Idealidade e objeto

Tema para desenvolvimento em classe no Seminário de Filosofia

Olavo de Carvalho

21 de dezembro de 2003

A quase totalidade das pessoas que conheço – inclusive intelectuais de ofício – não tem a menor noção da diferença entre compreender uma idéia e compreender o seu enunciado verbal. Compreender um enunciado é saber a quais significados intencionais as palavras de uma sentença se referem e qual a relação lógica traduzida pelas relações gramaticais que a compõem. Compreender uma idéia é refazer os atos cognitivos que a produziram, tendo por ponto de orientação e comparação o seu mesmo objeto. Isso quer dizer que a compreensão nunca é um processo puramente imanente, que não há compreensão sem algum recurso à experiência e à memória da experiência. O que pode causar alguma confusão, aí, é que às vezes o objeto da idéia é, por sua vez, puramente ideal, e então o processo mesmo da compreensão parece esgotar-se em puro jogo formal, sem experiência nenhuma. Essa aparência é enganosa. O fato de um objeto ser puramente ideal não impede que o acesso mental a ele seja uma experiência real em sentido estrito, um fato psicológico tão real, tão “material”, quanto a percepção sensível de uma vaca ou de um muro. O puro jogo formal, a pura combinatória lógica de objetos ideais, caracteriza-se justamente por ser independente do processo psicológico real que lhe serve de suporte. Dois mais dois são quatro independentemente de você pensar isso com a imagem de quatro pauzinhos, quatro bolinhas ou quatro sinais algébricos. Já a compreensão de uma idéia não pode nunca ser um puro jogo formal, pois consiste essencialmente de um ato psíquico determinado, que é o de conceber essa idéia o mais exatamente possível, operação que pode falhar precisamente porque nela a separação entre o conteúdo eidético e os sinais não é tão nítida quanto numa operação meramente formal e, ademais, essa separação só pode ser realizada satisfatoriamente depois de compreendida a idéia (o que aliás vale até mesmo para o exemplo das bolinhas e pauzinhos, se a conta de dois mais dois é para você uma novidade). A mistura do elemento psicológico ao algoritmo lógico das operações é um traço distintivo no confronto entre experiência e formalismo. Este último pode ser reproduzido perfeitamente por um computador; aquela, só imperfeitamente e através de analogias impróprias.

Mas a diferença vai mais longe ainda que a simples ausência ou presença do elemento psicológico material. O que diferencia maximamente da experiência o jogo mental é que este obedece apenas ao movimento interno da sua própria regra combinatória imanente, sem que esse movimento seja travado ou limitado pelas exigências vindas “de fora”, isto é, do objeto. O jogo mental por excelência é o sonho, onde a mente está livre para modificar o objeto ou substituí-lo por mero associacionismo. A dedução lógica, considerada em si mesma e formalmente, é também um jogo mental, pois se nele a mente não está totalmente livre para mover-se na direção que deseje, o que a limita não é nenhum objeto, mas as simples regras internas da dedução. Toda dedução, porém, baseia-se em conceitos previamente definidos, que ela própria não pode produzir. Os conceitos, nesse sentido, já são um tanto “externos” ao jogo mental — a esse jogo mental particular que está sendo jogado nessa dedução em particular. Por isso, a dedução considerada materialmente, isto é, limitada pela estrutura lógica e ontológica dos objetos definidos, já não pode ser puro jogo mental, mera criação imanente da psique, mas sim a subordinação do jogo psíquico a uma exigência que o transcende, formulada pela definição dos conceitos. A simples referência intencional aos conceitos, ou a recordação deles no curso da dedução, é um ato psíquico que tem um componente experiencial e não se esgota em pura combinatória formal.

Os próprios conceitos, por sua vez, podem, durante a dedução, ser considerados tão somente na sua intencionalidade lógico-verbal ou na sua referência a um objeto real. A dedução puramente formal opera somente com conceitos lógico-verbais, presumindo que as propriedades deles deduzidas se reencontrarão tais e quais nos objetos correspondentes, ou então se desinteressando totalmente destes últimos e contentando-se com a mera decomposição lógico-analítica dos conceitos enquanto tais. Ora, quando os conceitos têm uma referência necessária a objetos que sejam externos à regra da dedução, é necessário que durante a dedução estes estejam presentes à consciência, em si mesmos, como dados de experiência, e não somente através de seu suplente, isto é, o conceito. Caso se trate de objetos ideais, ou constructos mentais, eles devem ser continuamente reapresentados à consciência — ou reconstruídos –, numa operação concomitante com a dedução enquanto tal, de modo que as propriedades deduzidas da definição apareçam, no mesmo instante, como notas reconhecíveis no próprio objeto por intuição imediata. Num caso como no outro, a dedução, ou decomposição lógica do conceito em suas propriedades, é então uma concomitância (ou tradução) lógico-verbal da decomposição intuitiva do próprio objeto, considerado nos aspectos de sua estrutura real que correspondam à estrutura lógica das propriedades implícitas no seu conceito.

Natal proibido

Olavo de Carvalho


O Globo, 20 de dezembro de 2003

Embora 92 por cento dos americanos celebrem o Natal, qualquer festejo natalino está proibido nas escolas públicas dos EUA. Mesmo a simples menção verbal ao nascimento de N. S. Jesus Cristo deve aí ser substituída por alusões neutras a “festas”. Infrações são punidas com suspensão ou expulsão, para os alunos, e demissão, para os professores. O nome de Jesus, qualquer prece cristã e até entrar no recinto com uma Bíblia embaixo do braço estão proibidos o ano inteiro em muitas outras repartições oficiais. São considerados violações da “separação Igreja-Estado”, preceito que não está na Constituição mas que a facção mais esquerdista do Partido Democrata conseguiu impor ao Congresso na era Clinton, cavando um abismo entre os costumes populares e a regra oficial.

A previsível reação de incredulidade do leitor brasileiro ante essas notícias provém de uma só causa: o Brasil está separado dos EUA — e, a rigor, do resto do mundo – por um muro-de-Berlim cognitivo cada vez mais impossível de saltar.

A mídia brasileira em peso, entre lágrimas, descreve os muçulmanos nos EUA como um grupo perseguido e acuado. Mas durante o ano inteiro de 2002 as queixas de discriminação anti-islâmica registradas — quase todas de meros suspeitos de terrorismo interrogados pela polícia e liberados, e nenhuma com denúncia de agressão física, demissão de emprego, privação da liberdade de palavra, etc. — foram pouco mais de seiscentas. Para você fazer uma idéia do que isso significa, seiscentos é o número de advogados voluntários que trabalham para uma só associação cristã de direitos humanos e mal dão conta dos casos graves de discriminação anticristã que lhes chegam diariamente.

As amostras que tenho colhido na imprensa americana sobem a centenas de casos e estão à disposição dos leitores que me escrevam a respeito. Mais ainda são as que constam do best seller “Persecution” do advogado David Limbaugh. Alguns exemplos:

Cristãos indicados para altos cargos no governo federal têm sido invariavelmente vetados pelo Congresso, sob a alegação de que sua presença atenta contra a “separação de Igreja e Estado”.

Ron Greer, pastor de uma comunidade evangélica em Madison, Wisconsin, teve sua pregação interrompida por gritos que vinham de fora da igreja. Foi averiguar e deparou com uma multidão de manifestantes anticristãos que, em aberta incitação ao genocídio, gritavam: “Tragam os leões!”

Mildred Rosario, uma professora do Bronx, fez uma prece junto com a classe pela morte de um dos alunos, e foi demitida. O instrutor Simpson Gray perdeu o emprego por entrar na mesma escola com uma Bíblia.

Numa escola elementar de New Jersey, um menino foi punido por dar a seus colegas uns lápis com a inscrição “Jesus ama as criancinhas”. A Côrte de Apelação local deu razão à escola.

Em St. Louis, Missouri, Raymond Raines, aluno do quarto ano primário, rezou em voz alta antes do almoço na Waring Elementary School. Ganhou uma semana de suspensão.

Num programa da Nation Public Radio (estação do governo), o comentarista Andrei Codrescu exclamou: “A evaporação de quatro milhões de pessoas que acreditam nesse lixo (o cristianismo) faria do mundo um lugar melhor.”

A Biblioteca Pública de Meridien, Conn., retirou de suas paredes todas as imagens de Jesus Cristo, julgando-as ofensivas à comunidade islâmica.

No condado de Galveston, Texas, o juiz distrital Samuel B. Kent colocou policiais nas escolas públicas para que prendessem — isto mesmo: prendessem — qualquer estudante que violasse a “separação Igreja-Estado” pronunciando o nome de Jesus.

Em inumeráveis mesquitas americanas, na TV e nas ruas, os imams vociferam impunemente apelos à guerra mundial contra o “Grande Satã”, mas o general William G. Boykin perdeu seu posto de comando por ter dito que a luta contra o terrorismo era uma guerra contra a falsa religião. Em muitas escolas públicas da Califórnia, a prática da religião islâmica é obrigatória, enquanto a da cristã é proibida; o aluno que diga uma palavra contra o Islam é forçado a submeter-se a estágio de “reeducação da sensitividade”, que inclui recitações do Corão.

No Canadá é pior ainda. O pastor John Hagee mostrou na estação CTS de Toronto um vídeo no qual imams muçulmanos, em plena América, pregavam abertamente a violência contra os judeus. Foi punido — ele, não os imams — por “violar o código de ética” da emissora. Mark Harding, um canadense acusado de falar contra o Islam, foi condenado a 340 horas de serviço comunitário numa entidade muçulmana, incluindo leitura obrigatória de propaganda pró-islâmica.

Nada disso foi jamais noticiado na mídia nacional. Os EUA que o leitor brasileiro imagina conhecer são uma entidade imaginária, diversa e às vezes inversa da realidade.

Enquanto isso, a matança de cristãos no mundo islâmico sobe a cifras assustadoras, sem que nenhum jornalista do Brasil, país nominalmente cristão, sinta o menor repuxão na consciência por ocultar do público esse genocídio sem fim. Paul Marshall, autor de Religious Freedom in the World: A Global Survey, informa que “desde que o Front Nacional Islâmico tomou o poder nos anos 80, dois milhões de sudaneses cristãos e animistas foram assassinados.” Na Arábia Saudita a religião cristã é formalmente proibida, enquanto no Irã só pode ser praticada em recinto fechado.

A natureza do marxismo

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 18 de dezembro de 2003

Investigando durante décadas a natureza do marxismo, acabei concluindo que ele não é só uma teoria, uma “ideologia” ou um movimento político. É uma “cultura”, no sentido antropológico, um universo inteiro de crenças, símbolos, valores, instituições, poderes formais e informais, regras de conduta, padrões de discurso, hábitos conscientes e inconscientes, etc. Por isso é autofundante e auto-referente, nada podendo compreender exceto nos seus próprios termos, não admitindo uma realidade para além do seu próprio horizonte nem um critério de veracidade acima dos seus próprios fins autoproclamados. Como toda cultura, ele tem na sua própria subsistência um valor que deve ser defendido a todo preço, muito acima das exigências da verdade ou da moralidade, pois ele constitui a totalidade da qual verdade e moralidade são elementos parciais, motivo pelo qual a pretensão de fazer-lhe cobranças em nome delas soa aos seus ouvidos como uma intolerável e absurda revolta das partes contra o todo, uma violação insensata da hierarquia ontológica.

A constituição da sua identidade inclui dispositivos de autodefesa que  impõem severos limites à crítica racional, apelando, quando ameaçada real ou imaginariamente, a desculpas mitológicas, ao auto-engano coletivo, à mentira pura e simples, a mecanismos de exclusão e liquidação dos inconvenientes e ao rito sacrificial do bode expiatório.

Iludem-se os que acham possível “contestar” o marxismo por um ataque bem fundamentado aos seus “princípios”. A unidade e a preservação da sua cultura estão para o marxista acima de todas as considerações de ordem intelectual e cognitiva, e por isso os “princípios” expressos da teoria não são propriamente “o” fundamento da cultura marxista: são apenas a tradução verbal, imperfeita e provisória, de um fundamento muito mais profundo que não é de ordem cognitiva e sim existencial, e que se identifica com a própria sacralidade da cultura que deve permanecer intocável. Esse fundamento pode ser “sentido” e “vivenciado” pelos membros da cultura por meio da participação na atmosfera coletiva, nos empreendimentos comuns, na memória das glórias passadas e na esperança da vitória futura, mas não pode ser reduzido a nenhuma formulação verbal em particular, por mais elaborada e prestigiosa que seja. Por isso é possível ser marxista sem aceitar nenhuma das formulações anteriores do marxismo, incluindo a do próprio Marx. Por isso é possível participar do movimento marxista sem nada conhecer da sua teoria, assim como é possível rejeitar criticamente a teoria sem cessar de colaborar com o movimento na prática. A investida crítica contra as formulações teóricas deixa intacto o fundamento existencial, que atacado reflui para o abrigo inexpugnável das certezas mudas ou simplesmente produz novas formulações substitutivas que, se forem incoerentes com as primeiras, não provarão, para o marxista, senão a infinita riqueza do fundamento indizível, capaz de conservar sua identidade e sua força sob uma variedade de formulações contraditórias que ele transcende infinitamente. O marxismo não tem “princípios”, apenas impressões indizíveis em constante metamorfose. Como a realidade da vida humana não pode ser vivenciada senão como um nó de tensões que se modificam no tempo sem jamais poder ser resolvidas, as contradições entre as várias formulações do marxismo farão dele uma perfeita imitação microcósmica da existência real, dentro da qual o marxista pode passar uma vida inteira imune às tensões de fora do sistema, com a vantagem adicional de que as de dentro estão de algum modo “sob controle”, atenuadas pela solidariedade interna do movimento e pelas esperanças compartilhadas. Se o marxismo é uma “Segunda Realidade”, na acepção de Robert Musil e Eric Voegelin, ele o é não somente no sentido cognitivo das representações ideais postiças, mas no sentido existencial da falsificação ativa, prática, da experiência da vida. Por isso qualquer povo submetido à influência dominante do marxismo passa a viver num espaço mental fechado, alheio à realidade do mundo externo.

Detalharei mais no próximo artigo estas explicações, resumo das que ofereci no meu recente debate com um professor da Faculdade de Direito da USP, às quais meu interlocutor respondeu que eu pensava assim por ter “problemas emocionais graves” — sem perceber que, com isso, dava a melhor exemplificação da minha teoria.