A função social do dinheiro

Por Alceu Garcia


18 de abril de 2002

Introdução

O dinheiro é parte importante de nossas preocupações e afazeres cotidianos. No dia-a-dia de cada um, porém, o “vil metal” é apenas mais um dado de realidade; sua natureza última e funções sociais não despertam nenhum interesse. As pessoas contentam-se em conseguir o din-din para pagar suas contas e está muito bom assim. O estudo da moeda em si, assunto mortalmente entendiante para quase todo mundo, é deixado para os especialistas. E é aí onde mora o perigo. Se os especialistas adotam teorias errôneas sobre o dinheiro, que servem posteriormente de esteio intelectual para a ação maliciosa do Estado nesse campo, todos nós somos gravemente afetados e lesados. Talvez não seja de todo inútil, pois, esboçar aqui – muito imperfeitamente – os rudimentos teóricos sobre a natureza e função da moeda, de maneira que os interessados possam municiar-se de conhecimento sobre um aspecto crucial de suas vidas e, com base nele, tentar defender sua propriedade do larápio-mor que, como sempre, é o governo.

Troca Direta e Troca Indireta

Em toda sociedade cedo se percebe a vantagem da divisão e especialização do trabalho, pois o esforço especializado rende muito mais do quer sua dispersão em múltiplas tarefas concomitantes. Daí decorrem naturalmente as trocas entre produtores de mercadorias específicas. Desse intercâmbio surgem razões de troca entre os diversos produtos, preços de bens em termos de outros bens, conforme as valorações de compradores e vendedores. É a troca direta, ou escambo, que tem a desvantagem óbvia de exigir dupla coincidência de fins entre comprador e vendedor, i.e., aquele que deseja vender bananas para adquirir sapatos, por exemplo, precisa achar alguém que possua sapatos e queira trocá-los por bananas. Com o passar do tempo e com a intensificação dos intercâmbios, aparecem espontaneamente certas mercadorias dotadas de grande aceitação geral, que terminam por adquirir a qualidade de meio comum de troca, ou seja, de moeda. Nasce assim a troca indireta, na qual o aludido produtor de bananas troca sua mercadoria por dinheiro e depois dinheiro por sapatos, o que facilita enormemente o comércio. A história registra os mais variados tipos de mercadoria-moeda, tais como gado (em latim, pecus, donde pecuniário), sal (daí salário), conchas, pedras, anzóis, tabaco etc. No curso do tempo o uso monetário do ouro e da prata prevaleceu, dada a raridade, divisibilidade, homogeneidade, durabilidade e facilidade de transporte e estocagem desses metais.

Essa passagem da troca direta para a indireta, que ocorreu de forma independente em quase todas as civilizações conhecidas, representa um formidável progresso social por incrementar o comércio e a acumulação de capital, que por sua vez elevam o padrão de vida geral. Por outro lado, o caminho inverso, da troca indireta para a direta, significa um retrocesso gravíssimo. O Império Romano é um bom exemplo. Da florescente economia monetária do século II D.C. involuiu para a troca direta na medida em que o governo depreciou o dinheiro para financiar os déficits decorrentes do custo colossal de seu crescente aparato burocrático. Vastos e improdutivos gastos públicos, déficit orçamentário ascendente, tributação extorsiva, inflação e controle de preços. O resultado dessa combinação algo familiar foi a destruição da economia mercantil e monetária antiga. A invasão dos bárbaros e a economia feudal autárquica e estagnada foi um conseqüência natural dessa regressão econômica.

A Natureza do Dinheiro

Dessa breve introdução pode-se deduzir que o dinheiro é toda mercadoria que adquire a propriedade de meio comum de troca, passando a intermediar os atos de compra e venda. Vale assinalar que esse atributo específico se desprende totalmente da utilidade original da mercadoria-moeda e se torna autônomo. O ouro, por exemplo, quando usado como meio de troca, além de sua qualidade original de insumo utilizado para diversas finalidades industriais (e a própria mística de metal precioso) adquire a qualidade autônoma e específica de moeda. Para visualizar melhor esse fenômeno basta comparar o ouro-moeda com o nosso atual papel-moeda. Este último praticamente não tem valor não-monetário algum, são só tiras de papel pintado. Como dinheiro, contudo, tem a mesma natureza e função que o ouro-moeda. Outra inferência fundamental é que a moeda é uma criação do mercado, ou, o que é a mesma coisa, da livre interação contratual, voluntária e mutuamente benéfica entre os indivíduos. O que equivale a dizer que o dinheiro não é uma invenção maligna de uma classe dominante exploradora ou que decorre de um contrato social político mediado pelo Estado. O controle estatal da moeda, todavia, pode resultar, e invariavelmente tem resultado, em efetiva exploração. Mas isso veremos mais à frente.

O Cálculo Econômico

A própria existência de moeda, o meio comum de troca, ao permitir que todos os preços sejam expressados em uma única unidade de conta, torna possível o cálculo econômico complexo indispensável ao funcionamento racional de uma economia desenvolvida. Numa comunidade primitiva é possível um cálculo não-monetário rudimentar e empírico por parte dos agentes econômicos. Uma economia complexa, porém, não pode subsistir sem preços em moeda. O trabalho, o capital, a terra, os bens e serviços são heterogêneos. Os diversos tipos de trabalho não são redutíveis a uma “unidade de trabalho” (como o fracasso da teoria do valor-trabalho o demonstra), assim como é impossível somar siderúrgicas e ferrovias, ou ferro e petróleo. Os seus respectivos preços monetários, porém, podem legitimamente ser comparados, somados, multiplicados etc. Desse modo o cálculo aritmético ex-ante e ex-post de lucros e perdas, fundamental para uma economia desenvolvida, pode ser efetuado com eficácia. Não existiria desenvolvimento econômico sem moeda, preços monetários e a moderna contabilidade, conforme acentua Ludwig von Mises. Incidentalmente, vale recordar que sem propriedade privada não existem preços, nem cálculo econômico, nem progresso econômico.

Dinheiro e Incerteza

A impossibilidade de se conhecer o futuro é um dado de realidade inexorável. Dessa incerteza permanente deflui outra das funções da moeda, que é a de servir como reserva para contingências inesperadas. Os indivíduos tendem na medida do possível a manter saldos monetários disponíveis para emergências, em nível mais ou menos constante. A compreensão desse fenômeno é facilitada quando se contrasta a realidade perpetuamente cambiante com um estado imaginário de coisas em que não ocorrem mudanças, em que o futuro é sempre igual ao passado. Nesse caso, todas as pessoas sabem de antemão como será despendida a sua renda, pelo que não há a necessidade de se manter saldos de reservas monetárias. No mundo real isso não acontece, e as preferências pessoais por reservas de dinheiro constituem um dos pontos principais da determinação do valor da moeda.

O Valor do Dinheiro

O dinheiro é uma mercadoria sui generis, pois não é bem de consumo nem bem de capital. Demanda-se moeda para trocá-la por bens de consumo ou pelos serviços dos fatores de produção. Outro ponto peculiar é que, ao contrário de quase todos os demais bens, a sociedade não se beneficia de um aumento da quantidade de dinheiro. É um interessante paradoxo esse, pois se para cada indivíduo é em geral benéfico possuir mais dinheiro do que antes, para a comunidade como um todo o crescimento da quantidade de dinheiro é altamente prejudicial. A sociedade vista globalmente ganha se existem cada vez mais batatas, televisões, fábricas etc, uma vez que a elevação da oferta em geral reduz os preços e o poder aquisitivo do dinheiro dos indivíduos aumenta. Se há cada vez mais dinheiro, contudo, não há benefício geral algum (conquanto haja vantagens para grupos particulares em detrimento dos demais) pois isso se traduz na redução progressiva do valor da unidade monetária, bem como na descoordenação das atividades econômicas. Se não detida essa depreciação, o sistema monetário entra em colapso com terríveis repercussões sociais.

O poder aquisitivo da unidade monetária, que é o seu preço em relação a tudo que é trocado por dinheiro em um dado momento, jamais é fixo ou constante. Ele sempre varia. Os fatores que governam essas variações podem se originar no “lado do dinheiro” ou “no lado dos bens e serviços”, ou ainda em ambos simultaneamente. Caso a quantidade de moeda decresça (deflação), e a produção de bens e serviços fique constante, aumente ou decresça menos do que a diminuição do dinheiro, o valor da moeda se eleva. Se a oferta de dinheiro se mantém fixa ao longo do tempo, o desenvolvimento econômico traduzido em maior quantidade de bens e serviços produzidos também acarreta uma elevação do valor da moeda (queda dos preços), que passa a comprar mais produtos do que antes. Se a quantidade de dinheiro aumenta pari passu com o aumento da produção, o “nível geral de preços” tende a permanecer constante. Vale notar, contudo, que esse “nível geral de preços” é um agregado imaginário, uma ficção estatística arbitrária. O que existem são milhões de preços específicos (determinados pela interação de oferta e procura segundo as valorações de compradores e vendedores), que podem ficar acima ou abaixo do “nível geral”. No caso da oferta de moeda crescer mais do que produção, o resultado é o declínio do valor da unidade monetária (aumento de preços) que passa a comprar cada vez menos bens e serviços. Esses dois últimos casos se traduzem em inflação, que, ao contrário do que pensa o público (desinformado por legiões de pseudo-economistas), não é um aumento geral e contínuo dos preços. Este pode ocorrer ou não, e, quando ocorre, é sempre o efeito da inflação, que é o aumento da quantidade de dinheiro em relação a um total anterior.

Outras hipóteses de flutuação do valor da moeda relacionado ao “lado do dinheiro” ocorrem quando os indivíduos elevam ou reduzem seus saldos monetários, ainda que mantido fixo o estoque de moeda. No primeiro caso, em função de circunstâncias conjunturais que engendrem pessimismo e receio, as pessoas reduzem seus gastos correntes e investimentos e deixam mais dinheiro “parado”, de modo que o valor da unidade monetária aumenta (os preços caem), pois há menos moeda sendo utilizada na aquisição de bens e serviços. Isso é o que os keynesianos denominam “entesouramento”. Na hipótese inversa, as pessoas reduzem o dinheiro em caixa e aumentam seus gastos e investimentos, sendo que mais dinheiro circula e seu valor unitário cai (os preços sobem). Esse último fenômeno pode gerar um tipo curioso e raro de inflação de preços sem aumento da quantidade de dinheiro, que ocorre quando todos os agentes econômicos se apressam em zerar seus saldos monetários a qualquer custo, livrando-se do dinheiro o mais rápido possível em troca de qualquer coisa. Mesmo com um estoque fixo de dinheiro, nesse caso os preços disparam até que simplesmente ninguém aceita mais o dinheiro. Isso aconteceu quando os americanos invadiram as Filipinas em 1944, e os filipinos, prevendo a iminente vitória ianque, se deram conta que a moeda posta em circulação pelos ocupantes japoneses logo perderia totalmente seu valor. Previsivelmente, eles se precipitaram em gastar o dinheiro japonês à toda pressa, o que gerou uma hiperinflação colossal. Esse episódio, aliás, ilustra didaticamente o fato de que o valor do dinheiro, como o de tudo o mais, depende das avaliações subjetivas individuais. A redução do fenômeno monetário à equações matemáticas, como preconizam muitos economistas, é assim inútil pois não há constantes nas ações e valorações humanas que possam se traduzir em relações matemáticas seguras.

Bancos, Moeda e Crédito

Originariamente os bancos eram casas de depósito de moeda (ouro e prata) que emitiam certificados de depósito à vista para os clientes cobrando uma pequena taxa pelo serviço. Esses certificados passaram a circular mais do que a própria moeda, por razões de segurança e conveniência, e se tornaram substitutos de moeda. Como a moeda (ouro e prata) praticamente não era sacada em quantidades significativas, as casas bancárias ficaram tentadas a emitir certificados além da correspondência exata com a moeda depositada, emprestando a juros esses papéis sem lastro. Assim, se fulano depositava 100 unidades de moeda-ouro no banco x, este emprestava, digamos, 50 a sicrano cobrando juros, abrindo uma conta sujeita à retirada por cheque para sicrano. Desse modo, de 100 unidades de moeda-ouro originárias havia agora 150 unidades de papel-moeda existentes. Se fulano e sicrano decidissem resgatar seus certificados de moeda-ouro ao mesmo tempo, o banco ficaria com um passivo descoberto de 50 unidades de moeda-ouro. Dessa maneira os bancos podem criar moeda via crédito, inflacionando o meio circulante. Trata-se de fraude pura e simples, vez que os bancos e os beneficiários do crédito inflacionário estão ganhando alguma coisa em troca de coisa nenhuma. O dinheiro surge do nada. Trata-se de uma violação do direito de propriedade dos donos do dinheiro-metal. Esse processo pode ser barrado por normas jurídicas baseadas no princípio geral do dever de não causar dano, obrigando-se os bancos a operar com reservas de 100%, i.e., proibindo-os de criar moeda via crédito inflacionário. Ademais, em um mercado desimpedido, o banco que inflaciona logo se vê em dificuldades na medida em que suas emissões além das reservas são depositadas em outros bancos e na compensação a posição descoberta do banco “espertalhão” é revelada. Longe de ser solucionado, contudo, o problema foi agravado pela intervenção estatal no mercado monetário, como se verá a seguir.

Governo e Moeda

Se o dinheiro é uma antiga criação do mercado, a interferência do estado nesse campo é quase tão antiga quanto. Inicialmente os governos assumiram a tarefa de garantir a pureza do metal e o seu peso, apondo seu selo nas moedas. Os particulares levavam o ouro e a prata puros a uma oficina estatal que as transformava em moedas, cobrando uma pequena taxa pelo serviço (senhoriagem), as devolvia aos proprietários e o dinheiro passava a circular. Porém, não demorou muito para que o aparelho coercitivo estatal fosse posto a serviço dos políticos e seus clientes, em detrimento dos cidadãos comuns. O governo começou a falsificar o dinheiro misturando ouro e prata com metais baratos de um lado (aumentando a quantidade nominal de dinheiro para financiar seus gastos com uma crescente burocracia parasitária) e mantendo o valor nominal das moedas por outro lado, exigindo que o mercado não descontasse a depreciação. É claro que o resultado foi a inflação de preços e a destruição do sistema monetário.

Nos tempos modernos o mesmo processo se sofisticou bastante, malgrado a finalidade tenha permanecido a mesma: exploração. O aparecimento dos bancos, da moeda-papel e da moeda-escritural (simples magnitudes contábeis) criaram oportunidades para os governos roubarem mais do que nunca. Longe de editar leis que obrigassem os bancos a operar com reservas de 100%, os governos intervieram no mercado financeiro associando-se a (ou criando) certos bancos pseudo-privados, aos quais outorgavam privilégios como monopólios territoriais e de emissões de notas, suspensões de pagamentos, obrigatoriedade dos bancos particulares manterem depositados neles as suas reservas, administração dos fundos públicos etc. Essas instituições privilegiadas, como o Banco da Inglaterra, foram os protótipos dos atuais bancos centrais. O objetivo último desse processo é o de politizar totalmente o dinheiro, retirando do mercado, isto é, de nós, o poder de criar moeda. Para tanto foi necessário destruir o padrão-ouro internacional. Na vigência deste, a moeda mundial era o ouro, sendo as moedas nacionais vinculadas ao metal em uma paridade fixa. As notas bancárias nacionais podiam ser convertidas em ouro a qualquer tempo por qualquer um que assim o desejasse, bastando exigir dos bancos a troca das notas pelo ouro correspondente. Como tudo o que é humano, o padrão-ouro não é perfeito. A quantidade de moeda aumenta na medida em que mais ouro é descoberto e monetizado. Subsiste, pois, inflação que beneficia os mineradores. A grande vantagem, porém, é que a criação da moeda fica fora do alcance dos políticos e seus amigos. O estoque de moeda-ouro aumenta na medida em que os custos de mineração compensam a obtenção do metal, isto é, quando se gasta menos ouro na mineração do que se extrai da terra. Mas se o dinheiro é apenas papel, não há custo quase nenhum na sua impressão, e há menos custo ainda na criação contábil de dinheiro, de maneira que os governos podem inflacionar o meio circulante em escala sem precedentes. Outro ponto positivo era o freio imposto à políticas inflacionárias dos estados nacionais. Se o governo do país x decidisse criar dinheiro além das reservas-ouro, o banco central baixava artificialmente a taxa de juros, criando moeda do nada via depósitos bancários. Em reação, as pessoas convertiam suas notas em ouro e mandavam o metal para o país y, onde os juros eram mais altos; por outro lado, a maior quantidade de dinheiro elevava os preços internos e, com isso, incentivava a importação de similares estrangeiros mais baratos, sendo que os estrangeiros passavam a trocar a moeda por ouro e transferi-la para seus países de origem. A contração das reservas do país x punha todo o seu sistema financeiro em cheque (pois havia cada vez menos ouro em relação a papel), e o seu banco central era obrigado a elevar a taxa de juros para atrair ouro de fora e recompor suas reservas.

Desde o fim do padrão-ouro internacional em 1914 os governos ficaram cada vez mais livres para inflacionar a moeda, inclusive “teorias” como o keynesianismo foram concebidas e popularizadas como forma de propaganda ideológica para justificar os “benefícios” da moeda gerenciada pelo governo e para pintar o padrão-ouro como velharia ultrapassada, “relíquia bárbara” etc. O monetarismo de Chicago não difere muito nesse aspecto. E os marxistas continuam pensando que o futuro comunismo inaugurará uma era de abundância tamanha que o próprio dinheiro será abolido. Desde então a inflação tornou-se uma praga mundial sem igual na História. O dólar americano desvalorizou-se em mais de 90%, enquanto que moedas de países mais bagunçados como o nosso perderam mais de um quatrilhão % de seu poder de compra. Com a inflação os governos, via cartelização do sistema bancário sob a batuta dos bancos centrais, podem beneficiar seus clientes (o estamento burocrático, empresários privilegiados, bancos etc) à vontade, enquanto surrupiam o poder aquisitivo da maioria da população (sobretudo os mais pobres).

Para ilustrar o processo pelo qual o governo rouba o povo via manipulação da moeda, imagine o leitor que o seu prédio é um país. Suponhamos que o síndico, o Seu Palhares do 402, é o governo desse país e dispõe do poder de criar dinheiro. Esse síndico-governo logo cede à tentação de criar moeda ex-nihilo para comprar as coisas que os outros moradores do “país” produzem. O “governo” está ganhando alguma coisa em troca de nada. Para criar um ambiente favorável a esse roubo sistematizado, o Seu Palhares alicia outras famílias, distribuindo o dinheiro novo entre eles. Surge um processo de depreciação acelerada do poder de compra da moeda do “país”, pois há cada vez mais dinheiro comprando as mesmas coisas de antes, mas nem todo mundo perde ao mesmo tempo. Quem recebe a grana inflacionária primeiro ganha mais do que quem recebe por último, pois para estes os preços já subiram quando a moeda nova circulou. A cereja do bolo é a ideologia legitimadora difundida pelos intelectuais do prédio, todos devidamente inseridos na folha de pagamento do Seu Palhares, a qual garante ao “povo” que o sábio e idôneo governo sabe o que é melhor para seus cidadãos e que a administração da moeda é assunto científico complexo que deve necessariamente ficar à cargo dos especialistas. Quando a coisa começa a dar muito na vista, o síndico e seus intelectuais de aluguel põem a culpa do aumento generalizado de preços na ganância de certos moradores, como a D. Maria do 301, que vende doces e salgados, e decreta um congelamento de preços. Quando o congelamento fracassa, o “governo” então contém um pouco a emissão e impõe o sistema de “metas inflacionárias”, que é um roubo generosamente auto-delimitado pelo próprio ladrão. Por outro lado, para financiar a boa vida do síndico e seus amigos e aliados, a taxa de condomínio (ou seja, os impostos) sobe para as alturas. Ninguém reclama, pois é consensual que o produto arrecadado será “investido no social”. Deu pra entender?

Outros fatores desastrosos na inflação são a falsificação da moeda como unidade de conta, com a conseqüente desorganização do sistema produtivo, bem como a descoordenação dos estágios da estrutura de capital, gerando os famigerados ciclos econômicos com suas fases de prosperidade artificial e posterior recessão ou depressão.

Solução: Despolitizar o Dinheiro

O absoluto controle estatal do dinheiro hoje reinante acarretou desgraças inenarráveis a povos inteiros. A inflação desbragada em nosso país é a principal responsável pela miséria de tantos de nossos compatriotas. Desde Hilferding, os marxistas juram que o “capital financeiro” se apossou do Estado para explorar a sociedade, inclusive o “capital produtivo”. A verdade é bem outra: o estado é que se assenhoreou do sistema financeiro em benefício próprio para explorar a sociedade. Enquanto nós, o povo, o mercado, não recuperarmos o nosso legítimo poder sobre o dinheiro, retornando ao padrão-ouro internacional (ou outro padrão qualquer não imposto pelos governos) e bancos com reservas de 100%, a instabilidade econômica global não terá solução e uma grande crise como a dos anos 30 pode sobrevir a qualquer momento. Trata-se antes de tudo de uma questão moral: não é justo (nem conveniente) que um grupo de indivíduos munidos do monopólio da violência e da coerção – ou seja, o Estado – detenha o privilégio socialmente catastrófico de determinar a oferta de moeda. Esse poder sempre será usado para o mal, como a experiência demonstra à saciedade.

Referências

The Value of Money, de B. Anderson;

A Desestatização do Dinheiro, de F. Hayek

From Bretton Woods to World Inflation e The Inflation Crises and How to Resolve it, de H. Hazlitt;

The Theory of Money and Credit e Ação Humana de L. von Mises.

Man, Economy and State, Power and Market e What the Government Has Done to Our Money?, de M. Rothbard;

The Age of Inflation, de H. Seinholz;

Lectures of Political Economy, vol. II, de K. Wicksell;

Alcântara e anti-americanismo

Por Pedro Paulo Rocha


abril de 2002

Prezados Internautas,

A rede tem sido invadida por uma série interminável de SITES e emails de crítica ao acordo da Base de Alcântara.

Eu não sou expert no assunto mas, de imediato, um fato de impressionou: o exacerbado ANTI-AMERICANISMO subjacente a estas críticas. A começar pelo fato de que os políticos que mais atacaram este acordo são todos do PT, partido que sabidamente tem vinculações inequívocas com o marxismo. O que aliás foi confessado explicitamente pelo Sr Olívio Dutra, em recente entrevista.

E uma coisa que acompanho desde a minha infância: o anti-americanismo é uma caracteristica simbólica de todo comunista. E isto entendo que seja decorrente de uma razão óbvia: os EUA são uma ilustração do sucesso de tudo aquilo que eles condenam, com suas visões acanhadas e obcessivas. Um dos mais exaltados críticos do acordo é um cidadão que se apresentou como empresário e que, aparentemente, tem ligações estreitas com o grupo Guararapes.

Ele não só descarregou uma série de críticas contundentes ao acordo, em email dirigido a mim e a uma série de militares, como ontem me enviou um anexo em Power Point, que se inicia indagando o “que acho do terrorismo?”. Logo a seguir exibe uma imagem de um avião se chocando contra uma das torres do WTC. A seguir observa que terrorismo não é só isto. E passa a exibir dezenas de cenas chocantes, que atribui aos americanos, tanto no Vietnã quanto no lançamento da “bomba” contra o Japão.

Desta forma este cidadão explicitou seu ódio aos EUA.

Pensei em refazer o programa, colocando imagens das torturas a que os “hereges” foram submetidos pelos cristãos, durante a idade média, pela Santa Inquisição, que levou às fogueiras e a crueis e horripilants torturas mais de cem mil inocentes. Ou, para não ir mais longe, mostrar o que os nossos bravos bandeirantes fizeram com os nossos índios. Há uma imagem da cena descrita por um deles, que mostra o valente Anhanguera arrancando um indiozinho dos braços de sua mãe e o jogando aos seus mastins, para alimentá-los. Poderia indicar mesmo a cena dos rapazes que queimaram, com requintes de crueldade, um pobre índio, recentemente, em Brasília. Ou citar a chacina de que foram vítimas tribos inteiras, assassinadas com açucar envenenado ou dizimadas pela distribuição de roupas infectadas com doenças contagiosas. Isto para que pudessem explorar suas terras. Mas me contive, pois isto me rebaixaria ao nível dele.

A perversidade é uma característica do ser humano, único animal que tortura seu semelhante e sente prazer nisto.

Os interesses também são uma constante nas relações, não só entre pessoas, como entre nações. Países que ontem era inimigos mortais, hoje se declaram amigos incondicionais.

Mas isto jamais deveria perturbar nosso raciocínio ao ponto de nos levar a julgamentos injustos e conclusões errôneas, eivadas de radicalismo irracional e obtuso.

As pessoas que tanto criticam o acordo deveriam ter comparecido aos debates que os responsáveis pelo projeto promoveram no INCAer e no Congresso. E se tivessem, realmente, um espírito construtivo de crítica, que não se fixassem em determinadas cláusulas, com alegações estúpidas, como a de que “não deve ser por tempo indeterminado” (o que nos permite rescindir o contrato, sem ficarmos amarrados a prazos) de que a verba da locação “não pode ser aplicada no desenvolvimento do CLA” (quem é que poderia o impedir, uma vez incorporados ao nosso orçamento – portanto uma cláusula INÓCUA, para os olhos de quem não é burro), de que não poderíamos ingressar nas áreas alocadas (mas é lógico – como imaginar o acesso de extranhos aos segredos tecnológicos que eles desenvolveram), que o nosso foguete foi derrubado pelos americanos para propiciar o acordo (santa burrice – não temos verba nem para o rancho dos quartéis), que o local é fabuloso e que uma vez lá o americano não mais sairia (se sairam do Panamá, onde haviam gasto bilhões de dólares na construção do canal – muito mais estratégico! ou será que sairam com medo do terrível exército do Panamá?), que deveríamos poder alugar para outros interessados (quem mais iria querer?), que a cláusula impeditiva de usar o CLA para atos de terrorismo e uso de países inimigos era um cerceamento a nossa Soberania (meu Deus! não dá nem para comentar), que os americanos querem impedir o nosso desenvolvimento tecnológico (se o quisessem, bastava impedirem o nosso acesso às suas escolas e os nossos políticos petistas poderiam alocar verbas para as pesquisas, que inexistem, razão pela qual fomos obrigados a recorrer à exploração comercial da Base), etc., etc.

Enfim, as razões eram tão medíocres, que mais pareciam nascer de cérebros acanhados. Com a agravante de que tais indivíduos não se rendiam às evidências e à lógica.

Pareciam-me um grupo de pessoas de inteligência normal e instrução superior, que se reúne, movida pelo objetivo comum de se imbecilizarem mutuamente, pela repetição uníssona e obsessiva de lugares comuns. É todo um bloco monolítico, impermeável a qualquer idéia divergente, prisioneiro de uma retórica, com um mesmo discurso demagógico, repisando monotonamente velhos chavões. Qualquer discordância é violentamente rechaçada. E acima de tudo a minha constatação é que esta discussão estéril nos desvia de problemas realmente cruciais, como a persistente doutrinação das nossas crianças – principalmente nos colégios do RS, onde até a FARC compareceu para participar de palestras – e a invasão de propriedades, a título de que é premordial o interesse social. Ou seja, o avanço sutil do marxismo deixa de ser observado e comentado e vocês, que entram neste jogo, ou querem a implantação do marxismo – que nunca funcionou em parte nenhuma do mundo – ou são meramente inocentes úteis.

Acordem, cidadãos, enquanto não é tarde demais. O INIMIGO está aqui dentro mesmo. E está querendo jogar poeira nos seus olhos, para que não vejam a VERDADE.

A mentira básica do socialismo

Olavo de Carvalho


O Globo, 13 de abril de 2002

Ah! Les intentions, les intentions! Les idéaux, les idéaux!” Sergiu Celibidache, regente de orquestra, budista praticante, comentando as belas intenções com que a China comunista matou um milhão de budistas tibetanos.

Nous étions des cons.” Yves Montand, referindo-se à militância esquerdista.

Osr. Immanuel Wallerstein, numa obra festejada pela mídia como o nec plus ultra do pensamento esquerdista nos últimos anos, afirma ter descoberto a “profunda irracionalidade” do capitalismo. Ela consiste na idéia do lucro ascendente: ganhar mais para ganhar mais para ganhar mais. Com o objetivo de demonstrar isso ele escreveu um tratado de centenas de páginas, nas quais só se esqueceu de uma coisa: dizer o que a idéia de riqueza crescente tem de irracional, já que justamente ela corresponde a um dos mais naturais instintos humanos e a um dos motores essenciais de todo progresso social.

Mas a intelectualidade marxista, filha de um notório mentiroso, mitômano e charlatão, cujas trapaças científicas são hoje bem conhecidas pelo simples cotejo dos documentos que usou para escrever “O capital”, não poderia ser mesmo muito exigente consigo própria. Daí sua compulsão de celebrar como elevado produto do espírito humano qualquer nova cretinice inventada por alguém de suas fileiras, seja a genética de Lyssenko, a “revolução na revolução” de Régis Débray ou a via gramsciana para o socialismo. Esta, por exemplo, jamais consegue chegar ao socialismo mas, no caminho, vai transformando a sociedade capitalista num inferno mediante a destruição sistemática dos valores culturais, religiosos e morais que a sustentam, substituídos por um cinismo individualista que depois a própria militância gramsciana, sem ver que se trata de obra sua, denuncia como um horror inerente ao espírito do capitalismo.

Já a irracionalidade do socialismo não precisa de muitas páginas para ser demonstrada. Basta-lhe um breve parágrafo. Compreende-a, num relance, quem quer que seja capaz de apreender intelectivamente o conceito mesmo de socialismo tal como expresso por seus apóstolos. Esse conceito é o de um Estado que destitui do poder a classe rica em nome da classe pobre. Ora, para intervir eficazmente numa luta em defesa do mais fraco agredido pelo mais forte é preciso, por definição, ser mais forte que o mais forte. Logo, a vanguarda socialista, para vencer a burguesia, deve acumular mais poder político, militar, policial e judiciário do que a burguesia jamais teve. Porém, como todo poder custa dinheiro, é preciso que a vanguarda detenha também em suas mãos o controle de uma riqueza maior do que a burguesia jamais controlou. Donde a supressão de toda distinção real entre poder político e econômico, que no capitalismo ainda permite aos pobres buscar ajuda num deles contra o outro. Qualquer criança de doze anos pode concluir, desse rápido exame, que a formação de uma nomenklatura politicamente onipotente e dotada de recursos econômicos para levar uma vida nababesca não é um “desvio” da idéia socialista, mas a simples realização dela segundo o seu conceito originário. Infelizmente, nem todo cidadão imbuído de seu sacrossanto direito de expressar opiniões políticas tem a maturidade intelectual de uma criança de doze anos.

Mas mesmo sujeitos desprovidos de capacidade abstrativa para deduzir conseqüências do simples enunciado de um projeto deveriam ser capazes de tirar conclusões de cem anos de experiência socialista, que confirmam repetidamente aquela dedução. Se, incapaz de análise lógica, o indivíduo também se recusa a aprender com a experiência que a confirma, então é porque sua mente desceu ao último estágio do obscurecimento, o que é de fato o único motivo que alguém pode ter hoje em dia para continuar acreditando em socialismo.

A objeção gramsciana, que a muitos ocorrerá automaticamente, de que o Estado socialista será controlado por sua vez pela “sociedade civil organizada”, é apenas um subterfúgio muito desonesto, porque basta ter lido Gramsci para saber que a tal “sociedade civil organizada” não é senão a estrutura do Partido, a vanguarda propriamente dita, que, permanecendo legalmente distinta do Estado, estará “integrada” com ele na estrutura maior que o ideólogo italiano denomina “Estado ampliado” — uma expressão cujo sentido ameaçador e tenebroso pode ser apreendido à primeira vista por quem compreenda o que lê, o que infelizmente não é em geral o caso da militância esquerdista, mesmo universitária.

Também não é intelectualmente respeitável, nem como fantasia passageira, a crença corrente de que as conseqüências lógicas da aplicação da idéia socialista, tal como as acabo de descrever, não estiveram nunca nas “intenções” da militância, inspirada sempre por elevados ideais de justiça e bondade.

O termo “intenção”, no caso, designa o valor (moral, político, jurídico, religioso que seja) que a mente socialista associa à idéia ou conceito a realizar. Mas quem quer que compreenda a idéia socialista percebe, no ato, a contradição insolúvel entre essa idéia e o valor associado. Se o socialismo é o que é, não pode valer o que dizem que vale.

Ora, cultivar uma “intenção” subjetiva que a priori já está desmentida pelo simples conceito daquilo que essa intenção pretende realizar é um estado psíquico de cisão esquizofrênica, que um homem não pode cultivar por muito tempo sem ser levado a uma sucessão de crises insolúveis.

Por exemplo, um sujeito que se case alimentando ao mesmo tempo a “intenção” de conservar a liberdade sexual de um jovem solteiro, ou que contraia muitas dívidas com a “intenção” de manter intacto o seu saldo bancário mês a mês, estará alimentando uma contradição vital que, em breve tempo, o levará a um desenlace trágico. Ele dirá que esse resultado não estava nas suas “intenções”, mas nenhum homem adulto tem o direito de camuflar indefinidamente a absurdidade intrínseca de seus atos com um verniz de belas intenções.

Mais ainda: como qualquer mentira existencial básica prolifera inevitavelmente numa infinidade de mentiras instrumentais necessárias à sua tradução em atos, em breve todo o campo mental do sujeito estará repleto de mentiras que ele já não poderá reconhecer como tais sem uma dolorosa e humilhante tomada de consciência. E desta ele se esquivará enquanto puder, mediante a produção de uma terceira, de uma quarta e de uma quinta camadas de subterfúgios e racionalizações, e assim por diante até à completa fragmentação da psique e à perda da dignidade da inteligência humana.

Esta tem sido a história do socialismo. É só isso que explica a facilidade com que, de um legado monstruoso de terror e misérias, superior em número de vítimas à produção somada de duas guerras mundiais, a alma socialista pode colher como a mais bela das flores morais a mitologia renovada das “intenções”, e ainda ter a inigualável cara-de-pau de denunciar a “irracionalidade do capitalismo”.