopolítica mundial a idéia de que a mais agressiva potência imperialista que já existiu são os EUA — uma potência que, não obstante, jamais manteve sob ocupação um país estrangeiro, que, bem ao contrário, sempre ajudou seus inimigos derrotados a reerguer-se como nações independentes e que, no conjunto das guerras em que se envolveu ao longo de um século, matou menos gente do que a China matou só no Tibete ou a URSS no Afeganistão.

Não há uma só universidade americana que não ensine que o Ocidente cristão foi a mais escravagista das civilizações, quando na verdade foi a única civilização antiescravagista que já existiu e, confrontada com o recrutamento de trabalho escravo durante apenas umas décadas na URSS e na China comunista, a totalidade do escravismo ocidental de dois milênios se reduz um fenômeno de proporções bem modestas.

Não há uma só grande universidade americana que não ensine que o “macarthismo” dos anos 50 foi uma cruel perseguição a inocentes, quando hoje se sabe, pelos Arquivos de Moscou, que praticamente todos os interrogados pelo Comitê McCarthy estavam realmente a serviço da espionagem soviética.

Nas artes e espetáculos, o panorama não é diferente. Filmes, peças de teatro, shows, exposições de pinturas e fotografias, uma boa parte com financiamento oficial, são um incessante bombardeio de propaganda esquerdista. O leitor pode avaliar o conjunto por uma amostragem simples: veja quantos filmes americanos produzidos desde os anos 60 passam num só dia nos vários canais de TV a cabo e anote quantos deles contêm mensagens de antiamericanismo explícito ou pelo menos implícito. São praticamente todos. E ainda há na nossa imprensa canalhas ou imbecis que exploram o estereótipo de Hollywood como “usina de sonhos” (expressão do crítico comunista Bela Balász) voltada à glorificação do “american way of life”. Hollywood tornou-se uma máquina de propaganda comunista e de arrecadação de fundos para o Comintern já desde a década de 30, numa operação engenhosa e sutil coordenada pessoalmente por Stálin, e até hoje não mudou em nada. As manifestações de ódio compacto da classe cinematográfica a Elia Kazan -— um patriota que ousou falar contra o genocídio stalinista -— já bastariam para ilustrar o que estou dizendo. Mas, se têm dúvidas, leiam “Hollywood Party”, de Kenneth Billingsley, e pasmem diante da astúcia com que a “intelligentzia” comunista soube tirar proveito do “show business” e ainda denunciá-lo como instrumento do imperialismo ianque.

E a imprensa, então? Já na década de 30, o “New York Times”, por meio de seu correspondente em Moscou, Walter Duranty, homem da KGB, ocultou premeditadamente a extinção de seis milhões de ucranianos pela “arma da fome”, como a chamava Stálin. Desde então, a falsificação pró-comunista do noticiário cresceu em escala industrial. Leiam “Bias”, de Bernard Goldberg, “Beyond Elian Gonzalez”, de Carlos Wotzkow e Agustin Blazquez, e “Cuba in revolution”, de Miguel A. Faria Jr., e verão que não há limites para a mendacidade comunista que se apossou da grande mídia nos EUA.

Ao irradiar-se sobre o Terceiro Mundo, a falsificação do noticiário americano chega a produzir efeitos de uma absurdidade grotesca. Recentemente, no Brasil, houve intensa mobilização de esquerdistas contra uma planejada homenagem ao sr. Henry Kissinger. Acusavam-no de conspiração em favor da ditadura de Augusto Pinochet e até de envolvimento no assassinato de um general chileno de oposição. Bem, pode até ser que Kissinger estivesse metido nessas coisas. Isso faria dele um criminoso, é claro. Mas não há provas concludentes de nada disso. Em compensação, é pública, notória e arquiprovada a cumplicidade ativa do ex-secretário de Estado no maior genocídio ocorrido no mundo desde o fim da II Guerra. Ao negociar a paz no Vietnã, sua preocupação essencial foi a de evitar que os vietcongues desmobilizados caíssem nas mãos do Vietnã do Sul. Para salvar os coitadinhos, ele ajeitou as coisas de modo que, bem ao contrário, o Vietnã do Sul caísse nas mãos dos vietcongues, que aí, como era obviamente de se esperar, empreenderam a completa liquidação dos adversários e ajudaram a estender a ditadura comunista ao vizinho Camboja. Resultado: três milhões de mortos — quinze vezes o total de vítimas da própria guerra.

A longa folha de serviços pró-comunistas de Henry Kissinger ultrapassa infinitamente qualquer ajudinha que ele possa ter dado, como vil gorjeta, a ditadores direitistas. É fato notório, por exemplo, que ele forçou seu governo a vender aos soviéticos a tecnologia que os habilitou a produzir seus primeiros mísseis de ogivas múltiplas, colocando em risco a segurança dos EUA. Terá ele feito algo de comparável em favor de Pinochet, dos presidentes militares brasileiros ou do seu próprio país?

Kissinger, de fato, é um criminoso. Um grande criminoso pró-comunista. Provavelmente o maior que já houve nos EUA. Mas, graças ao milagre da mentira midiática, os comunistas puderam desfrutar dos seus serviços no campo diplomático-militar e reciclá-lo depois como espantalho imperialista para assustar uma população de basbaques tupiniquins, com a prestimosa, solícita e unânime —- desavergonhadamente unânime —- ajuda da imprensa local.

Sim, porque a única diferença entre a farsa midiática nos EUA e no Brasil é que, lá, ainda há muitos jornalistas corajosos capazes de se opor à massa de seus colegas, ao passo que aqui até mesmo as vítimas diretas de agressão por parte da mídia são as primeiras a derramar-se em rapapés e salamaleques ante a autoridade suprema da classe jornalística, autoconstituída numa espécie de semente dos serviços de inteligência de um futuro Brasil socialista.

Mas, malgrado a valente resistência de um David Horowitz, de um Brent Bozell, de um Walter Williams, de Thomas Sowell, de um Bernard Goldberg e tantos outros, a mídia dominante dos EUA é hoje a maior força de propaganda antiamericana que já existiu.

O FBI, pois, nada descobriu de novo: após quatro décadas de exportação das idéias que legitimam toda violência antiamericana, por que os EUA não passariam a exportar essa violência mesma?

 

A teoria econômica de Lord Keynes e a ideologia triunfante do nosso tempo

Por Alceu Garcia


19 de março de 2002

Alceu Garcia não existe. É o pseudônimo de um cidadão que, cercado de esquerdistas por todos os lados, e já conhecendo o tratamento que eles dão a quem ouse contrariá-los no local de trabalho, tem bons motivos para desejar permanecer incógnito. Camuflado ou não, é um excelente escritor, e é com muita honra que apresento e agradeço sua contribuição notabilíssima ao debate que ando travando há tempos com os devotos de Lord Keynes. Outros textos de Alceu Garcia aparecerão nesta página nas próximas semanas. O. de C. (13 de março de 2002).

Introdução

Dificilmente se passa uma semana sem que o economista britânico John Maynard Keynes (1883-1946) seja louvado por escritores e colunistas de nomeada, especialistas na matéria ou não, como o genial autor de uma revolução copernicana na economia e um grande benfeitor da humanidade. O cultuado escritor L.F. Veríssimo elogiou o “espírito público” de Keynes em sua coluna em O Globo, e lamentou que a visão egoísta e os interesses imperialistas dos americanos tenham prevalecido sobre os propósitos benevolentes do inglês no acordo de Bretton Woods. Uma ativista americana que participou do recente Fórum Social Mundial de Porto Alegre, entrevistada pelo JB, concitou a humanidade a adotar políticas keynesianas para redimir os bilhões de miseráveis do planeta. A última moda da esquerda festiva parisiense é uma estridente propaganda em prol da dita “taxa tobin” sobre movimentações financeiras internacionais, inspirada em estudo de James Tobin, economista americano da melhor estirpe keynesiana. O jornalista Cesar Benjamim, remanescente do marxismo-leninismo ortodoxo, escreveu em artigo na Caros Amigos que a Lei da Responsabilidade Fiscal, que limita as despesas públicas à arrecadação, é nociva, de vez que os gastos deficitários do estado possuem um efeito multiplicador que espalha a prosperidade e resulta em aumento na arrecadação futura, recobrando o equilíbrio orçamentário em outro nível. Isso não é nem Marx, nem Lenin; é macroeconomia keynesiana pura. Curiosamente, no número seguinte do mesmo periódico Benjamim proferiu um candente libelo contra… a macroeconomia!

No universo dos especialistas o prestígio do luminar de Cambridge é ainda maior. O ex-ministro do governo Sarney e banqueiro João Sayad, aquele mesmo responsável pelo fracassado Plano Cruzado e que hoje atormenta os paulistanos como secretário de finanças da prefeita Dona Marta, exalta Keynes frequentemente em suas lacrimosas colunas no JB, salientando que o inglês foi o primeiro a manifestar interesse pela questão do desemprego e em como salvar os trabalhadores das garras do capitalismo predatório Os economistas responsáveis pelo projeto econômico do PT, Guido Mantegna, Luiz Beluzzo, o próprio Sayad e outros, baseiam-se muito em Keynes e pouco em Marx, o contrário do que normalmente se esperaria de um partido de extrema-esquerda. Não menos keynesianos são os economistas do PSDB “autêntico”, pontificando entre eles outro ex-ministro de Sarney e comandante de mais um desastrado “plano”, Bresser Pereira. A revista República, hoje o veículo semi-oficial da candidatura Serra, não poupa elogios a Keynes e invectivas contra o superado neoliberalismo do americano Milton Friedman. O colunista do New York Times Paul Krugman, cujas diatribes ultra-keynesianas são reproduzidas em alguns jornais brasileiros, é acatado por seus congêneres tupiniquins, acadêmicos ou não (com a exceção de Gustavo Franco), como a máxima autoridade mundial em economia. Os juízos de Krugman produzem em nosso país um efeito categórico de Roma locuta, causa finita.

Os exemplos dessa profunda identificação entre o pensamento e a propaganda esquerdista com Keynes e suas idéias são inúmeros. O curioso, por outro lado, é que também certa direita reinvindica Keynes como um de seus patronos. Basta lembrar de Delfim Netto e Mario Henrique Simonsen, ministros do regime militar e adeptos das teorias keynesianas, os quais dirigiram a mais extensa invasão do domínio econômico pelo estado na história do nosso país e fizeram da economia brasileira uma das mais estatizadas do mundo. Liberais como o falecido J.G. Merquior também relacionam Keynes como um eminente prócer do liberalismo. Tudo isso é bastante perturbador e inconclusivo. Afinal, Keynes foi um socialista, conservador ou liberal? Talvez suas inovações científicas simplesmente sejam rigorosamente irrefutáveis e, portanto, ideologicamente neutras, não podendo responder por apropriações indevidas, por todas as correntes políticas, da verdade apoditicamente demonstrada. A proposta desse ensaio é tentar elucidar esse enigma, desvendando a verdadeira filosofia social do economista britânico e sua posição no quadro do pensamento econômico, ideológico e político contemporâneo.

Keynes e Suas Circunstâncias

Filho de um renomado economista, educado em Eton e Cambridge, membro da melhor sociedade britânica, Keynes formou-se em um tempo em que a elite pensante inglesa questionava e negava os valores de seu meio social, inclinando-se vigorosamente para o socialismo. O triste espetáculo dessa elite decadente, niilista e descrente dos princípios morais até então vigentes evoca fenômenos similares ocorridos em outras épocas e contextos. A degeneração moral das aristocracias grega e romana relatadas, por exemplo, por Políbio, Tácito e Petrônio, a meu ver tem muitos traços em comum com o estado da intelligentsia inglesa no tempo de Keynes. Quando a classe dirigente de uma cultura perde a confiança em si mesma e em seu papel histórico, essa cultura está perdida. Parece-me que coisa do tipo aconteceu na Inglaterra a partir de meados do século 19.

Conduzida por uma elite vigorosa e confiante, a Grã-Bretanha inventou o liberalismo político no séc. 17 e, quebrando as cadeias que tolhiam a criatividade e iniciativa individual, criou as condições para o florescimento espontâneo da moderna economia de mercado. Liderou o mundo por muito tempo no plano comercial, tecnológico, industrial, financeiro, político e intelectual. Porém, a partir de certo momento esse dinamismo principiou a arrefecer. A trajetória intelectual de John Stuart Mill, o pensador mais eminente de sua época, revela os contornos desse processo. De um ponto de partida liberal, Mill gradualmente e sutilmente inclinou-se para posições simpáticas ao socialismo. Essa transmutação do liberalismo em socialismo, capturada no nascedouro com maestria pela pena profética de Herbert Spencer (The Man Versus the State), se completou com a Sociedade Fabiana (1883), nome inspirado no general Fabius Maximus, que salvou Roma evitando travar batalha em campo aberto com o grande comandante cartaginês Aníbal, recorrendo ao invés a métodos indiretos de guerra. A Sociedade Fabiana era um grupo formado por intelectuais ativistas do high society liderados pelos milionários Sidney e Beatrice Webb (Lord e Lady Passfield), adeptos de uma estratégia política gradualista, que se dedicava a doutrinar o estamento superior da sociedade britânica, apossar-se dos canais de difusão de idéias, do aparato estatal, da Igreja, das artes, dos sindicatos e tudo o mais que fosse útil à implementação de um governo socialista. O dramaturgo George Bernard Shaw, por exemplo, foi uma das estrelas do movimento fabiano, que mais tarde deu origem ao Labour Party.

A enorme influência do socialismo fabiano marcou profundamente a formação intelectual e moral de Keynes. Ele integrou uma sociedade secreta em Cambridge conhecida como Os Apóstolos e posteriormente a confraria de letrados ilustres denominada Grupo de Bloomsbury, ambas subprodutos do caldo cultural do fabianismo. Hedonismo, niilismo, elitismo, iconoclastia, bissexualismo, pedantismo, amoralismo e, claro, socialismo, eram os traços comuns aos integrantes desses grêmios. O filósofo G.E. Moore, um dos gurus máximos da tchurma, autor de um livro intitulado Principia Ethica, exerceu forte atração sobre Keynes. Para Moore não existiam princípios morais universais, reduzindo-se a ética aos prazeres estéticos pessoais. Não é possível compreender o caráter de Keynes, nem sua atuação política e sua produção científica, isolados do contexto ideológico em que ele atuou. E os traços chave da natureza do economista britânico eram: relativismo moral e desonestidade intelectual.

Keynes, o Polemista

Não é preciso estender-se muito a respeito da terrível ruptura que a Primeira Guerra Mundial significou para o mundo relativamente estável, aberto e progressista da Belle Epoque. O conflito abriu uma caixa de pândora e libertou demônios cujos males ainda se fazem sentir em nossos dias. Keynes, àquela altura um economista jovem e promissor, serviu no departamento do tesouro inglês durante a guerra. Após o conflito, ele foi designado para a delegação britânica encarregada de elaborar o Tratado de Versalhes. No curso das deliberações Keynes discordou da política de impor pesadas reparações à Alemanha vencida e rompeu publicamente com seus superiores, para a alegria de seus amigos fabianos. Publicou então o livro The Economic Consequences of the Peace (1920), que o transformou em celebridade mundial instantânea. Nesse panfleto, Keynes lamentava a sorte dos alemães e condenava o espírito de vingança e rapacidade dos vencedores. Ridicularizou os líderes aliados Lloyd George, Clemenceau e o Presidente Wilson, pintando-os, com riqueza de detalhes, como figuras patéticas e grosseiras. Insinuou que a culpa da guerra era tanto dos vencedores quanto dos vencidos e afirmou categoricamente que a Alemanha não teria condições de pagar as dívidas impostas e que a insistência em sua cobrança acarretaria a morte pela fome e doenças de milhões de crianças alemãs.

Essa avaliação dos fatos e as previsões de Keynes foram devidamente refutadas mais tarde por Ludwig von Mises (Omnipotent Government) e Étienne Mantoux (The Carthaginian Peace). A culpa inequívoca do governo alemão já está mais do que demonstrada pela pesquisa histórica, e foi aliás explicitamente confessada pelo chanceler do Kaiser Bethmann Hollweg em suas memórias. O montante das reparações não era tão grande em proporção ao produto nacional alemão, e a insistência no seu pagamento teria inviabilizado, ou pelo menos atrasado, o programa de rearmamento iniciado ainda em fins da República de Weimar e acelerado subsequentemente por Hitler. Mas nada poderia impedir que uma tão brilhante peça de argumentação erística, perfeitamente consonante com o zeitgeist, o espírito da época, fizesse enorme sucesso. O livro de Keynes foi habilmente aproveitado pela propaganda nacionalista alemã, inclusive a nazista, para fomentar a atmosfera de complacência internacional que facilitou a ascensão posterior de Hitler. Não é argumentar ad absurdum afirmar que Keynes forneceu vários dos tijolos para a construção dos muros dos futuros campos de concentração nazistas.

Tendo provado o gosto da fama literária e midiática, Keynes nunca mais abandonou as polêmicas públicas, tornando-se um intelectual opinativo e requisitado pela imprensa, tal como tantas figuras similares em nosso país. Vários de seus artigos dessa safra foram reunidos e publicados sob o título Essays in Persuasion (1932), onde o leitor atual pode se deliciar com o estilo florido e admirar a habilidade sofística do autor. Ele não perdia uma oportunidade de escandalizar, de soar herético. “Epater le bourgeois“, como dizem os franceses.

Subjacente ao prestígio popular de Keynes estava a sua autoridade como economista. A economia na época já se tornara uma ciência altamente especializada e inacessível aos leigos graças ao crescente formalismo matemático e geométrico, bem como o desenvolvimento de um jargão próprio ininteligível. Longe iam os dias em que os não-especialistas cultos compreendiam com relativa facilidade os teoremas enunciados no bom e velho raciocínio dedutivo verbal por Adam Smith, David Ricardo e outros, e podiam acompanhar ativamente as polêmicas travadas pelos grandes nomes da área. Cabe aqui observar que o complexo verniz matemático utilizado pelos economistas modernos encobre proposições bastantes simples e perfeitamente passíveis de serem expressas em lógica discursiva. Trata-se de uma violação do princípio do método científico conhecido como navalha de Occam, segundo o qual, resumindo grosseiramente, não se deve complicar desnecessariamente o que pode ser enunciado de modo mais simples. A panóplia de curvas, equações e modelos matemáticos serve para dar aos economistas a ilusão de contarem com um instrumental metodológico altamente científico, copiado das ciências exatas, que confunde e atemoriza o não-especialista. Mas acima de tudo serve para ocultar o absurdo e a ilogicidade de suas proposições básicas, que, se expostas claramente, não enganariam nenhum crítico inteligente. Quem duvida, deveria experimentar ler os textos acadêmicos de gente como Simonsen, Sayad, Beluzzo, Kandir e Zélia Cardoso e, da pletora de equações e diagramas, extrair deles os postulados essenciais que fundamentam seus encadeamentos lógicos. Quem fizer isso vai compreender imediatamente o nexo de causalidade entre os paralogismo s obtidos e os desastres sociais por eles causados em nosso país. De todo modo, Keynes certamente foi um dos que mais contribuiu para turvar a ciência econômica com essa finalidade. Mas que espécie de economista era Keynes afinal?

Keynes, o Economista

Em Cambridge, Keynes foi discípulo de Alfred Marshall, tido como uma das maiores autoridades mundiais em ciência econômica de seu tempo. O trabalho de A C Pigou também o influenciou muito. Mais tarde, em sua obra mais famosa, A Teoria Geral, Keynes rompeu com seus mentores, classificando-os como “clássicos”, apegados a uma superada concepção ricardiana e laissez-faire da economia. Mas era assim realmente? Marshall na verdade atrasou bastante a evolução do pensamento econômico, insistindo na insustentável teoria objetiva do valor. Para ele o custo “real” das mercadorias era tão importante na formação dos preços quanto a utilidade subjetiva dos demandantes, recusando-se a reconhecer que o custo é um fenômeno sempre subjetivo (custo de oportunidade). Quanto a Pigou, foi um dos mais acatados pioneiros da teoria do welfare state, do estado provedor de bem-estar e redistribuidor de renda. Seu livro mais famoso, The Economics of Welfare, da década de 1910, lido hoje, surpreende pela atualidade. É um minucioso projeto do Estado Previdenciário plenamente – e infelizmente – realizado ao longo do tempo. É curioso que esses dois autores, que não nutriam grande simpatia pelo capitalismo laissez-faire, tenham sido acusados por Keynes de representarem justamente a quintessência do capitalismo laissez-faire. Essa contradição ostensiva ocultava uma bem urdida armadilha sofística: Marshall já não estava entre os vivos para defender sua posição “clássica”, e Pigou dificilmente vestiria a carapuça de campeão do capitalismo. O mais provável é que ele acabasse se identificando com o novo sistema keynesiano, o que, aliás, após alguma relutância, acabou de fato acontecendo. O verdadeiro núcleo do pens amento econômico liberal era bem outro, a escola austríaca, muito mais sólida em seus fundamentos do que a ambígua e inconsistente escola de Cambridge. A tática de Keynes consistiu em evitar o combate direto com os austríacos, ignorando-os e afastando-os sub-repticiamente do âmbito relevante da discussão. No tribunal constituído por Keynes para julgar o capitalismo ele era o promotor e o juiz, e ainda nomeou o pior advogado de defesa possível para o réu. É de admirar que o capitalismo laissez-faire tenha sido condenado inapelavelmente? Mas isso veremos com detalhes mais adiante.

Digressão sobre Marx

O leitor mais atento já terá percebido que o terreno está sendo preparado para Keynes esboçar seu sistema econômico anti-capitalista, ou, o que dá no mesmo, socialista. Mas essa tarefa já não teria sido cumprida à contento por Karl Marx? A resposta é um inequívoco “não”. Marx ergueu sua doutrina sobre o alicerce da teoria do valor clássica, estando, pois, sujeito aos mesmos vícios e limitações que afetavam o seu modelo. Quando a doutrina econômica marxista emergiu de sua obscuridade inicial em fins do século 19 e reclamou um lugar de honra no panorama teórico da disciplina, já encontrou um novo e firme edifício científico erigido a partir das descobertas dos pioneiros do marginalismo, na década de 1870. Descartada a teoria clássica do valor-trabalho, o marxismo, que dela deduzia todo o seu sistema, também soçobrou. Autores treinados na nova técnica como E. Bohm-Bawerk, P. Wicksteed e V. Pareto analisaram e refutaram as teses marxistas com a maior facilidade. O marxismo foi portanto barrado na porta de entrada do templo da respeitabilidade científica no campo da economia, e ficou confinado a guetos ortodoxos estagnados que não eram levados a sério fora de seu círculo.

A fusão de uma teoria econômica errada com a nefelibática filosofia da história de Hegel gerou um monstrengo teorético eficaz apenas como misticismo ideológico. É plausível a tese de que as massas proletárias geradas pelo industrialismo expropriariam a burguesia opressora, dissolvendo o estado e dando fim à luta de classes para sempre, inaugurando assim o reino da abundância sobre a terra? É muito mais razoável conceber a “vanguarda do proletariado”, ou seja, os intelectuais ativistas, como uma classe em si mesma, distinta do e oposta ao proletariado, ávida de poder, e pronta a tomar posse do aparato estatal e se fazer nomenklatura por tempo indeterminado, esmagando brutalmente qualquer tipo de oposição, real ou imaginária. Foi precisamente isso o que aconteceu, e até mesmo marxistas como Trotsky e Rosa Luxemburgo tiveram a lucidez de antever esse desfecho. Marx no fim das contas não passou de um pretensioso socialista “utópico”, ainda mais ingênuo e abstruso do que aqueles seus antecessores que tão severamente criticou.

Para reinvidicar atenção, um economista marxista tinha que ser bem pouco marxista e muito neoclássico. Vários espécimens desse estranho animal estavam entre os estudiosos que compunham a entourage de Keynes em Cambridge, conhecida como O Circo, tais como Joan Robinson, M. Kalecki e P. Sraffa. O próprio Keynes, porém, nunca se importou muito com o marxismo, no qual ele via, com razão, um desvio grotesco do sistema de Ricardo. Marx fracassou completamente na missão de elaborar a teoria econômica do socialimo, ou, o que é a mesma coisa, refutar a economia como ciência e invalidar as regularidades inexoráveis dela inferidas, e Keynes sabia disso. Ele mesmo, pois, dedicou seus melhores esforços para ser bem-sucedido onde seu irado antecessor alemão falhara.

Teórico ou Ideólogo?

Uma vez consolidado o seu prestígio popular, e seguro de suas credenciais acadêmicas (lecionava em Cambridge e era editor do afamado periódico especializado Economic Journal), Keynes direcionou suas baterias para a alta teoria econômica. Cabe aqui um parêntese para refletir sobre as qualidades necessárias a um verdadeiro homem de ciência: inteligência, cultura, dedicação, objetividade e sobretudo honestidade intelectual. Keynes sem dúvida era muito culto e inteligente, mas carecia de honestidade. Um estudioso sério deve formar juízo definitivo sobre a matéria investigada somente após a investigação, ou pelo menos ter a coragem de admitir que o estudo rigoroso contraria as opiniões pré-concebidas, quando isso acontecer. Keynes nunca foi um teórico. Era um ideólogo. Partia de posições firmadas antes de empreender suas análises, as quais eram cuidadosamente moldadas de maneira a apoiar essas posições, afastando toda prova em contrário e todos os críticos mediante artifícios erísticos. Esse modo de proceder é muito mais comum nos meios científicos do que se pensa, sobretudo nas ciências sociais, em que a prova rigorosa dos teoremas é menos certa do que nas ciências exatas. Daí para a subjugação de vários ramos do conhecimento pelo mais descarado charlatanismo ideológico é só um passo. Somos testemunhas, atualmente, desse fenômeno em disciplinas como sociologia, antropologia, história e sobretudo filosofia, pervertidas por farsantes de todo o tipo e reduzidas a lamentáveis mistifórios. A economia não teve destino diferente. O resultado disso é socialmente catastrófico, vez que o charlatanismo econômico afeta diretamente as vidas de todos os indivíduos. N&oacut e;s, brasileiros, desafortunadamente temos acumulado larga experiência como vítimas dos incessantes “planos” de pseudo-economistas.

A Relíquia Bárbara

A obra teórica de Keynes foi na verdade anti-teórica. Seu objetivo era nada mais, nada menos do que demolir a ciência econômica como tal e substituí-la por um simulacro de ciência. Esse fôra o desejo de muitos pensadores socialistas antes de Keynes. Como Arthur Marget observou, Proudhon, Marx, Veblen, Schmoller, Henry George, Hobson e suas respectivas escolas haviam atacado violentamente a economia, mas todos fracassaram sobretudo por serem outsiders. Keynes, ao contrário, estava muito bem situado dentro da cidadela mesma da economia e por isso sua investida foi bem sucedida. Keynes foi um presente de grego dos fabianos para a ciência econômica, um cavalo de tróia introduzido no coração da fortaleza. Seu trabalho subsequente foi o de abrir os portões para as hordas fabianas ocuparem o terreno.

O primeiro obstáculo no caminho de Keynes era o padrão-ouro. A moeda nasceu espontaneamente do intercâmbio social em um sistema de divisão do trabalho e troca direta de mercadorias. No curso de milhares de anos, o mercado, isto é, os indivíduos cooperando voluntariamente através de contratos de modo a que cada um pudesse atingir seus respectivos fins livremente escolhidos, selecionou entre várias mercadorias-moeda o ouro e a prata como o dinheiro por excelência. No curso do século 19, o sistema monetário internacional passou do bimetalismo (ouro e prata) para o monometalismo, o padrão-ouro. A libra, o dólar, o marco, o franco e todas as unidades monetárias dos países civilizados eram meras denominações de certas quantidades de ouro. As notas e os depósitos bancários eram resgatáveis à vista, ou seja, tinham que ser convertidos em ouro a qualquer tempo. Qualquer cidadão, se assim preferisse, poderia trocar notas de dez dólares pelo seu equivalente em ouro. As implicações dessa soberania popular no sistema monetário eram muito importantes. A oferta de moeda na economia mundial era regulada pelo mercado e não pelos políticos e suas “equipes econômicas”. Só haveria mais dinheiro quando se gastasse menos ouro nas atividades de mineração do que fosse possível extrair das minas.

Quem não estava nada satisfeito com esse arranjo eram os bancos, e, principalmente, os governos. Os bancos queriam emprestar a juros além de suas reservas em ouro, i.e., criar dinheiro do nada com uma simples penada contábil. Os políticos desejavam assumir o controle total da moeda e do sistema financeiro, adquirindo o poder de criar dinheiro à vontade e distribuí-lo aos grupos de interesse de sua preferência, bem como tributar sem controle parlamentar e popular através da inflação. A capacidade de inflacionar dos bancos, contudo, era limitada, vez que estender demais o passivo em relação às reservas era um convite à desconfiança dos correntistas e à consequente corrida contra o banco e a bancarrota. Os governos, porém, dispondo do monopólio da força, dos tribunais e da polícia, gozam de ampla margem de manobra inflacionista. Do concluio entre os políticos e os bancos surgiram muito cedo os bancos centrais estatais, com seus monopólios de emissão de notas com curso forçado, seu poder de suspender a conversibilidade da moeda em ouro, de suspender os pagamentos, de concentrar as reservas de todos os bancos particulares e permitir-lhes a expansão do crédito em regime de reservas fracionais sob a cobertura do governo. A Primeira Guerra foi um presente dos céus para a conspiração política contra o controle popular do dinheiro. Todos os governos beligerantes suspenderam a conversibilidade da moeda e recorreram à inflação, ao invés da tributação direta e aberta, para financiar suas respectivas e vastas despesas bélicas. Após o encerramento do conflito, a opinião pública, ainda sensível a antigos preceitos morais como o pacta sunt servanda (os contratos devem ser cumpridos), esperava um retorno ao padrão-ouro. Na Grã-Bretanha, após certa relutância, o governo propôs-se a deflacionar a moeda até o ponto em que pudesse restaurar a conversibilidade na mesma relação libra-ouro de 1914, o que foi feito em 1925.

Esse era o estado da questão quando Keynes publicou seu primeiro livro “sério” de teoria econômica, Tract on the Monetary Reform, de 1923. A idéia central desse livro era que o padrão-ouro deveria ser abandonado de uma vez por todas e que o controle da quantidade de moeda na economia deveria ser confiado aos bons ofícios dos políticos, essas almas puras inteiramente dedicadas ao bem comum, que se encarregariam de zelar pela estabilidade da moeda e do “nível geral de preços”. Vale notar que a crítica de Keynes não era de todo infundada. O problema é que a deflação não reverte os estragos causados pela inflação anterior. Esta implica em redistribuição de riquezas em favor dos beneficiados pela distribuição de dinheiro sem lastro pelo governo, após o que um novo equilíbrio é firmado. A deflação não beneficia necessariamente os perdedores do jogo inflacionário, nem restaura o status quo ante, e sim acresce uma nova redistribuição de riquezas `a antecedente. Ludwig von Mises ilustrava esse processo dizendo que, depois que o carro atropelou o pedestre, dar marcha-ré não vai desfazer o mal perpetrado e sim causar ainda mais dano ao atropelado. A decisão correta teria sido restaurar o padrão-ouro na base da nova paridade entre libra e ouro, sem deflação. A idéia de Keynes, contudo, ia bem mais além, como já observado. Ele queria o fim do padrão-ouro tout court. Até hoje sua tirada satírica contra o metal precioso, qualificado de “relíquia bárbara”, é lembrada como condensação sofística dos argumentos contra o ouro-moeda. O que ninguém se recorda é da réplica de Edwin Cannan, economista à moda antiga porqu e por demais apegado à razão e à verdade para os padrões da época. Cannan apontou para os campos de batalha ainda fumegantes, onde a fina flor da juventude européia fôra insensatamente sacrificada aos milhões. Chamou a atenção para as hiperinflações que naquele mesmo momento evaporavam as economias de dezenas de milhões de infelizes na Alemanha e alhures, pauperizando-os da noite para o dia. Que prova mais contundente de barbarismo contemporâneo poderia haver? Quando houvera morticínio e saque em escala comparável em toda a história? Não, dizia Cannan, somos mais bárbaros do que nunca, e a “relíquia” era por isso mesmo mais necessária do que jamais fôra. O padrão-ouro era absolutamente indispensável para se controlar a insanidade dos políticos. O fato de ter sido Keynes, e não Cannan, a prevalecer nesse debate crucial confirma plenamente os argumentos desse último. O barbarismo triunfou. E muito mais viria no futuro. Hoje todos os governos gozam da prerrogativa de fazer aquilo que proibem sob as mais severas penas aos particulares: falsificar dinheiro.

Surfando a Onda da Depressão

Keynes amadureceu seu sistema e publicou seus dois ambiciosos livros de teoria pura na época extremamente conturbada da Grande Depressão dos anos 30. O primeiro, Treatise on Money, de 1930, não será comentando nesse ensaio, posto que o próprio autor renegou-o em parte e o considerou como rascunho inacabado e imperfeito de sua teoria só plenamente desenvolvida na obra posterior, A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, de 1936. Digno de nota, entretanto, é que um escritor famoso por sua prosa clara e facilidade de expor o raciocínio tenha subitamente produzido textos tão confusos, obscuros e desorganizados como os contidos nos livros mencionados. Até mesmo os especialistas sofreram para decifrar os argumentos centrais de Keynes, o que, aliás, deu ensejo a que alguns autores (A Hansen, D. Dillard e outros) ganhassem fortunas com a venda de livros que resumiam e explicavam a Teoria Geral.

É preciso contextualizar a magnum opus de Keynes. O pesado legado da guerra de 14-18 estorvava a economia mundial com as colossais dívidas internas e externas dos governos europeus, tanto entre eles próprios quanto entre cada um deles e os Estados Unidos, agora feita nação credora universal. O sistema monetário baseado no padrão-ouro nunca mais se recuperou do colapso de 1914. A inflação destruiu economias inteiras. A carga tributária subiu às alturas em toda parte, a fim de suportar as despesas crescentes com as atividades previdenciárias e assistencialistas dos governos, bem como com a estatização generalizada de empresas privadas, que, ato contínuo, deixavam de ser lucrativas e passavam a onerar o tesouro. O poderio dos sindicatos na Europa elevava os níveis salariais bem acima da produtividade marginal do trabalho, resultando em desemprego. O governo americano, atendendo a interesses setoriais, sobretudo agrícolas, adotou políticas protecionistas que impediam os europeus de exportarem para os Estados Unidos e assim obterem superávits que os capacitasse a honrar suas dívidas em dólar. Em 1920 a economia global desmoronou em uma tremenda recessão iniciada nos EUA. O desemprego chegou perto dos 20% da força de trabalho naquele país e a violenta retração espraiou-se para o resto do planeta. Essa, porém, foi a última crise em que os governos não se intrometeram muito. Preços e salários caíram e logo as proporções entre preços e custos se ajustaram de forma a permitir uma recuperação rápida. Em fins de 1921 a economia americana já tinha se reerguido e o desemprego logo caiu para menos de 4%.

Começou então uma período de prosperidade global febril, puxada pela locomotiva americana, que padecia, contudo, de graves artificialismos. Como nos anos 90, as novas tecnologias maravilhavam o mundo, os ganhos de produtividade nas indústrias, que resultavam em aumento da oferta de produtos e baixa dos preços, contrabalançavam a inflação monetária e sua tendência altista, gerando preços estáveis. Falava-se muito em “nova economia”, em crescimento perpétuo. Havia porém perigosos desequilíbrios que comprometiam toda a situação. As tarifas americanas bloqueavam o comércio com a Europa, cujas enormes dívidas com os EUA, impagáveis por causa dessas mesmas tarifas, inchavam ainda mais com incidência de juros sobre o principal. Para contornar esse gargalo, o banco central americano inundou o mercado financeiro com colossais massas de crédito bancário barato, que passaram a financiar as aquisições européias de produtos americanos (sem resolver as dívidas pendentes), a estimular a má alocação de recursos em investimentos artificialmente rentáveis graças apenas aos juros baixos, e, claro, a alimentar violentos movimentos especulativos que culminaram no grande estouro da bolsa de valores novaiorquina, em outubro de 1929. A crise então deflagrada encontrou um clima intelectual, político e ideológico totalmente intoxicado de socialismo. Os governos, a começar pelo americano, decidiram se envolver e curar a doença por eles mesmos causada. O New Deal começou na administração Hoover. O governo pressionou os empregadores a não reduzir salários nem demitir, conforme a doutrina da moda de que era o “poder aquisitivo” a chave da prosperidade. Keynes ratificaria mais tarde essa idéia com seu princí ;pio da “demanda efetiva”. O efeito inevitável dessa insensatez foram as falências em massa e o desemprego sem precedentes. Hoover, e depois Roosevelt, empregaram fortunas em obras públicas inúteis para “gerar empregos”, bem como reduziram as taxas de juros. Ambas as medidas são igualmente fundamentais no receituário keynesiano. Mas a depressão se aprofundava. Para piorar as coisas, as tarifas alfandegárias foram ampliadas, arruinando de vez o comércio internacional, e os impostos foram aumentados, onerando ainda mais as empresas. Em 1931 o sistema financeiro, atolado com créditos podres, desmoronou. Uma epidemia planetária de falências bancárias deflagrou o pânico generalizado e uma forte deflação. Um a um, todos os governos abandonaram para sempre o lastro em ouro, recorreram à inflação e às desvalorizações da moeda, ergueram barreiras intransponíveis ao comércio internacional. Nada funcionava. A desintegração das relações internacionais acabou em mais uma guerra mundial.

A Teoria Geral

Nessa atmosfera desesperadora, Keynes publicou seu organon, em 1936. É hora, pois, de avaliar em linhas gerais essa tão famosa Teoria Geral (para uma análise minuciosa e exauriente, recomendo os livros de Hazlitt, Hahn, Hutt e Marget indicados abaixo). A teoria keynesiana investiga as relações entre grandes agregados e médias numéricas em um dado país, tais como renda total, produção total, demanda total, oferta total, consumo total, poupança total, emprego total, nível de preços etc, para daí extrair conclusões analíticas e formular uma política positiva de ação. A finalidade principal é desvendar os processos que levam ao “pleno emprego”, isto é, à plena utilização do fator de produção trabalho, na esfera teórica e, com base na teoria, na esfera prática. Keynes concebe duas curvas (ou “funções”): a curva da demanda agregada – que representa a receita total esperada da produção total – e a curva da oferta agregada – que retrata a receita total da produção total que induz os empresários a empregar determinados volumes de trabalho. A interseção entre as duas curvas é o ponto da “demanda efetiva”, que corresponde ao máximo de emprego que será oferecido pelos empresários em um determinado momento. Ocorre que, segundo Keynes, o ponto da demanda efetiva não corresponde necessariamente ao pleno emprego. O problema decorre do seguinte: a renda agregada (de todos os indivíduos e empresas) é igual ao consumo agregado mais a poupança agregada. Tudo iria bem se a poupança agregada fosse integralmente investida em bens de capital, equivalendo pois ao investimento agregado. Nesse caso, a “demanda efetiva” corresponderia de fato a o “pleno emprego”. Sucede que parte da poupança pode ser simplesmente “entesourada”, ou seja, mantida ociosa em forma de dinheiro e depósitos bancários. Quando isso ocorre, a “demanda efetiva” não é suficiente para manter o “pleno emprego”. Surge um hiato entre o volume de investimento corrente e o volume de investimento necessário para se atingir o “pleno emprego”.

Keynes lamenta amargamente que a “propensão a consumir” de uma comunidade moderna fique longe do dispêndio de 100% da renda total em bens de consumo, pois se toda a renda fosse gasta em consumo a “demanda efetiva” coincidiria permanentemente com o “pleno emprego”, para a felicidade geral das nações. Como isso não ocorre, as consequências são sinistras: o desemprego crônico de grandes massas de assalariados, a menos que o investimento supra a lacuna entre o ponto da “demanda efetiva” e o ponto do “pleno emprego”. Porém, a demanda por trabalho no setor de investimentos (bens de capital) é irremediavelmente instável. Os empresários só investem quando esperam obter um retorno para o capital empregado superior à taxa de juros corrente. A lucratividade esperada de um novo investimento é denominada por Keynes de “eficiência marginal do capital”. Desafortunadamente, a eficiência marginal do capital padece de volatilidade insanável no curto prazo e tendência inexoravelmente declinante no logo prazo. O primeiro vício mencionado dá causa aos ciclos econômicos, que não passam de flutuações violentas nas expectativas de rentabilidade por parte dos homens de negócio, esses vilões intrinsecamente irracionais cujas atividades flutuam ao sabor de ondas inexplicáveis de otimismo e pessimismo que contaminam toda a economia e convidam ao desastre. O segundo vício deflui do fato de que os novos investimentos competem com os antigos e necessariamente levam ao declínio das taxas esperadas de retorno até um ponto igual ou inferior à taxa de juros corrente. O resultado é a escassez crescente de oportunidades de investimentos rentáveis, a estagnação e o “equilíbrio com desemprego”, uma vez que a “dema nda efetiva” não é suficiente para garantir o “pleno emprego”. Keynes denomina seu sistema de “teoria geral” por entender que a teoria “clássica” é apenas um caso especial no qual, por efêmeras razões históricas, o ponto da “demanda efetiva” coincidiu por um longo período com o ponto do “pleno emprego”. E que razões históricas seriam essas? No alvorecer do capitalismo as oportunidades de investimentos lucrativos eram muito grandes em razão da escassez de capital, das inovações tecnológicas (como as ferrovias), da expansão territorial (como a “marcha para o oeste” nos Estados Unidos) e do crescimento populacional acelerado. Essas felizes e fortuitas circunstâncias não mais existiam no capitalismo maduro, o qual revelava sua inerente iniquidade em uma estagnação estrutural permanente, com a perversidade inominável de condenar vastas massas de trabalhadores à ociosidade e à inânia.

Entretanto, nem tudo estava perdido. Havia uma luz no fim do túnel pútrido e sombrio das contradições internas do capitalismo. Qual? O estado, naturalmente. Para Keynes, o governo era o busílis, desde que conduzido por homans racionais e benevolentes, empunhando as ferramentas científicas apropriadas (o keynesianismo, claro) e atuando em nome do puro bem comum. O estado poderia “salvar o capitalismo” socializando o investimento, substituindo os empresários instáveis e egoístas e fazendo a “eutanásia do rentier“. Em tempos de depressão, bastaria ao governo “investir” o suficiente para suprir a carência de investimento privado, mesmo que tal significasse um déficit orçamentário. Déficits não seriam um problema, posto que os “investimentos” do governo poderiam ser cuidadosamente planejados de forma a utilizar os recursos ociosos graças ao “efeito multiplicador”, uma fórmula matemática que permitia calcular com precisão e rigor os efeitos revigorantes dos “investimentos públicos”. Como financiar o déficit? Com endividamento público, o qual desviaria dinheiro privado ocioso para finalidades socialmente úteis segundo o julgamento dos políticos e burocratas; e também com a criação pura e simples de dinheiro do nada, via lançamentos contábeis entre o banco central e o tesouro. Mas endividamento e inflação não seriam perigosos a longo prazo? Não, diziam os keynesianos, pois a dívida pública interna significa que “nós devemos a nós mesmos”, portanto seu volume pouco importa. A inflação só se manifestaria em aumento do nível de preços quando a “demanda efetiva” ultrapassasse o ponto do “pleno emprego”, de modo que bastaria ao governo aumentar impostos e reduzir a liquidez da economia para mantê-la equilibrada. De qualquer maneira, uma inflação baixa não seria de todo mal. Antes inflação que desemprego.

Outra medida fundamental era a tributação progressiva da renda dos ricos, cuja “propensão a consumir” é baixa, em favor dos pobres, cuja “propensão a consumir” é alta. A poupança era a vilã e tinha que ser desencorajada a qualquer preço. Outro instrumento de estabilização seria a progressiva redução da taxa de juros até zero. O juro, no sistema de Keynes, é um fenômeno puramente monetário, resultante da “preferência pela liquidez”, ou seja, demanda por moeda para fins meramente especulativos e anti-sociais. O juro é um instrumento de opressão usado por usurários e rentistas inescrupulosos com finalidades egoísticas. Sendo assim, nada impede que o estado, em nome da felicidade social, suprima o juro e propicie uma abundância geral de capital, sem qualquer consequência negativa. Ademais, desse modo a “eficiência marginal do capital”, livre da limitação do juro, seria amplamente favorecida, fomentando mais investimentos privados. Por fim, Keynes argumentava que o princípio das vantagens comparativas de Ricardo não importava mais. O comércio internacional e a divisão internacional do trabalho eram meras abstrações e, por mais que tivessem tido alguma validade na época dos clássicos, agora deveriam ceder diante do imperativo do “pleno emprego”. A prioridade dos governos deveria ser o “pleno emprego”, mesmo que tal exigisse o fechamento da economia para o comércio externo. O que Keynes propunha era uma reinvenção radical do mercantilismo, ao qual aliás não poupou elogios em seu livro.

O grande sucesso dessa mixórdia insensata se deve ao fato de que fornecia justificações pseudocientíficas aos preconceitos ideológicos mais caros aos socialistas fabianos. A culpa da crise e do desemprego é lançada nas costas dos empresários, capitalistas e especuladores; a solução consistia em outorgar mais poder e dinheiro aos políticos e intelectuários fabianos. A moderna macroeconomia nasceu sob o signo da mais descarada demagogia.

A Crítica Desprezada

Antes de passar a um exame crítico do sistema keynesiano, deve ficar esclarecido que essa crítica fundar-se-á sobretudo nas lições da escola austríaca de economia, cujas características principais merecem uma breve exposição. Fundada por Carl Menger, que formulou o princípio da utilidade marginal em 1871 revolucionando a teoria do valor e dos preços, a escola austríaca amadureceu na obra de Bohm-Bawerk e sua teoria do capital e do juro, e na de Wieser, que enunciou a noção de custo de oportunidade. Outro austríaco, da mesma geração de Keynes, Ludwig von Mises (1881-1973), consolidou o sistema de seus antecessores e acrescentou a ele importantes elementos novos. No trabalho de Mises a tradição austríaca alcança o pleno desenvolvimento. O traço fundamental dessa corrente é a análise consistente da economia á luz do individualismo e do subjetivismo metodológicos. A economia é a ciência da ação humana motivada em um ambiente marcado pela imperfeição das informações e pela incerteza do futuro, e, ipso facto, deve deduzir seus postulados básicos do comportamento individual humano. Mises distingue entre teoria e história, esta o resultado de forças complexas inextricáveis, aquela inferida de axiomas irrefutáveis destilados da ação humana e ordenada em uma cadeia dedutiva apriorística de causa e efeito. Agir consiste em escolher e preferir, eleger fins e meios adequados para alcançar esses fins, ensina Mises, e no próprio conceito de ação estão categorias econômicas como: escassez (o mero fato de escolher implica a impossibilidade de se atingir todos os fins ao mesmo tempo), custo (eleito um objetivo, todos os demais passíveis de serem atingidos com os mesmos mei os são sacrificados – custo de oportunidade), lucro e prejuízo (avaliação subjetiva ex post que revela o grau de sucesso ou insucesso da ação). Mises nega que seja possível deduzir leis econômicas de estudos estatísticos; as estatísticas são sempre e apenas história econômica, ainda que recente. Como história é um conjunto de fenômenos complexos, a evidência empírica não prova nem refuta a teoria. Mises rejeita, pois, o princípio popperiano da falseabilidade na ciência econômica, e também rejeita categoricamente o método matemático em economia, visto inexistirem constantes quantitativamente mensuráveis no comportamento humano individual e social. Rejeita igualmente a agregação característica da macroeconomia. Ao contrário de todas as outras correntes do pensamento econômico, os austríacos desprezam o estudo obsessivo do equilíbrio, preferindo ver a economia como um processo tendente ao equilíbrio, sem jamais o alcançar, e concentrar-se nas forças dinâmicas reais. Não é difícil notar que a escola austríaca discrepa completamente das demais correntes do pensamento econômico.

Refletindo sobre meios e fins, Mises, como fazem todos os economistas, se perguntava sobre qual a melhor maneira de se organizar a economia de modo a que os fins declaradamente desejados por quase todo mundo, a melhoria da situação material das pessoas e a eliminação da miséria absoluta, possam ser eficazmente atendidos. Ele descartou o socialismo sem mercado tout court, vez que a propriedade coletiva dos fatores de produção resulta na ausência de preços para esses fatores, o que oculta ao único proprietário (o estado) informações vitais sobre a escassez relativa e os usos alternativos dos recursos. Sem mercado não há preços, sem preços não é possível o cálculo econômico racional e, consequentemente, o socialismo é impossível. A economia “mista” tampouco é viável, posto que toda interferência estatal nos preços, salários e juros acarreta consequências negativas e distorções que tornam a situação ainda pior e levam a novas interferências, igualmente mal-sucedidas. A “terceira via”, então, sofre de uma instabilidade crônica: a intervenção estatal tende a se aprofundar e terminar no socialismo sem mercado. A alternativa restante é o capitalismo laissez-faire. Com a escola austríaca a “mão invisível” de Adam Smith ganha confirmação e fundamentos muito mais sólidos do que aqueles em que o filósofo escocês lastreou sua teoria.

A epistemologia, a metodologia e as conclusões de Mises não são aceitas pela esmagadora maioria dos economistas. Não se trata, porém, de uma questão científica, e sim ideológica. É evidente que os intelectuais socialistas fabianos, economistas ou não, não podem aceitar um corpo de doutrina que refuta cabalmente o socialismo em todas as suas manifestações. Mas essa refutação é realmente assim tão categórica? Cabe a cada um estudar, comparar e julgar por si mesmo. Em todo caso, para quem prefere o método positivista de formular hipóteses e testá-las empiricamente para a economia, vale a pena recordar que os austríacos (Mises e Hayek) foram os únicos a sustentar, contra o consenso geral dos economistas, a inviabilidade básica do socialismo à outrance. O colapso soviético confirmou esta hipótese à saciedade. Esse foi, sem dúvida, um dos mais espetaculares e completos triunfos intelectuais na história das idéias. Mises e Hayek também previram que o keynesianismo consistia em injeção crescente de dinheiro na economia até o ponto em que a droga perderia efeito e o resultado seria depressão, inflação galopante e desemprego. Os keynesianos ridicularizavam essa possibilidade. Mais uma hipótese confirmada: nos anos 70 tivemos depressão, inflação e desemprego. Mises antecipou que as ambições dos macroeconomistas e econometristas (o próprio Keynes, justiça seja feita, não tinha essa pretensão) de construírem modelos matemáticos complexos capazes de prever com precisão o nível futuro de atividade econômica estavam fadadas ao fracasso total. Acertou novamente: hoje o máximo que se almeja é a elaboração de mú ;ltiplos “cenários” alternativos, ou seja previsões gerais de tendência mutuamente excludentes.

Revogando a Lei da Gravidade

Keynes é saudado como o gênio que refutou a Lei de Say. Vejamos o conteúdo dessa lei e, por conseguinte, a validade da “refutação”. O francês Jean-Baptiste Say travou no início do século 19 um acalorado debate com Malthus e Sismondi acerca da possibilidade de uma superprodução geral de mercadorias. Say negou essa hipótese, argumentando que cada pessoa produz para consumo próprio ou para trocar por bens e serviços produzidos por outras pessoas. A oferta, pois, cria sua própria demanda. Tudo o que é produzido acaba sendo consumido, e não pode haver superprodução geral. Keynes retrucou afirmando que a Lei de Say pressupunha a coincidência da “demanda efetiva” com o “pleno emprego”, mas que, em caso de entesouramento de parte da renda total, a “demanda efetiva” seria inferior ao “pleno emprego”. Nesse caso, haveria grandes massas de trabalhadores sem meios de produzir nada, e, ipso facto, a superprodução – ou, mais precisamente, o subconsumo – geral permanente é perfeitamente possível e até comum.

Analisemos a Lei de Say em três hipóteses. Na primeira abstrai-se a moeda, pressupondo-se uma economia de troca direta (escambo). Tudo o que se produz ou é consumido pelo próprio produtor ou trocado por mercadorias produzidas por outros indivíduos. A segunda hipótese presume uma economia monetária e um estoque definido de dinheiro, de modo que as pessoas trocam produção por dinheiro e, posteriormente, dinheiro por produção. Presume-se ademais que toda a renda é gasta em bens de consumo e bens de capital. Nesses dois casos a Lei de Say não é impugnada. O problema, segundo Keynes, se manifesta quando parte da renda total não é despendida nem em bens de consumo nem em bens de capital, mas retida em forma de dinheiro “parado” em encaixes individuais. A falácia na lógica keynesiana reside no seguinte: os preços e salários são considerados rígidos. Ora, Say pressupõe flexibilidade de preços e salários e mobilidade dos fatores de produção entre as indústrias. É assim que excessos parciais de oferta, digamos, de bicicletas ou melões, não se traduzem em superprodução geral. Os consumidores queriam menos bicicletas e mais velocípedes; menos melões e mais melancias. Os empresários erraram em suas estimativas. Os preços de bicicletas e melões então caem até o ponto em que igualam oferta e demanda, enquanto que os preços de velocípedes e melancias aumentam até igualar oferta e demanda. Say presume a fluidez de preços e salários como elemento dinâmico harmonizador.

Nem mesmo o caso do “entesouramento” de dinheiro afeta a validade da Lei de Say. Se os agentes econômicos resolvem reter parte de sua renda (aumento da demanda total por moeda), a consequência é o aumento do poder de compra da unidade monetária, ou, o que é o mesmo, a redução dos preços, mantidos os mesmos níveis de consumo e investimento. Os keynesianos, todavia, afirmam que quando o aumento da demanda por moeda tem causas especulativas, isto é, quando as pessoas evitam consumir ou investir até que os preços tenham caído o suficiente para então consumir ou investir, há o perigo da chamada “armadilha da liquidez”. Os preços e salários diminuem até zero e a atividade econômica diminui junto, deflagrando uma depressão homérica. Trata-se, porém, de um sofisma. Como a boa teoria vem ensinando há muito tempo, a especulação tende a acelerar o ajustamento da situação atual à situação futura prevista pelos especuladores, ou, em caso de erro de previsão, os especuladores simplesmente perdem dinheiro. A elevação da demanda por dinheiro para fins especulativos, se bem sucedida, apressa a redução de preços e salários até o nível antecipado pelos especuladores, sem que tal implique necessariamente na redução da atividade econômica. Os keynesianos retrucam com a possibilidade da baixa de preços se prolongar indefinidamente. Ora, essa hipótese não tem relevância prática, e, de todo modo, nada impediria em tese que os preços se ajustassem pari passu no curso dessa baixa. É claro que os ajustes via preços não são automáticos, instantâneos e perfeitos. Mas, inexistindo obstruções às leis de mercado, n& atilde;o há nada que funcione melhor.

Os casos concretos em que a “armadilha da liquidez” teria realmente acontecido, nos Estados Unidos e alhures na depressão dos anos 30, e atualmente na depressão japonesa dos anos 90, demonstrariam empiricamente a validez da hipótese, na ótica keynesiana. Mas não é assim. O que ocorreu nos EUA após 1929 foi uma deflação abrupta (a redução do estoque de dinheiro) posterior ao estouro de uma grande bolha creditícia inflada pelo banco central. Deflação não é o mesmo que “entesouramento”. Ademais, o governo interferiu pesadamente nos mecanismo de ajuste via preços, impedindo a redução de salários. O seu ativismo intervencionista, traduzido em desvalorizações da moeda, arregimentações de tipo fascista do empresariado e dos sindicatos, aumento de impostos, protecionismo alfandegário etc desencorajaram gravemente o investimento e tornaram impossível a recuperação. Também o episódio japonês começou com uma grande expansão de crédito bancário nos anos 80, a qual resultou em má alocação de investimentos e alimentou uma gigantesca bolha especulativa imobiliária que acabou estourando, deixando os bancos montados em montanhas de créditos podres e tecnicamente falidos. A economia nipônica padece de graves entraves, sobretudo no mercado de trabalho. O governo não permitiu a liquidação dos investimentos inviáveis e quebrados; pelo contrário, recorreu à farmacopéia keynesiana completa, com novas injeções creditícias a juros zero (“reflação”) e gigantescas obras públicas inúteis (como uma enorme e moderna ponte ligando o nada a lugar nenhum), sem resultado positivo. O Japão está atolado na depres são há 10 anos. Em ambos os casos a Lei de Say não falhou de maneira alguma. Ela foi impedida de operar pelo ativismo dos governos e sindicatos. A causa da “armadilha da liquidez” é o intervencionismo estatal, jamais as “forças cegas” do capitalismo laissez-faire.

A doutrina keynesiana pode ser assim resumida: a demanda cria sua própria oferta. Trocando em miúdos, tudo o que se exige para a felicidade eterna é a distribuição de dinheiro para a população consumir à vontade. Se isso fosse solução, uma única lei seria suficiente para criar e eternizar o reino da abundância: outorgar a cada cidadão o poder de fabricar seu próprio dinheiro com curso obrigatório. A refutação da Lei de Say por Keynes não passa de uma piada de péssimo gosto.

O Equilíbrio do Desequilíbrio

A Grã-Bretanha não desfrutou da onda de prosperidade dos anos 20. O desemprego permanente de grandes massas de assalariados perdurou ao longo do período subsequente à depressão de 1920-21 até 1939. A crise mundial de 29 só tornou as coisas ainda piores. Qual a razão desse fenômeno? Muito simples: o poderio sindical. Os poderosos sindicatos ingleses gozavam de isenção do dever de indenizar danos materiais e pessoais perpetrados em piquetes e greves, mercê de uma lei expressa a esse respeito. Ademais, contavam com o total apoio político-ideológico da intelligentsia fabiana, da qual Keynes fazia parte, e do Partido Trabalhista, cuja força eleitoral não parava de aumentar. Em suma: os sindicatos ingleses, graças ao privilégio da coerção contra os empregadores via greve ou ameaça de greve, e contra a concorrência de trabalhadores não sindicalizados via piquetes, detinham o poder de fixar os salários em níveis superiores à produtividade marginal de cada setor. Ora, a teoria mais elementar ensina que a fixação de um preço acima do ponto em que oferta e demanda se igualam acarreta um excesso encalhado de oferta. Como os salários são preços, o ativismo sindical resultava em desemprego para milhões de pessoas, impedidas de aceitar empregos por valores menores do que aqueles determinados pelos sindicatos. Para evitar uma explosão social, o governo pagava generosas pensões aos desempregados, cujo custeio porém exigia um crescente arrocho tributário que sobrecarregava as empresas, reduzindo ainda mais sua competitividade e capacidade de empregar. Como Mises dizia, um país pode ter tanto desemprego quanto se dispuser a pagar.

Keynes, como bom fabiano, malgrado percebesse muito bem os efeitos nocivos do sindicalismo britânico, preferia não fazer grande alarde disso. Os sindicatos eram importantes demais na hagiologia fabiana para serem responsabilizados pelos males que causavam. Foi esse imperativo ideológico de ocultar a realidade que inspirou o economista britânico a conceber sua teoria macroeconômica do emprego, cujos contornos já estudamos acima. A “demanda efetiva”, no entanto, é pura mistificação. Os entes de razão criados por Keynes, os agregados, não têm a mínima importância concreta para a determinação do nível total de emprego. O trabalho é um fator de produção e o objetivo de toda produção é o consumo. Até que a humanidade chegue ao Jardim do Éden da plenitude, o consumo das coisas existentes e outras ainda nem imaginadas será permanente. Sendo assim, o trabalho por definição é escasso. A cada momento existe mais demanda do que oferta, ou seja, as pessoas estão sempre querendo consumir mais bens e serviços do que os ofertados. Se o trabalho é escasso, ele é um bem econômico, i.e., tudo aquilo que, a preço zero, a demanda supera a oferta. Como o trabalho é um bem econômico, ele tem sempre um preço, e sempre há demanda correspondente à oferta, a esse preço. Em uma economia de mercado desimpedida, portanto, não pode haver desemprego involuntário permanente. As causas do desemprego são invariavelmente exógenas ao mercado.

Como vimos, Keynes negava esse raciocínio, asseverando que o verdadeiro determinante do nível de emprego total, a “demanda efetiva”, poderia se situar abaixo do ponto do “pleno emprego”, perpetuando assim uma situação de “equilíbrio com desemprego”. Rebatendo às críticas que apontavam a presunção de rigidez para baixo dos padrões salariais em seu sistema, Keynes recorria a dois argumentos: 1- o poder sindical era uma realidade, pelo que a política prática não podia deixar de levar esse fator em conta; e 2- que a diminuição dos salários reduziria a renda global e a demanda agregada, que por sua vez reduziria o emprego total. O primeiro argumento equivale a admitir a validade da teoria “clássica” do emprego. Se os preços não podem mais funcionar como fator equilibrador entre oferta e demanda por trabalho, porque é politicamente impossível despojar os sindicatos do privilégio do uso da violência em causa própria, então a culpa não é evidentemente dos preços nem do capitalismo laissez-faire. O segundo argumento repousa em um sofisma: Keynes confunde deliberadamente níveis salariais com despesas totais com salários, coisas completamente diferentes. Ora, o que importa para os empregadores individuais não é a “curva da oferta agregada” ou a “curva da demanda agregada”, e sim a diferença entre custos correntes, inclusive com mão-de-obra, e o preço futuro do seu produto e a receita total futura da sua produção, de maneira que haja expectativa de obtenção de retorno ao menos equivalente à taxa de juros corrente. O empregador individual não pode pagar mais aos seus empregados do que o valor que cada um deles agrega ao total da produção desse empre gador, nem pode pagar menos do que seus concorrentes pagam. Na ausência de obstáculos artificiais, os preços e custos se ajustam no nível microeconômico até que o “pleno emprego” seja alcançado, ou seja, até o ponto em que todos aqueles que desejam se empregar obtém empregos. Por conseguinte, a redução dos níveis salariais (que jamais é uniforme e simultânea, e nem precisa ser) não significa redução dos gastos totais com o pagamento de mão-de-obra. Pelo contrário, atingido o ponto de igualdade entre oferta e demanda por trabalho em cada área profissional, o total das despesas com salários tende inclusive a superar o total anterior. Um exemplo simplificado ilustrará o raciocínio: suponhamos que o governo decrete um salário mínimo de um bilhão de dólares. Digamos que, a esse preço, somente uma pessoa consiga trabalho. O nível salarial é um bilhão de dólares, a despesa total com salários é de um bilhão de dólares e somente uma pessoa está empregada. Revogado esse decreto, e prevalecendo a livre negociação nos contratos individuais de trabalho em bases de mercado, o nível salarial naturalmente despenca. Por outro lado, todos aqueles que desejam trabalhar agora conseguem emprego, e a despesa total com salários chega a, digamos, dois bilhões de dólares. O “equilíbrio com desemprego” é uma farsa, até porque o conceito de equilíbrio é uma mera construção imaginária, sem lugar no mundo real.

Keynes reconhece tacitamente a solidez dessas objeções quando afirma que os sindicatos resistem apenas à reduções dos salários nominais, mas não se opõem à redução dos salários reais. O que ele recomenda, portanto, é o uso da inflação para reduzir os salários reais, mediante a depreciação do poder aquisitivo do dinheiro, mantidos os salários nominais. Trata-se de um estratagema para contornar os obstáculos sindicais aos ajustes dos salários reais aos respectivos níveis de produtividade marginal, o que permite a absorção das massas de desempregados. Ora, isso é o mesmo que um sujeito, desejando deslocar-se do Rio até Niterói, ao invés de atravessar a ponte ou pegar uma barca, decidir dar a volta ao mundo no outro sentido para chegar à simpática “cidade sorriso”, declarando-se um gênio por ter feito essa brilhante descoberta, que passa a denominar “Teoria Geral do Deslocamento entre Rio e Niterói”, sendo a prosaica e óbvia travessia da ponte um simples “caso especial”. A analogia é menos absurda do que parece. Recorrer à inflação para obter o mesmo resultado que a flexibilidade de preços e salários significa transmitir para o sistema de preços todas as distorções e desequilíbrios que a depreciação da moeda causa. Por outro lado, seria suma ingenuidade ou burrice presumir que os sindicatos se deixariam enganar por um artifício tão singelo. Na realidade, claro, eles rapidamente perceberam o que estava ocorrendo e passaram a exigir “reposições salariais” segundo índices de custo de vida. O unguento keynesiano não só não curou o paciente como agravou seu estado. O palco estava preparado para a ” espiral inflacionária” do pós-guerra.

O Hocus-Pocus da “Eficiência Marginal do Capital” e da “Preferência pela Liquidez”

Vimos que Keynes acreditava que o capitalismo atingira seus limites nos anos 30, posto que a “eficiência marginal do capital”, ou seja, a expectativa de lucratividade dos novos investimentos particulares, doravante seria igual ou inferior à taxa de juros no longo prazo. Os fatos posteriores desmentiram espetacularmente essa conclusão, que foi discretamente “esquecida” pelos keynesianos. Desde 1936 a economia mundial cresceu em escala colossal e novas indústrias surgiram e floresceram nesse período, como a da informática. Qual o motivo de tão crassa falha teorética? Keynes, como muitos economistas antes dele, Marx inclusive, deixou-se iludir pela tendência ao equilíbrio existente na economia de mercado. Se as preferências dos consumidores, o crescimento demográfico, as inovações tecnológicas e outras circunstâncias das atividades econômicas subitamente se congelassem, as forças de mercado levariam a um estado de coisas denominado por Mises de “economia uniformemente circular”, uma situação de equilíbrio dinâmico na qual não haveria lucros mas também não haveria perdas, e o retorno dos empresários e capitalistas seria equivalente a uma taxa de juros uniforme em todos os ramos produtivos. Como, porém, esses dados nunca estão “dados”, pelo contrário, estão em fluxo permanente, e o futuro permanece inexoravelmente incerto, esse equilíbrio geral nunca é atingido. A competição obriga as empresas estabelecidas a pesquisar incessantemente formas de redução de custos e preços, o que libera fatores de produção para serem empregados em novas indústrias. As perspectivas de lucro agregado não tendem a declinar, pelo menos enquanto existir nova poupança agregada sendo formada em volume al& eacute;m do suficiente para se manter a estrutura de capital atual. De maneira que a tendência declinante da “eficiência marginal do capital” de longo prazo, assim como a tendência de queda da “taxa de lucros” dos marxistas, são como aquela plaquinha nos botecos: fiado só amanhã.

Keynes culpava as variações abruptas de curto prazo da “eficiência marginal do capital” pelos ciclos econômicos de prosperidade e depressão. Para ele, a irracionalidade e volubilidade dos investidores privados (“animal spirits”) eram a causa eficiente das crises. Essa teoria é tão infundada quanto a anterior. Os empresários são perfeitamente racionais: investem nas linhas de produção em que esperam o maior retorno, o qual dependerá do estado futuro do mercado, sobretudo da preferência dos conumidores. Alguns erram suas estimativas e sofrem prejuízos; outros acertam e conseguem obter lucro. Isso ocorre o tempo todo. O traço singular das crises é que repentinamente a situação revela que todos, ou quase todos, os empresários erraram em suas previsões. Não se trata de flutuações na psicologia coletiva do mercado, como defendia Keynes, mas de dados bem reais, concretos: a lucratividade esperada em todos os setores não se confirmou. Ora, como é possível que homens de negócios treinados em um ambiente duramente competitivo na arte de antecipar a demanda futura errem subitamente, todos ao mesmo tempo? Esse é o problema crucial que deve ser enfrentado por uma teoria coerente dos ciclos. É pertinente esboçar agora a teoria dos ciclos da escola austríaca, que, além de me parecer a mais completa, conflita frontalmente com a concepção keynesiana.

No modelo de uma economia de mercado pura, como aqueles delineados por Murray Rothbard (Man, Economy and State) e J. Schumpeter (Teoria do Desenvolvimento Econômico), não se encontra a solução do enigma. Schumpeter (um grande economista austríaco, porém ligado à escola walrasiana do equilíbrio geral) procurou a resposta na função empresarial como o fator de desequilíbrio que detona a crise. É a célebre teoria da “destruição criativa”, que ocorre quando alguns empresários introduzem novos métodos de produção, novas tecnologias e novos produtos no mercado. Essas inovações perturbam a constelação econômica e deflagram algo como “dores do parto” inevitáveis ao progresso, em que certas indústrias são eliminados e novas são criadas e desenvolvidas. Findo o processo, um novo equilíbrio é estabelecido, até que nova perturbação aconteça. A crítica que efetivamente refuta essa tese funda-se no fato de que as inovações empresariais não se concentram em um período determinado, mas estão operando o tempo todo. A conclusão dos austríacos é que as crises não têm lugar na economia capitalista pura. A causa dos ciclos, pois, deve necessariamente ser exógena. Mises notou que, em um mundo onde tudo é heterogêneo, o cálculo econômico racional pressupõe preços em dinheiro, que é a unidade de conta homogênea que articula toda a economia. Os agentes econômicos traçam seus planos e agem em função deles com base em parâmetros monetários. O sistema de preços é, pois, a bússola geral da economia. O que ocorre quando essa bússola é danificada? Em especial, quais as consequências de manipulações das taxas de juros no mercado financeiro? Antes de prosseguir é preciso proceder a uma investigação sumária sobre a natureza do juro.

A teoria do juro é muito controvertida. Existem basicamente duas explicações sobre a sua essência: produtividade do capital e preferência temporal. A doutrina da produtividade ensina que o empréstimo de dinheiro equivale a ceder a outrem os meios de empregar bens de capital para determinados fins. Esses bens de capital produzirão frutos no período do empréstimo, pelo que o juro é a recompensa que se paga ao emprestador pela cessão da produtividade do capital ao tomador. Já a tese da preferência temporal parte do pressuposto de que as pessoas valoram mais os mesmos bens no presente do que no futuro, sendo o juro o desconto do futuro em relação ao presente. Há ainda autores ecléticos que adotam tanto a produtividade quanto a preferência temporal. Todas essas teorias concluem que o juro é um fenômeno real que perpassa toda a economia, não sendo limitado ao mercado de empréstimo de dinheiro. Keynes, porém, com sua tese da “preferência pela liquidez”, afirma que o juro é a recompensa que se paga ao emprestador para não entesourar dinheiro. E só. Para os keynesianos o juro é um fenômeno limitado ao mercado de dinheiro. Trata-se de um tremendo retrocesso a grosseiras concepções pré-científicas. O juro é retratado como um abuso da propriedade do dinheiro por parte de usurários inescrupulosos. Nada mais justo, pois, do que simplesmente abolir o juro e acabar com esse privilégio iníquo do “rentier“. Essa tese está, para variar, inteiramente errada. Ora, se o juro é o preço de se separar da liquidez, o mesmo se pode dizer de todos os preços existentes. Por exemplo, o preço de uma média com pão com manteiga é a recompensa que o dono do botequim deve me pagar para que eu desista d e entesourar a nota de um real que carrego na carteira e me anime a separar-me da cálida liquidez propiciada por esse dinheiro. Assim, a “taxa da média com pão com manteiga” é de um real. Ridículo.

Para Mises, o juro é a taxa social de preferência temporal e o principal componente da taxa de juros do mercado financeiro, à qual se somam mais dois componentes secundários: um relativo à expectativa de variação do poder aquisitivo da unidade monetária e outro referente ao risco de inadimplemento dos devedores. Seguindo a concepção de Bohm-Bawerk sobre o capital, o juro é visto como um fenômeno real cujo papel é o de estruturar intertemporalmente os diversos estágios da produção capitalista. Esta segue um caminho indireto, dividido em várias fases, da extração das matérias-primas até a venda do bem de consumo no varejo. A taxa de juros bancária sinaliza para os empreendedores o quantum de poupança disponível para investimentos e a proporção social entre consumo e poupança em um dado momento. Se o banco central reduz artificialmente a taxa de juros abaixo do nível de mercado, um sinal fundamental para o processo econômico é falseado. Se a taxa de mercado é de, digamos, 10% anuais, somente empreendimentos que prometam um retorno acima dessa cifra serão levados a cabo. Se, contudo, o governo fixa uma taxa de 6% anuais, criando ex nihilo depósitos bancários sujeitos a cheque, ou seja, inflando o estoque de moeda, os empresários lançam-se em projetos que só aparentemente são rentáveis, pois a poupança existente é menor do que parece.. Surge um falso incentivo ao investimento sobretudo nos estágios de bens de capital mais distantes do consumo final, os quais atraem fatores de produção antes empregados nos estágios mais próximos do consumo final. Ocorre que a taxa de juros real, isto é, a proporção geral de consumo e poupança, não mudou. Os proprietários dos fatores de produção atraídos para as novas indústrias continuam a gastar e poupar como se a taxa de juros fosse de 10% anuais. O incremento do consumo decorrente da maior quantidade de dinheiro aumenta os preços do varejo e os estágios da cadeia produtiva mais próximos do consumo atraem de volta os fatores de produção anteriormente desviados para o setor de bens de capital. Os investimentos ilusoriamente rentáveis à taxa de juros mais baixa revelam-se errados. É o momento da crise. O governo vê-se diante do dilema de baixar ainda mais a taxa de juros para socorrer os devedores em estado periclitante, e assim correr o perigo de uma inflação de preços, ou elevar os juros até o nível de mercado ou acima, o que engendra a liquidação dos empreendimentos inviáveis e a retomada do equilíbrio segundo a preferência temporal real. Esse último caso é a recessão.

Essa teoria monetária dos ciclos, brilhantemente formalizada por Hayek no livro Prices and Production, é apoiada pela evidência empírica. Todas as crises e recessões (inclusive a atual) começam nas indústrias de bens de capital e só bem mais tarde chegam ao consumo no varejo. Se a doutrina keynesiana da demanda agregada insuficiente fosse a correta, seria o contrário: o setor de bens de consumo seria afetado em primeiro lugar. A ambição keynesiana de abolir o juro é, por conseguinte absurda e desastrosa. A política keynesiana de manter juros artificialmente baixos por um longo tempo tampouco é menos nefasta. A opção entre inflação e desemprego é ilusória, salvo no curto prazo. A inflação não pode durar para sempre, sob pena de causar o colapso da própria moeda. A grande crise dos anos 70, caracterizada por inflação alta e desemprego alto, representou o fim do projeto keynesiano de fomentar a prosperidade eterna via inflação e juros baixos. Para debelar a inflação, os países desenvolvidos viram-se obrigados a elevar as taxas de juros reais para a estratosfera no início dos anos 80, exatamente como previra a teoria austríaca dos ciclos.

O Milagre da Multiplicação

O multiplicador é um conceito chave no sistema keynesiano e anunciado como uma de suas grandes descobertas. Vejamos. Keynes deduz da natureza humana, sem maiores fanfarras, uma “lei psicológica fundamental”, batizada de propensão a consumir. Trata-se de uma relação supostamente estável entre renda total e consumo total, representada graficamente por uma curva (ou matematicamente por uma “função”). A idéia básica é que o consumo agregado é sempre proporcionalmente estável, mesmo quando a renda agregada aumenta. Suponhamos que o consumo agregado seja de 80% da renda agregada em qualquer nível, sendo os 20% restantes alocados como poupança. Dessa suposição infere-se que todo investimento novo (público ou privado) gera um múltiplo cuja exata magnitude pode ser calculada matematicamente. O investimento gera renda para os proprietários dos fatores de produção, os quais poupam 20% e gastam 80%, que se torna renda para quem recebeu, e assim por diante. Assim, um investimento de um milhão (o multiplicando) gera um aumento total de renda de cinco milhões, supondo-se que o multiplicador seja 5.

Estamos diante de um caso de flagrante abuso da matemática, pois apregoa-se uma exatidão rigorosa absolutamente falsa. Para começar, Keynes matematiza uma “lei psicológica”, cuja existência e validade sequer é investigada, com a maior naturalidade, como se fosse coisa perfeitamente normal. Como Freud e Jung não pensaram nisso antes? É óbvio o sofisma. Não há lei psicológica nenhuma que permita deduzir a estabilidade permanente da proporção consumo/poupança da renda agregada. Não existem constantes quantitativas na ação humana. É puro xamanismo travestido de ciência. Ademais, mesmo admitindo-se para argumentar que o raciocínio esteja em linhas gerais correto, a precisão matemática é espúria. Como Keynes e os keynesianos admitem, é impossível saber de antemão qual será o multiplicador do próximo investimento. Keynes “acha”, por exemplo, que o multiplicador nos Estados Unidos da época era de 2,5. Tampouco é razoavelmente possível verificar posteriormente qual foi o multiplicador do investimento passado e qual o aumento da renda por ele gerado, até porque afirma-se que podem ocorrer “filtrações” imprevisíveis no processo. O tempo de duração desse milagre da multiplicação também é imprevisível, vez que depende de circunstâncias variáveis. Logo, o que temos é o seguinte: SE a propensão a consumir for a, SE a propensão marginal a consumir for b e SE o multiplicador for k, um novo investimento de x acarretará um aumento de renda de kx, se não houver filtrações, e em tempo indefinido. Um enunciado honesto dessa teoria seria algo como: todo novo investimento gera um aumento de renda cuja magnitude e tempo de dura&cc edil;ão, além de não poderem ser estimados ex ante nem verificados ex post, dependem de circunstâncias inquantificáveis e imprevisíveis, e ipso facto nunca são constantes. A exposição clara do raciocínio, contudo, revelaria seu caráter truístico e impreciso, o que seria inaceitável face ao propósito idelógico mais ou menos declarado dessa mistificação: justificar os gastos públicos. A grande revolução do keynesianismo teve natureza semântico-idelógica: qualquer gasto público, por mais estapafúrdio que fosse, passou a ser denominado de “investimento”. Keynes afirma na Teoria Geral que construir pirâmides ou cavar buracos para depois tapá-los com dinheiro público são hipóteses de “investimento”.

É claro que tudo isso é bobagem da grossa. Na ausência de interferência no sistema de preços, a Lei de Say se encarrega de harmonizar o processo econômico. Quantos aos gastos públicos, se são financiados com impostos ou endividamento, simplesmente desviam recursos do investimento e consumo dos particulares para finalidades preferidas pelos políticos e burocratas. Se um governo ordena a construção de pirâmides invertidas nas praças de todas as cidades, o “multiplicador” correspondente à renda dos operários empregados nessas obras é mais do que anulado pelo “divisor” decorrente de empreeendimentos privados que tiveram de ser renunciados e da renda dos assalariados desses empreendimentos que consequentemente não foi gerada. Na hipótese de financiamento inflacionário dos gastos públicos, ou seja, através da criação pura e simples de dinheiro, somente decorrerão efeitos positivos, e mesmo assim só no curto prazo, se a inflação de preços depreciar os salários nominais até o ponto em que seu valor real iguale oferta e procura por trabalho em todos os mercados. Vale lembrar que “investimentos” públicos ocorreram em grande escala durante toda a depressão dos anos 30, bem como na atual crise japonesa, e o “multiplicador” simplesmente não funcionou.

Estamos agora em posição de esboçar um modelo de economia ideal segundo o figurino keynesiano. Imaginemos um sistema em que o governo imprime um milhão de unidades monetárias e as entrega a quinhentos mil indivíduos, a metade da população, com ordens expressas de gastar esse dinheiro integralmente na contratação da outra metade da população para o fim específico de cavar buracos com as mãos nuas. Estes, por sua vez, terão que gastar toda a sua renda contratando aqueles para tapar os buracos cavados. A propensão a consumir é, pois, de 100%, perfeitamente estável e constante. A poupança felizmente não existe, de maneira que não ocorre o entesouramento. Também não há investimento privado, graças aos céus, de modo que essa variável inconveniente e instável não atrapalha o funcionamento da economia. O multiplicador pode ser calculado com precisão e seus efeitos idem: como a propensão marginal a consumir é 1, o multiplicador de renda é infinito. Keynes descobriu o moto contínuo econômico! Não há comércio exterior nem problemas com a taxa de câmbio. O juro está suprimido; o rentier não oprime mais o povo. Voilá! O ponto da demanda efetiva coincide permanente e eternamente com o ponto do pleno emprego. É verdade que a ninguém é permitido fazer outra coisa senão cavar e tapar buracos. Mas que importam esses detalhes? O desemprego está eliminado para sempre. O pleno emprego é tudo o que a humanidade necessita!

O leitor talvez se queixe de abuso do recurso retórico da reductio ad absurdum. Creio, todavia, que na lógica do sistema keynesiano todos os raciocínios conduzem inevitavelmente ao absurdo.

O Postulado do Rei-Filósofo

Mesmo que o quadro analítico pintado por Keynes estivesse correto – e não está -, ainda assim o programa de ação dele derivado dependeria de mais um postulado nada menos do que mirabolante: a onisciência e benevolência dos agentes públicos encarregados de sua execução. Para o Deus Ex Machina keynesiano funcionar é imprescindível que ele seja manejado por um Rei-Filósofo platônico, assessorado por severos e incorruptíveis guardiães. Somente uma deidade seria capaz de saber com certeza o momento exato de puxar as alavancas e acionar os botões da máquina macroeconômica keynesiana e assim perpetuar o equilíbrio com pleno emprego. E somente seres divinos seriam capazes de resistir às tentações de usar em causa própria o enorme poder que Keynes concentra no governo. Essa era a imagem que Keynes e seus sucessores faziam de si mesmos, ou pelo menos era a imagem com que queriam persuadir o público de sua capacidade e competência. E não há dúvida de que é desse modo que os políticos e burocratas gostam de ser retratados. Evidentemente esse postulado deve ser rejeitado instintivamente por absurdo. Malgrado seja possível que um ou outro agente estatal atue de acordo com o que acredita ser o interesse social, há que reconhecer que essa não é a regra.

Os economistas da escola da “Public Choice” aprofundaram o estudo do comportamento do homo politicus e suas análises retratam com bastante fidelidade a realidade circundante. Presume-se que tanto os políticos, como os burocratas e eleitores ajam segundo seus próprios interesses. O objetivo dos políticos é alcançar e manter o poder; os burocratas desejam melhores salários e mais prebendas; e os eleitores votam nos candidatos que lhes prometam mais benefícios concretos. Os políticos celebram acordos com grupos de interesse setoriais que lhes garantam o máximo possível de votos e recursos para suas campanhas eleitorais; os burocratas pressionam os políticos através de seus poderosos sindicatos visando obter cada vez mais vantagens; e os eleitores votam em quem lhes oferecer algo palpável em troca, não raro às expensas de outras pessoas e grupos. Os recursos que sustentam os políticos, burocratas e eleitores favorecidos por políticas redistributivistas e restricionistas (welfare-state, subsídios, protecionismo, licenças profissionais etc) são oriundos da riqueza tomada aos contribuintes. A carga tributária, assim, tende a ser tão alta quanto possível e mesmo assim nunca é suficiente para assegurar um orçamento público equilibrado. Os déficits fiscais permanentes resultantes acabam sendo financiados via inflação e endividamento público, que geram juros altos e muitos outros males. A politização crescente da vida engendra uma ordem social infernal e injusta, tal como a que conhecemos tão bem. A macroeconomia keynesiana, já um erro em si mesma, agrava ainda mais a situação por outorgar aos agentes políticos poderes exorbitantes para manipular a economia, poderes que inevitavelmente terminam sendo exercidos em benef&iac ute;cio próprio por aqueles que o usam. Ao tornar respeitáveis – e mesmo desejáveis – coisas como inflação, déficits orçamentários, gastos públicos desmedidos e tributação elevada, o keynesianismo contribuiu decisivamente para fomentar o descalabro estatista em escala só ultrapassada nos países comunistas.

O Dono do Mundo

Na época da deflagração da Segunda Guerra Mundial, Keynes estava no pináculo da fama e influência mundiais, reconhecido como maior economista do seu tempo. Principal assessor de política econômica do governo britânico, foi feito Lorde (Barão Keynes de Tilton) por seu antigo desafeto Winston Churchill. Com a vitória militar assegurada, reuniram-se em 1944, na localidade americana de Bretton Woods, delegações de inúmeros governos para deliberar sobre a reconstrução da economia mundial do pós-guerra. É claro que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha dominavam a conferência, restando aos demais o papel de meros figurantes. Chefiando a missão britânica lá estava ele, Keynes, finalmente dispondo de poder suficiente para impor sua engenharia social ao planeta. O líder dos americanos era Harry Dexter White, um ativo new dealer de Roosevelt e, hoje sabe-se com certeza, comunista e agente da União Soviética. Que ironia! O futuro do capitalismo estava agora nas mãos de um socialista fabiano e de um comunista! E que cinismo dos socialistas de todos os matizes as entediantes catilinárias lançadas contra instituições criadas por eles mesmos, como o FMI, o Banco Mundial e o Gatt (atual OMC)!

Keynes queria liberdade de ação para o seu governo (e, por extensão, para todos os governos) garantir o “pleno emprego” estabilizando a “demanda efetiva”. Em outras palavras, ele pretendia aumentar indefinidamente a oferta de moeda e crédito na economia inglesa, ou em bom português, inflacionar. Para que as inevitáveis distorções e problemas oriundos dos fluxos financeiros internacionais, do câmbio, do balanço de pagamentos e do comércio exterior não atrapalhassem a política inflacionária inglesa, Keynes propunha que se controlasse severamente os movimentos de capital e as taxas de câmbio. O rabo teria que abanar o cachorro. Ele e Harry White conceberam o FMI para tentar remendar os desequilíbrios nos balanços de pagamentos que suas próprias políticas tornavam inevitáveis. Estava criado o cenário para a pandemia inflacionária mundial das próximas décadas. Foi criado ainda o Banco Mundial, organismo que se especializou em transferir o dinheiro tomado compulsoriamente dos contribuintes pobres dos países ricos para as ricas e predatórias oligarquias dos países pobres. Na mesma época, Roosevelt doava metade da Europa para a URSS em troca da participação dela na ONU. Assim, essa instituição tão ciosa dos “direitos humanos” nasceu de uma barganha na qual algumas dezenas de milhões de seres humanos foram entregues cinicamente aos ternos cuidados do “Tio Joe”, o camarada Stalin.

Keynes morreu no auge do sucesso em 1946. Alguns de seus amigos disseram mais tarde que ele estava algo insatisfeito com suas próprias teorias e seus efeitos, irritado com seus pupilos do “circo” cambridgeano e que tencionava repudiar parcialmente o “keynesianismo”. De fato, em seu último artigo no Economic Journal, publicado postumamente, há discretos elogios à doutrina “clássica” e uma amarga tirada contra as teorias contemporâneas, “much modernist stuff turned sour, and gone wrong and silly”. A que mais ele poderia estar se referindo senão às suas próprias idéias?! Seja como for, o mal já estava feito.

O Mundo Mágico da Macroeconomia

Teorizar é abstrair do objeto do estudo os elementos acidentais e manejar apenas o que é essencial para a compreensão do que se estuda. A macroeconomia, contudo, abstrai demais e por isso é imprestável como referencial teórico. O próprio núcleo do fenômeno econômico, a ação humana individual motivada em um mundo de escassez e incerteza, é desprezado. Esse é o pecado original da macroeconomia inaugurada pelo pernóstico fabiano inglês e que a macula desde então. O único vínculo entre os agregados keynesianos e o ser humano concreto são as “leis psicológicas fundamentais” que Keynes inventa para adornar com uma aparência de fundamentação empírica suas “funções” fraudulentas. A macroeconomia não faz sentido para os agentes econômicos: indivíduos, empresas, famílias. Esse holismo só interessa ao estado, não porque lhe confira o poder de controlar benevolamente as atividades econômicas, mas porque dissemina a ilusão de que isso é possível e desejável. A fusão dessa macrodoutrina com as outras tendências dominantes no pensamento econômico da época, o método matemático e a quantificação estatística, gestaram um ferramental analítico tão imponente quanto equivocado. Um colega de Keynes, J. Hicks, concebeu em 1937 o modelo IS-ML (“I” de investimento, “S” de poupança, “L” de preferência pela liquidez e “M” de oferta de moeda) no qual a “teoria geral” keynesiana, que se gabava de ser um avanço face ao “caso especial clássico”, ela era mesma um caso especial. Essa “macro-macroeconomia” Keynes-Hicks é o que se ensina ainda em nossos dias nas universidades de t odo o planeta como o state of the art da ciência econômica. Modelos macroeconômicos com 300 equações e 500 variáveis foram desenvolvidos com o fim de prever a atividade econômica futura e atingiram uma perfeição estatística impressionante: 100% de previsões erradas. Os historiadores futuros registrarão que raramente houve nos anais da ciência tamanho desperdício de neurônios e recursos.

Na mesma época, a teoria do valor e dos preços ganhou a alcunha de microeconomia. O paradigma teórico microeconômico, como era de se esperar, veio a ser, como ainda é, aquele baseado na obra de L. Walras, cujos traços marcantes são a metodologia pesadamente matemática, o formalismo, os postulados irrealistas (concorrência perfeita, informação perfeita, mobilidade perfeita) e a obsessão pelo equilíbrio. A farisaica constatação de que a realidade imperfeita não se enquadra nas premissas e conclusões perfeitas dessa espécie de análise microeconômica forneceu, e ainda fornece, mais falsos pretextos para o intervencionismo estatal curar as “falhas do mercado”. A “síntese neoclássica”, como passou a ser chamado esse casamento de conveniência da macroeconomia keynesiana com a microeconomia walrasiana, reduz o pensamento econômico a um ramo da matemática aplicada, expulsando do seu âmbito a ação humana concreta. Os economistas contemporâneos empenharam-se na busca inútil da equação suprema e fundamental, a e=mc2 da economia. Contudo, uma ciência não pode esvaziar-se de seu conteúdo impunemente. À medida em que os refinamentos analíticos descolavam a teoria econômica cada vez mais do mundo real, e as controvérsias doutrinárias se faziam cada vez mais bizantinas, a realidade se fez sentir e veio a desnudar a irrelevância das mais engenhosas teorias e dos mais elegantes modelos matamáticos.

A mitologia fabiana assevera que os 25 anos que se seguiram à Segunda Guerra constituíram uma Idade do Ouro de crescimento constante e prosperidade universal atribuídos, claro, ao keynesianismo. Trata-se de uma patranha ideológica, de um caso típico da falácia post hoc ergo propter hoc, como veremos. Períodos de grande desenvolvimento no século 19 e no início do século 20 se desenrolaram sem a interveniência da nova macroeconomia. O fato é que o futuro do capitalismo dependia do desempenho da economia americana, a única isenta das depredações causadas pela guerra. As previsões de Keynes e seus discípulos em ambos os lados do Atlântico, porém, eram sombrias. A guerra trouxera o pleno emprego, pois quem não estava fabricando armamentos em casa estava utilizando-os nas batalhas nos quatro cantos do mundo. O investimento fora socializado, com efeito. O governo americano controlava direta ou indiretamente a produção nacional. O fim do conflito traria a desmobilização de milhões de soldados, bem como a drástica redução da produção bélica. A consequente cessação do domínio estatal do investimento total significaria devolver aos particulares a dura tarefa de igualar a “demanda efetiva” ao ponto do “pleno emprego”. Como sabemos, os keynesianos acreditavam piamente que isso não seria possível, face aos vícios da “eficiência marginal do capital” privado. Eles eram unânimes em seu diagnóstico: a paz causaria uma depressão calamitosa na economia americana. Ah, se a guerra pudesse durar para sempre! Diagnóstico estrondosamente errado. Os homens que deixaram as forças armadas foram rapidamente absorvidos no mercado de trabalho e a conversão da produção para fins pacíficos ocorreu com uma rapidez e harmonia surpreendentes até mesmo para os raros remanescentes da antiga e “superada” teoria econômica. A depressão profetizada não se materializou. A velha Lei de Say cumpriu sua missão equilibradora à contento e o vigor econômico americano em breve estava galvanizando o mundo. A prosperidade continuou nos anos 50, sob a prudente administração do Presidente Eisenhower, que adotou uma política de orçamento equilibrado e razoável controle da oferta de moeda. Ele não cedeu às pressões intervencionistas nem mesmo durante as leves recessões do período. À despeito de sua completa hegemonia acadêmica, o keynesianismo só chegou ao poder na América no governo Kennedy.

A recuperação americana não teria sido suficiente para garantir o crescimento econômico mundial em bases capitalistas. A Europa e a Ásia precisavam cooperar. E na Europa, foi a Alemanha Ocidental, arrasada pela guerra e sufocada pelo controles socialistas herdados do nazismo e mantido pelos ocupantes, que surpreendeu o mundo. Keynes nada teve a ver com o milagre alemão. Pelo contrário, a política econômica alemã coube aos liberais da velha escola, Ludwig Erhard e Wilhelm Ropke. Em 1948 foram suprimidos os controles de preços e câmbio, a moeda foi reformada, o governo preocupou-se em preservar sua solvência e deixou ao mercado a tarefa da reconstrução. Em poucos anos a Alemanha era o país mais próspero do continente. A França, por seu turno, só emergiu do marasmo socialista no fim dos anos 50, quando De Gaulle convocou o veterano economista liberal Jacques Rueff, feroz crítico de Keynes, para botar ordem na casa. Não passa de desinformação a idéia de que foi o Plano Marshall o fator decisivo para a retomada alemã e européia em geral. Se subsídio por si só resolvesse alguma coisa, Cuba, que recebeu da URSS dez vezes mais do que toda a Europa sob o Plano Marshall, seria um país opulento. Na Ásia, o igualmente destruído Japão foi o grande pólo da economia de mercado. Para isso contou com alguma sorte. O general MacArthur, o vice-rei ocupante, nutria simpatias pelo liberalismo. O especialista que ele recrutou para lançar os alicerces da nova economia japonesa era um banqueiro americano imune ao charme keynesiano. Como no exemplo alemão, o governo japonês limitou-se a manter suas finanças em ordem; o resto ficou por conta do mercado. Graças ao trabalho duro e a frugalidade do povo japonês e o espírito de iniciativa de seus empres&aac ute;rios, o Japão logo se reergueu. Muita poupança e investimentos privados e orientação para o comércio internacional constituíram a razão do sucesso nipônico. Precisamente o que Keynes considerava nefasto!

Enquanto a tríade EUA-Alemanha-Japão comandava o robusto renascimento capitalista, na Grã-Bretanha, o locus classicus do socialismo fabiano e do keynesianismo, as coisas iam de mal a pior. Não por falta de otimismo e presunção. Antes do final da guerra, W. Beveridge publicou o “manifesto fabiano” intitulado Full Employment in a Free Society, programa de ação política concebido por uma horda de discípulos de Keynes. Os objetivos eram ambiciosos: nada menos do que manejar a nova macroeconomia de modo a assegurar o crescimento econômico acelerado com estabilidade de preços e, naturalmente, pleno emprego. Os ciclos econômicos, o desemprego e as depressões eram fenômenos obsoletos. O triunfo categórico do Partido Trabalhista nas eleições gerais de 1945 assegurava amplo apoio popular e parlamentar ao projeto fabiano. O novo governo estatizou quase toda a indústria pesada, os transportes e muito mais, enquanto o que restava de investimento privado era ciumentamente controlado e dirigido. Os tributos subiram às alturas; em alguns casos a alíquota do imposto de renda chegava a 99%! A taxa de juros foi mantida baixa por anos a fio. No entanto, a economia inglesa atolou-se na estagnação e foi no devido tempo ultrapassada pela Alemanha, Japão, França e até pela Itália. Com o passar dos anos, a “política monetária” e a “política fiscal”, os instrumentos básicos de gerenciamento macroeconômico, tornaram-se um fim em si mesmas, entraram em conflito e uma passou a canibalizar a outra. Os déficits orçamentários (“política fiscal”) do governo eram cobertos com emissão de dinheiro (“política monetária”). Dessa relação promíscua nasceram dois filhotes teratológicos: a “política salarial” e a “política de preços”. A inflação galopante gerada pela criação de dinheiro pelo governo para cobrir os rombos em suas finanças, bem como para estimular a “demanda efetiva”, subiu para mais de 20% ao ano e era cada vez mais impopular e intolerável. Do mesmo modo, a “política cambial” fracassava estrepitosamente em seu objetivo de impedir que a inflação depreciasse a moeda. A libra esterlina, outrora um orgulho nacional, caiu pelas tabelas. O governo punha então a culpa nos sindicatos e nos comerciantes, como sempre acontece, e decretava o controle de preços e salários. Conhecemos bem esse roteiro que nos deu o “plano cruzado” e sua prole. Conhecemos melhor ainda os resultados de semelhante insensatez.

Entrementes, nos Estados Unidos, as administrações Kennedy, Johnson e Nixon haviam explodido as contas públicas americanas com as custosas extravagâncias previdenciárias do welfare state, as corridas espacial e armamentista e a guerra do Vietnam. O déficit público americano disparou, juntamente com a inflação. Por outro lado, a camisa de força das taxas de câmbio fixas decididas em Bretton Woods, sob a autoridade de Keynes em pessoa, se esfarelava. Em um mundo onde todos os governos podiam criar dinheiro à vontade, o câmbio fixo era um contra-senso. Os países acabavam exportando suas inflações, sobretudo os Estados Unidos, já que o dólar era a moeda de reserva universal. Em 1971 a (des)ordem monetária internacional gestada por Keynes e White em Bretton Woods se desintegrou. Desde então o valor de cada moeda flutua em relação às outras. Mas pelo menos não haveria desemprego, visto que os economistas keynesianos juravam de pés juntos que inflação e desemprego eram coisas mutuamente excludentes. Certo? Errado. A mágica inflacionária perdeu o encanto nos anos 70, enquanto o desemprego disparava. Foi a época da “estagflação”: depressão, desemprego e inflação. Belo epitáfio para a teoria de Keynes.

Nesse ínterim, os economistas da Escola de Chicago, liderados por Milton Friedman, moviam uma guerra de guerrilhas contra a ortodoxia keynesiana dominante nos meios acadêmicos. Friedman é um aguerrido liberal à Adam Smith em tudo, exceto no plano da moeda. Os monetaristas, como passaram a ser conhecidos, abordam a questão do dinheiro de um ponto de vista macroeconômico. Para eles, a tarefa do governo é manter a oferta de moeda em crescimento pari passu com o aumento da produtividade da economia, de modo que o “nível geral de preços” permaneça estável. Quanto ao mais, as forças de mercado se encarregam de harmonizar a economia. A vitória do monetarismo no início dos anos 80 foi apenas parcial. Na verdade, o seu approach monetário foi incorporado à macroeconomia keynesiana, enquanto que suas pregações ultraliberais em outros campos foram devidamente descartadas. De qualquer modo, a experiência catastrófica dos anos 70 contribuiu para abalar a soberba dos macroeconomistas. Desde então, as esfuziantes pretensões macroeconômicas de assegurar o crescimento e o pleno emprego cederam passo à meta bem mais modesta de manter a estabilidade dos preços, deixando o resto para o mercado resolver. Esse é o estado da questão hoje em dia. A política macroeconômica dita de “metas inflacionárias” é adotada em quase todo o mundo. E o que ela quer dizer em bom português? Simples. Significa que a mão direita do governo não vai aumentar a quantidade de dinheiro na economia além de um limite pré-estabelecido, não importa o que sua mão esquerda faça. Em suma, os governos não financiarão seus déficits orçamentantários com inflação, e sim com endividamento. Contudo, mudar o sof&a acute; de lugar não soluciona o imbroglio. A mulher continuará traindo o marido, e o intervencionismo estatal continuará a fazer estragos.

Keynes então estaria bem morto e enterrado, afinal? De jeito nenhum. O problema do monetarismo é que lhe falta uma teoria dos ciclos econômicos. Para eles, se a moeda for bem administrada, os ciclos simplesmente não ocorrerão. Mas eles ocorrem assim mesmo. Nesses momentos, como o atual, os monetaristas ficam desconcertados, ao mesmo tempo em que surgem legiões de keynesianos, como zumbis emergindo dos cemitérios, exigindo dos governos que baixem os juros à zero e que incorram em déficits para estimular a “demanda efetiva”. Isso é música para os ouvidos dos políticos de todos os partidos. Ademais, a macroeconomia, mesmo remendada pelo monetarismo, como já analisamos, é um erro e deve ser abandonada tout court. Até que sejam descartados, o pensamento e a ação macroeconômicos continuarão a produzir seus efeitos desastrosos de um modo ou de outro. O espectro de Keynes continuará a nos atormentar enquanto a ideologia fabiana for hegemônica.

Uma Teoria de Terceira para o Terceiro Mundo

A derrota do nazi-fascismo na Segunda Guerra Mundial resultou na ocupação do terreno ideológico pelos dois socialismos sobreviventes, o comunismo e o fabianismo. Foi o início de uma época trágica, que perdura até hoje, para a massa heterogênea de povos e culturas díspares atulhados sob o rótulo espúrio conhecido como Terceiro Mundo. As violências e arbitrariedades de outrora empalidecem em comparação com as barbaridades perpetradas pelo socialismo do pós-guerra contra povos insuspeitos e indefesos. O papel lúgubre do comunismo nessa tragédia é mais ou menos conhecido. Trataremos com mais detalhes da atuação fabiana nesse palco, macroeconomia keynesiana inclusa, a qual é menos notória. A Teoria Geral se concentrava nas flutuações de curto prazo no nível de atividade econômica dos países desenvolvidos. Coube aos discípulos de Keynes, como R. Harrod, elaborar uma teoria macroeconômica do crescimento no longo prazo. Essa doutrina foi logo encampada pela fina flor do socialismo fabiano, confortavelmente instalada nas comissões econômicas da ONU e nas instituições multilaterais filhas de Bretton Woods, como o FMI e o Banco Mundial. Homens como o sueco Gunnar Myrdal, o argentino Raul Prebisch e o brasileiro Celso Furtado recomendavam o planejamento econômico socialista como panacéia para os países pobres romperem as cadeias de seu atraso. O Banco Mundial e outras organizações aparentadas abriram generosamente a bolsa para financiar os projetos a serem tocados pelas novas elites dos páises descolonizados, devidamente educadas na tradição socialista ocidental.

Os postulados da teoria desenvolvimentista fabiano-keynesiana eram tão simples quanto ridiculamente falsos. Um deles era o dito “círculo vicioso da pobreza”. Os pobres são pobres porque são pobres. O crescimento pressupõe poupança e investimento, sobretudo nos setores de infra-estrutura. Sucede que os pobres do Terceiro Mundo são resignados e acomodados, incapazes de reagirem por si mesmos aos incentivos de mercado. Não possuem capacidade empresarial, nem propensão para a poupança. Os contatos espontâneos com o setor privado do Ocidente não eram bem vistos, uma vez que o dogma de que capitalismo significa exploração do proletariado era aceito mais ou menos abertamente. Ademais, os altos padrões de consumo do mundo desenvolvido causariam o denominado “efeito-demonstração” nos povos subdesenvolvidos, ou seja, incitavam os pobres a imitar os padrões de consumo dos ricos, com prejuízo para a formação de poupança e capital. A copiosa literatura desenvolvimentista do pós-guerra, portadora da aura de sapiência das melhores universidades dos Estados Unidos e da Europa, concluía à unanimidade que a via do desenvolvimento do Terceiro Mundo teria que ser o dirigismo estatal. Nunca ocorreu aos fabianos-keynesianos indagar o que os povos subdesenvolvidos realmente desejavam. O crescimento seria imposto à força, se necessário, pois eles sabiam o que era melhor para as pessoas. A poupança teria que ser extraída à fórceps, mediante a tributação escorchante, o controle do comércio exterior e do câmbio e a inflação. Os investimentos em indústria pesada e infra-estrutura ficariam à cargo do governo, diretamente através de empresas estatais ou indiretamente com o financiamento de empresários nacionais, d evidamente protegidos da concorrência externa e interna mercê de barreiras alfandegárias e concessões monopolísticas, e mimoseados com fartos subsídios. Os investimentos diretos privados não eram encorajados. Como a poupança interna era insuficiente para võos tão altos, os recursos necessários seriam complementados com empréstimos a juros zero e longas carências do Banco Mundial diretamente para os governos. Esses governos, por outro lado, poderiam recorrer também ao mercado financeiro privado internacional, posto que o FMI exerceria a função de avalista junto aos credores externos e fonte de socorros financeiros de emergência. Um programa econômico desse naipe é receita certa para o desastre, o que fica evidenciado pelo fato de que nenhum país que o implementou obteve bons resultados. Mas o pior de tudo nessa cosmovisão era a enorme concentração de poder político e econômico nas mãos do estado, o que era um convite ao despotismo e à corrupção em grande escala

A história cataclísmica do programa fabiano para o Terceiro Mundo ainda está por ser contada. Um traço peculiar do fabiano do Primeiro Mundo é que ele se dá ao luxo de ser romântico no que toca ao mundo subdesenvolvido. Os ditadores mais pantagruélicos e as tiranias mais genocidas merecem invariavelmente a simpatia fabiana, sob a condição de se declararem de esquerda. Ao mesmo tempo em que ditaduras de direita como a sul-africana e a chilena atraíam a fúria dos fabianos hegemônicos nos meios letrados e na imprensa americana e européia, regimes esquerdistas assassinos tinham campo livre para promover suas sinistras aventuras de engenharia social sob a indiferença geral. Na África, sobretudo, essa aliança tácita entre comunistas e fabianos de um lado e as cruéis oligarquias locais de outro consumou massacres inenarráveis até para um Joseph Conrad. O Banco Mundial não suspendeu o financiamento dos governos comunistas etíope e cambojano, por exemplo, nem mesmo quando as respectivas populações eram trucidadas por esses mesmos governos.

Entre os povos roubados por hiperinflações arrasadoras, arruinados por dívidas públicas estratosféricas e subjugados pelo chicote do leviatã estatal está, é claro, o povo brasileiro. Com exceção dos curtos períodos de semi-liberalismo conduzidos por Eugênio Gudin no governo Café Filho, Campos-Bulhões no governo Castelo Branco e Gustavo Franco no início do governo FHC, o desenvolvimentismo vicejou entre nós, à esquerda e à direita do espectro político. O estatismo brasileiro, em especial o de Vargas e Ernesto Geisel, legou uma sociedade marcada pela injustiça, pelo privilégio e pela pobreza. Infelizmente, a indigesta gororoba doutrinária de Celso Furtado, Maria da Conceição Tavares, Bresser Pereira e seus inúmeros discípulos, condimentada com doses iguais de marxismo e keynesianismo, ainda vai continuar a envenenar o nosso povo por muito tempo, pois essa gente continua influente. Romper a cortina de fumaça ideológica que atribui todos os males dos países pobres ao capitalismo predatório não é fácil. Dos poucos autores que trataram francamente do tema, os melhores são o economista britânico Peter Bauer, o filósofo francês Jean-François Revel e o jornalista venezuelano Carlos Rangel. São as testemunhas corajosas e solitárias de um período negro da história da humanidade que ainda não acabou.

Felizmente nem todos os povos do Terceiro Mundo sucumbiram ao rolo compressor fabiano-comunista. Alguns escaparam por confiar mais na ordem contratual voluntária de mercado do que nos poderes coercitivos de polícia. Na Europa, a Irlanda, antes lendária por sua miséria, hoje nada em dinheiro. Na América Latina, o solitário Chile de Pinochet, um caso inédito de ditador não estatista no continente, foi o único a escolher a economia de mercado. Atualmente os chilenos colhem os frutos dessa decisão. Na Ásia, sobretudo, os chineses de Hong Kong, Formosa e Cingapura construíram os mais vibrantes empórios comerciais do mundo. A Coréia do Sul também preferiu o mercado, embora temperado com doses maiores de estatismo. Mas foi o suficiente para humilhar, pelo contraste, a arruinada Coréia comunista. O sucesso do capitalismo nesses países ilustra dolorosamente o equívoco do socialismo fabiano-keynesiano seguido pelo resto do terceiro Mundo.

Conclusão

Chegou o momento de unir as pontas dos argumentos desenvolvidos e responder às indagações formuladas no início do texto. Keynes foi ideologica, politica e intelectualmente um socialista fabiano. Com sua teoria macroeconômica, contribuiu decisivamente para o triunfo quase completo dessa corrente política em nossos dias. Há quem garanta que Keynes foi na verdade um liberal, embora adaptado aos tempos anti-liberais em que viveu, provando essa assertiva com citações descontextualizadas. Isso não é verdade. Podemos produzir citações de Keynes contendo elogios rasgados ao nazismo (na prefácio à edição alemã da Teoria Geral) e ao comunismo (em resenha de um livro apologético de Sidney e Beatrice Webb sobre a URSS de Stalin), mas não seria correto deduzir delas que ele era nazista ou comunista. Isso ele realmente não era. Mas tampouco pode-se concluir de um exame do conjunto de sua obra que ele foi um liberal, salvo no sentido americano desse termo, que se traduz precisamente por socialista fabiano. É fato que Keynes militou no Partido Liberal inglês, mas e daí? Essa agremiação política nada tinha de liberal já no tempo de H. Spencer, meio século antes. O persistente mito de que Keynes teria salvo o capitalismo é um disparate. Sua obra-prima não passa de racionalização ad hoc para as políticas empreendidas por todos os governos desde o início da depressão, cujo fracasso foi total. Após a guerra, o risorgimento do capitalismo ocorreu apesar das teorias de Keynes, não por causa delas. Os keynesianos costumam invocar a vantagem de ocupar uma posição intermediária entre o socialismo sem mercado (nazismo e comunismo) e o capitalismo laissez-faire. Assim, apontam o fato de serem criticados severamente tanto pe los marxistas (ex: Marx contra Keynes, de John Eaton), como pelos liberais clássicos (ex: The Failure of the “New Economics”, de Henry Hazlitt), como prova cabal da veracidade de suas teses. É claro que se trata de um sofisma. A virtude nem sempre está no meio. As teorias devem ser avaliadas segundo sua coerência lógica interna e a validez de suas premissas. E nesse teste o keynesianismo não passa.

O socialismo fabiano é, parodiando o dito de Sartre sobre o marxismo, a filosofia insuperável do nosso tempo. Um esclarecimento terminológico: o que eu chamo de socialismo fabiano é mais conhecido na linguagem política corrente como social-democracia ou terceira via. Nos EUA, num clamoroso delito de estelionato semântico, os socialistas fabianos se auto-denominam “liberais”. Prefiro, todavia, o termo fabiano por entender que este precedeu a social-democracia, tal como ela é em nossos dias, historica e doutrinariamente. O socialismo fabiano já era desde suas origens o que a social-democracia veio a ser mais tarde. Não é uma doutrina fixada em um corpus orgânico e compacto, como foi o marxismo. Pelo contrário, é um complexo bastante frouxo de idéias soltas e incorporadas como lugares-comuns ao pensamento cotidiano. E por isso mesmo é muito mais eficiente como ideologia do que o marxismo. Este explicitava seus conceitos em uma doutrina rigorosamente estruturada e autodenominada “científica”, deixando consequentemente o flanco aberto para ataques e refutações realmente científicos. A fragilidade interna do sistema marxista sempre foi fácil de ser notada, e muito mais ainda a sua clamorosa incompatibilidade com os fatos da vida e a evolução histórica. O sectarismo e a pretensão de monopólio do messianismo de seus adeptos também contribuiu para alienar socialistas de tendências menos rígidas. A economia sem mercado deduzida do marxismo revelou-se completamente insustentável, exatamente como Ludwig von Mises como previra. Seu fascínio pela revolução violenta e depuradora, recurso absolutamente desnecessário – e mesmo contraproducente – para a criação do socialismo é mais um traço importante para o fracasso do comu nismo. Analisando a coisa sub specie aeternitatis, na linha de um Bertrand de Jouvenel ou um Alfred Jay Nock, é possível concluir hoje que tanto o comunismo quanto o nazi-fascismo foram desvios, aberrações, que perturbaram mas não impediram o progresso do bem-sucedido socialismo fabiano.

Há mais de 100 anos o socialista alemão Eduard Bernstein, que passara um bom tempo em Londres em contato com os fabianos, deflagrou um debate no seio do partido marxista de seu país alcunhado de “revisionismo”. Em resumo, Bernstein argumentava que o marxismo era uma teoria errônea e deveria ser substituída por uma doutrina mais flexível e reformista na linha do socialismo fabiano, cuja estratégia moderada estava alcançando ótimos resultados. A reação indignada dos guardiães da ortodoxia marxista, Kautsky, Rosa Luxemburgo e outros, adiou a conversão da social-democracia ao fabianismo por algum tempo. Depois da Primeira Guerra, na esteira do cisma no marxismo levado a cabo por Lênin, os sociais-democratas abandonaram de fato, e depois de jure, o marxismo ortodoxo, situando-se desde então na esfera do reformismo fabiano. Foi uma opção inteligente, posto que o comunismo leninista era um beco-sem-saída histórico. Presentemente o socialismo fabiano é tão hegemônico que até mesmo a migração dos marxistas ortodoxos do leninismo para as idéias de Gramsci e da Escola de Frankfurt pode talvez ser interpretada como um reconhecimento tardio do erro estratégico cometido por Lênin e uma conversão tácita ao fabianismo.

O livro “Império” de Negri e Hardt, muito lido e aplaudido pela intelligentsia esquerdista da moda, me parece uma obra profundamente conservadora, sintoma da predominância fabiana atual. As deblaterações teóricas dos autores soam como um marxismo-leninismo requentado e temperado com pitadas de pós-modernismo. Mas o que deve ser destacado é que o panfleto é endereçado à “multidão” global, não ao proletariado ou ao campesinato. E que “multidão” é essa? Só pode ser a “lumpem-intelligentsia” fabricada em quantidades industriais nas universidades de todo o globo, frequentadora dos ditos protestos anti-globalização que são o dernier cri do fabianismo. Nesses alentados centros acadêmicos reinam impávidos os letrados fabianos, como Negri e Hardt. Trata-se, pois, de um sistema de reprodução e perpetuação de uma estrutura de poder, não de uma revolução. Os intelectuais fabianos já estão no poder. O manifesto é destinado a recrutar os futuros Negris e Hardts nas gerações vindouras.

O socialismo fabiano é um movimento conduzido por uma casta de intelectuais iluminados cujo objetivo é o controle da sociedade através do aparelho estatal acompanhado da disseminação de uma ideologia legitimadora, e nisso não difere do marxismo ou do nazismo. Todo socialismo é uma conspiração de elites pensantes com vistas ao poder político em benefício próprio. A superioridade do fabianismo reside em sua flexibilidade e adaptabilidade. O mercado é absorvido e incorporado na medida em que permite a própria sobrevivência do sistema, pois sua supressão total é inviável. Mas não se trata de economia de mercado capitalista, e sim de um “setor privado” estritamente regulado e manietado, sujeito a altas cargas tributárias e uma miríade infernal de regulamentos, licenças, subsídios etc incompatíveis com a liberdade econômica e a dignidade humana; e de um “setor público” gigantesco, tentacular, parasitário, que alimenta seu furor esbanjador confiscando a riqueza produzida no “setor privado”. Nesse “setor público” o intelectual fabiano reina absoluto, ora como político, ora como burocrata, frequentemente como político e burocrata simultaneamente. Gilberto Freyre cunhou o feliz neologismo “intelectuário” para designar essa espécie. O falecido sociólogo Pierre Bourdieu, por exemplo, combatia o “neoliberalismo” com seus “contrafogos” fabianos de uma humilde cátedra no Collège de France, onde o distinto público pagava compulsoriamente seus projetos de pesquisa e a numerosa equipe necessária para tais projetos. O que Bourdieu produziu de relevante e permanente para a sociologia? Absolutamente nada. Seu intuito principal declarado era o de destruir a ciência econômica. Ora, ent& atilde;o todo o dinheiro dos contribuintes franceses despejado nessa epopéia foi em vão, pois o que Bourdieu pretendia fazer Keynes já fizera meio século antes. Poderíamos listar uma multidão de “bourdieus” brasileiros, especialmente os intelocratas da USP, que, refestelados em prestigiosas cátedras universitárias, transitam alegremente entre um alto cargo público e outro, entre uma tribuna privilegiada e regiamente paga em um grande jornal e outra. A volumosa produção político-ideológica desse pessoal contrasta com a inanidade de sua contribuição para o progresso de seus respectivos campos científicos. Emir Sader, Marilena Chauí e, naturalmente, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, são exemplares típicos dessa rica fauna.

Malgrado pesadamente obstruídas, as forças de mercado do setor formal infundem suficiente vitalidade e movimento a um organismo social que, na sua ausência, apodreceria e morreria como no caso soviético. Ademais, as energias criativas individuais, sufocadas pela elefantíase estatal, encontram válvulas de escape na ilegalidade (a economia “informal”, “invisível”, “subterrânea”, “mercado negro” etc), propiciando o ganha-pão de milhões de pessoas e sustentando economias ultra-estatizadas – sobretudo na America Latina -, que de outro modo desabariam de uma hora para outra. Um exemplo recente ocorreu na Argentina, quando o governo congelou os ativos financeiros da população e cortou os fluxos monetários que alimentam o vasto setor subterrâneo da economia daquele país. Em questão de dias o governo caiu e nenhum outro conseguirá sobreviver por muito tempo se não permitir que o dinheiro, tangido para os corralitos, volte a percorrer os circuitos da economia ilícita.

Singular é o papel dos empresários no esquema fabiano. São tolerados, desde que cumpram o papel que lhes destinam na pantomina social fabiana: o de bodes-expiatórios. O empresariado leva a culpa de todos os males que afligem a humanidade. Sua ganância, egoísmo, avidez e rapacidade respondem pela miséria de bilhões de pessoas, muito embora quase todas elas vivam em países onde o capitalismo nunca existiu, ou só recentemente passou a exercer seu costumeiro mister de eliminar gradualmente a pobreza das massas, como a China, Índia, Bangladesh e quase toda a África sub-saariana. O empresário é um desprezível explorador do trabalho alheio, cuja cupidez só é contida pela benevolente intelectuária fabiana munida dos poderes coercitivos estatais, sempre pronta a “proteger” os trabalhadores com leis “sociais” que inevitavelmente geram desemprego, subemprego e baixos salários para os “protegidos”. Ademais, sua busca inescrupulosa por lucros ameaça destruir o planeta, mercê da degradação do meio-ambiente. Os empresários devem suportar calados essa cantilena repetida diariamente nos meios de comunicação por eles mesmos criados e mantidos. As empresas de comunicação, aliás, estão tacitamente obrigadas a destinar os melhores empregos e os mais gordos salários aos intelectuais fabianos mais influentes, e dar-lhes carta branca para definir a linha editorial e ideológica dos jornais e redes de TV. O mesmo acontece nas maiores casas editoriais do país, que só publicam o que agrada a intelligentsia. As demais empresas devem contribuir generosamente para os partidos políticos que, por trás das aparências de hostilidade mútua, estão perfeitamente unidos no consenso fabiano. Devem financiar as ONGs, esse novo e rico f ilão atualmente explorado pela intelectuária fabiana, e suportar estoicamente os insultos e anátemas com que essas mesmas ONGs lhes pagarão.

Isso, entretanto, não significa que devemos ter piedade do empresariado. Refiro-me por esse termo ao big business, que em troca de exercer esse papel de geni para os fabianos, é recompensado de mil formas pela benevolência estatal, seja através de subsídios, de tarifas alfandegárias que excluem a concorrência externa, concessões, monopólios, licenças, incentivos, lacunas na legislação tributária e, sobretudo, pelo estrangulamento das pequenas empresas e empresários via tributação extorsiva e regulamentação labiríntica das atividades econômicas, o que equivale a suprimir também a concorrência interna. Um exemplo recente dessa promiscuidade é o episódio da Enron, que financiou Clinton, Gore, Bush e quase todos os políticos de ambos os partidos do congresso americano, sem falar em doações a ongs ambientalistas e apoio ao Tratado de Kyoto. Essa empresa obtinha privilégios em paga, como um empréstimo de 650 milhões de dólares do Ex-Im Bank (o banco é estatal e o dinheiro é do contribuinte americano) e sabe-se lá o que mais. Para variar, a falência da Enron foi debitada no passivo do capitalismo pela máquina de propaganda fabiana e apresentada como prova cabal de mais uma “falha do mercado”. Ora, pelo contrário, essa bancarrota representa a principal virtude da economia de mercado, isto é, a de que a verdade sempre aparece e produz efeitos. O erro empresarial é castigado com prejuízos e, se não revertido a tempo, causa a falência e a exclusão do rol dos produtores. O episódio da Enron revela que nem mesmo a cobertura de dois presidentes dos Estados Unidos, seus funcionários de primeiro escalão e de quase toda a classe política parlamentar americana pode impedir por mui to tempo que a soberania dos consumidores prevaleça e a má gestão empresarial seja conhecida do público e punida. No “setor público”, contudo, o poder do governo subjuga a preponderância dos conumidores e os obriga a arcar com os custos dos infalíveis rombos financeiros das empresas públicas. A ferrovia estatal americana Amtrak , por exemplo, opera no vermelho desde sua inauguração há três décadas, acumulando um prejuízo de pelo menos 25 bilhões de dólares. Falência? Jamais! Nem é bom falar das estatais brasileiras, como a Petrobrás. O toque final da hipocrisia fabiana fica por conta do já mencionado Paul Krugman, que está usando o caso da Enron para suas arengas farisaicas anti-capitalistas e para exigir mais regulamentações estatais draconianas do mercado, muito embora as regulamentações draconianas já existentes não tenham evitado a derrocada fraudulenta da empresa. Pois adivinhem quem andou fazendo parte do conselho de direção dessa mesma Enron há algum tempo? Ninguém menos do que… Paul Krugman.

Recorrendo a um chavão marxista-hegeliano para ilustrar a coisa, o socialismo fabiano é uma síntese dialética entre o mercantilismo e o liberalismo, retendo daquele o complexo de relações promíscuas entre os agentes estatais e sua clientela em detrimento dos consumidores e contribuintes, e cobrindo-se com o regime democrático oriundo do liberalismo, embora apenas como capa ideológica apta a propagar a ilusão de controle popular do sistema político. A democracia, simples meio de escolha e substituição periódica da liderança política, é elevada a fim em si mesma e “valor universal”. Dessa maneira, os verdadeiros valores universais, os direitos individuais, são sistematicamente violados pelas leis mais estapafúrdias, no entanto legitimadas por serem “democráticas”.

Quem ocupa hoje o centro nervoso desse ordenamento social, como beneficiários e classe exploradora, são os intelectuais fabianos, enquanto que, no mercantilismo de outrora, os manda-chuvas eram o monarca e sua corte de aristocratas, clérigos, funcionários e empresários fiéis. Deve-se reconhecer que essa “troca de guarda” significou um retrocesso, vez que a aristocracia de antigamente ao menos possuía um sentimento de noblesse oblige e bem ou mal se pautava segundo certas normas de conduta submetidas a um código fixo de valores absolutos, derivado do cristianismo. Essas normas morais absolutas estavam consagradas em termos bastante claros na Bíblia, sendo acessíveis à gente simples do povo. Por mais perversos que fossem os nobres e os clérigos, o contraste entre a moral aceita e seus atos era facilmente perceptível. Não é tarefa simples inverter e perverter o significado dos Dez Mandamentos ou do Sermão da Montanha. O intelectual socialista, todavia, alçado desde Rousseau e os philosophes iluministas ao papel de guia espiritual e moral da humanidade, nega toda moral absoluta e despreza suas fontes religiosas. Qual é a fonte da moral fabiana? Kant? Hegel? Marx? Nietzsche? Moore? Bertrand Russell? Dewey? Sartre? Foucalt? Jameson? Gramsci? Ou um mix de todos eles e muitos mais? Que pessoa comum é capaz de deduzir dos calhamaços impenetráveis desses filósofos normas retas de comportamento social? No fim das contas, a ética fabiana se resume a acatar como certo ou errado tudo aquilo que as pitonisas oficiais do culto, os intelectuais da moda, disserem que é certo ou errado, conforme as circunstâncias e até segunda ordem. Sequestrar por motivos políticos, por exemplo, era “certo” na época da “luta armada”; hoje é “errado” por atrapalhar a escala da eleitoral do PT. Até a Igreja Católica aderiu ao socialismo, sobretudo na America Latina. O desolador panorama ético que nos cerca é resultado direto dessa hegemonia fabiana na cultura.

Hayek denominou o período entre a publicação do Manifesto Comunista (1848) e a do romance de Orwell 1984 (1948) de século do socialismo. Depois que ficou claro que a ordem social descrita no segundo era a consequência inevitável da filosofia exposta no primeiro, o socialismo entrou em declínio. O eminente pensador austríaco estava absolutamente certo no que concerne ao socialismo comunista. O socialismo fabiano, contudo, está longe de perder prestígio. O que é a atual União Européia senão um regime fabiano? O consenso é tão forte que dissidentes de direita, como o italiano Berlusconi, nada conseguem fazer para se contrapor à avalanche fabiana. O pensamento liberal-conservador-libertário passou por uma vigorosa renascença depois da Segunda Guerra e chegou a exercer considerável influência política nos anos 80. O colapso do comunismo gerou a esperança de um futuro melhor para a humanidade. Porém, deve-se admitir que esse otimismo era prematuro. A contra-revolução intelectual anti-socialista fracassou. Foram feitas concessões demais aos fabianos, e a menor delas não foi certamente a compactuação com a macroeconomia legada por Keynes. Contudo, se é verdade o que escreveu T.S. Eliot, na história não há causas perdidas nem causas ganhas, somente oportunidades. O socialismo fabiano, então, não é o fim da história.

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