A esquerda americanizada

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 16 de janeiro de 2006

No tempo da ditadura, os esquerdistas da mídia, embora conservassem o poder sobre as redações, se sentiam isolados e constrangidos. Não tanto pela censura quanto pela hostilidade geral da população às guerrilhas. Deprimia-os que o povo não gostasse de ver recrutas e civis brasileiros ser feitos em pedaços por carros-bombas. Magoava-os profundamente que ninguém visse nada de heróico em “justiçar” com tiros nas costas homens desarmados, que ninguém admirasse a nobreza de sentimentos com que o capitão Lamarca esmagava a coronhadas a cabeça de um prisioneiro amarrado.

Hoje, esses episódios sumiram tão completamente dos mesmos jornais que os denunciavam, que já parecem invencionices retroativas da direita. Na época, os próprios jornalistas de esquerda eram obrigados a contar tudo tim-tim por tim-tim, sem poder em contrapartida expor ao menos em detalhes a sua parte, os padecimentos que seus amigos terrorristas sofriam – oh, quão injustamente! – em retribuição das bombas e das emboscadas. Tinham os mais altos cargos e os melhores salários, mas eram tão incompreendidos e infelizes que precisavam consolar-se mediante festinhas de embalo no Copacabana Palace. Terminaram achando que drogas e surubas tinham um alto potencial revolucionário, e não estavam de todo errados, já que acabaram conseguindo mais eficazmente corromper as gerações seguintes do que ganhar alguma simpatia dos contemporâneos para a violência revolucionária. Vindo a calhar com a estratégia gramsciana que então começava a ser importada, o modelo americano de “guerra cultural” da New Left, que no início julgavam desprezível e burguês na comparação com as propostas truculentas de Che Guevara e Régis Débray, acabou sendo a tábua de salvação que lhes permitiu sobreviver para reinventar depois a história daquele período, fazendo da derrota das guerrilhas uma espetacular vitória publicitária e uma fonte inesgotável de verbas consoladoras.

Mas não foi só nisso que a esquerda midiática se americanizou. A época foi também a do afluxo maciço de brazilianists, que embora fossem também quase todos de esquerda – alguns deles tão enragés quanto qualquer guerrilheiro –, eram bem recebidos pelo governo por conta das instituições que os patrocinavam. Muita coisa que a esquerda local não podia dizer era dita pela boca desses medalhões, de onde o discurso esquerdista saía perfumado com o aroma da superior neutralidade acadêmica da Ivy League.

Aos poucos, o hábito de respaldar-se em declarações de americanos apresentados como insuspeitos tornou-se um dispositivo usual da retórica esquerdista. Na verdade homens como Ramsey Clark, John K. Galbraith, Jimmy Carter ou Ted Kennedy eram a fina flor do esquerdismo chique. Estavam comprometidos até a goela com a ajuda à subversão no Terceiro Mundo. Mas a simples insistência geral da esquerda na lenda de que o golpe militar viera de Washington dava a qualquer americano, por contraste, a autoridade para falar contra a direita latino-americana sem parecer nem um pouquinho esquerdista. O mesmo acontecia com jornais patologicamente mentirosos em favor da esquerda, como New York Times e Washington Post , que ante a platéia tupiniquim ignorante, podiam ser citados como modelos de isenção profissional pelo simples fato de ser americanos.

A geração seguinte de esquerdistas continuou usando o mesmo truque, mas por automatismo paspalho e sem saber que era truque. Quando um Eliakim Araújo, ardido de dores petistas e embriagado de alegria vingativa pela demissão de Boris Casoy, compara desvantajosamente o ex-âncora da Record a “respeitados jornalistas do horário nobre” da TV americana, incluindo entre estes últimos dois notórios vigaristas de esquerda como Peter Jennings e Dan Rather, ele parece acreditar mesmo no que diz, coitado. A malícia dos gurus impregnou-se em seus discípulos sob a forma de ingenuidade perversa. Eles já não mentem por astúcia. Mentem porque ninguém os ensinou a fazer outra coisa.

Notinha horrível

Quanto às festinhas no Copacabana Palace, não falo genericamente. Há uma crônica inesquecível de Daniel Más sobre isso, publicada na extinta revista Visão. Segundo o cronista, até a expressão “Anos Dourados”, usada para designar de maneira aparentemente paradoxal uma época também carimbada como “Anos de Chumbo”, se originou entre o pessoal da mídia e do show business por alusão a uns pacotinhos dourados em que vinha a cocaína. O episódio é edificante. Um dia, turistas estavam brincando de jogar-se uns aos outros na piscina do hotel, enquanto a turminha esperta dos brasileiros, nas mesas em torno, aguardava a chegada de um boliviano que trazia o pó. De repente, aterrorizados, viram o sujeito entrando e sendo agarrado pelos brincalhões. Não houve tempo nem de gritar. Foi o desespero geral: todo mundo pulando na água, atrás dos papeizinhos dourados…

Abramoff para brasileiros

Vocês devem ter lido na mídia brasileira que o caso das verbas ilegais do lobista Jack Abramoff é “um escândalo republicano”, que a investigação vai arrasar o base parlamentar de George W. Bush etc. e tal.

Tudo besteira.

O noticiário internacional que se publica no Brasil copia servilmente o New York Times, o Washington Post, a Reuters e demais fontes da “grande mídia” americana, mas o fato é que essa mídia, vista desde aí, fica bem maior que aqui. O NY Times, aos domingos, pico de vendas, tira pouco mais de um milhão de exemplares. Que é isso, perto dos 38 milhões de ouvintes diários do conservador Rush Limbaugh? Se você somar as platéias de Limbaugh com as de outros comentaristas conservadores de sucesso, como o elegante Bill O’Reilly, ou o explosivo Michael Savage, mais as colunas semanais de articulistas de direita distribuídos a centenas de jornais, como as de David Horowitz, Don Feder, Thomas Sowell, Ann Coulter, verá que, na disputa de público, a “grande mídia” é titica de galinha (sem contar o fato de que a credibilidade dos jornalões está muito baixa entre seus próprios leitores, não passa de 30 por cento). Por isso ela pode mentir à vontade, e quanto mais impopular mais mente, em puro desespero, em pura apelação. É o crepúsculo dos ídolos. Berrando e apanhando. Aqui todo mundo sabe que as coisas são assim. O pessoal só lê esses jornais para saber qual a opinião dos democratas, não a verdade do que está acontecendo. Quem quer a verdade compara o jornalismo de esquerda com o de direita e tira suas próprias conclusões.

O problema é que no Brasil (1) a mídia esquerdista chique americana ainda tem prestígio, o pessoal das redações acredita mesmo que o NY Times seja uma fonte confiável; (2) não existe aí nenhum Rush Limbaugh; o jornalismo de direita é raquítico. Resultado: Tudo o que no Brasil se aceita como verdade factual sobre a política dos EUA é apenas a versão esquerdista, conscientemente deformada, conscientemente militante e cada vez mais fanática, cada vez mais descarada.

O noticiário sobre o caso Abramoff é um exemplo típico. Aqui os republicanos riem quando lêem que o escândalo é para o lado deles. Riem porque conhecem a lista dos políticos de oposição que embolsaram dinheiro do mega-vigarista. Nada menos de noventa por cento dos senadores democratas estão nela (v. a lista inteira em http://www.newsmax.com/archives /ic/2006/1/6/100900.shtml). John Kerry, por exemplo, levou cem mil dólares. Hillary Clinton, mais modestamente, doze mil. E assim por diante. Quando ligarem o ventilador judicial, o grosso da sustância fecal vai para esse lado. Os democratas só estão fazendo onda na mídia. Na hora H, terão de escolher entre a pizzaria e a cadeia. Ninguém na própria esquerda ignora isso, mas para que estragar prematuramente um prazer que, por natureza, já está condenado a ser breve?

É por essas coisas que, quando o NY Times alardeia a queda de popularidade do presidente, jamais a compara com a sua própria, para não admitir o vexame. Bush, no ponto mais baixo, ainda tinha mais credibilidade do que toda a grande mídia americana somada.

Infelizmente, no Brasil, ninguém tem a menor idéia disso. Os EUA que se vêem daí só existem na imaginação esquerdista. São uma entidade fantasma fabricada pela esquerda americana para consumo próprio, e que acaba sendo mais consumida no Terceiro Mundo do que aqui, como todo produto americano que o mercado interno rejeita como demodé.

Duas estratégias

Há hoje em dia pelo menos duas maneiras de inserir um país do Terceiro Mundo na estratégia comunista internacional. A primeira é usar os instrumentos clássicos do populismo radical, declarando guerra à iniciativa privada e ao capital estrangeiro. A segunda é transferir a guerra do campo econômico para o cultural e jurídico, anestesiando os investidores internacionais por meio de uma política econômica mais ou menos “ortodoxa” e assim ganhar tempo para ir minando as crenças tradicionais do povo e implantando discretamente, em lugar delas, novas leis e costumes “politicamente corretos” que, no prazo devido, acabarão inevitavelmente rendendo frutos ainda mais explosivos que qualquer espalhafato “anti-imperialista” de Hugo Chávez e Evo Morales.

Qualquer profissional do comunismo que tenha alguma competência e seriedade sabe que não faz sentido preferir uma via ou a outra. A escolha não depende de preferências individuais, mas da sábia adaptação às circunstâncias, mudando de rumo quantas vezes seja necessário para desorientar as vítimas e, no conjunto, fazer avançar o processo de maneira irreversível. Ter não uma, mas duas estratégias alternadas ou combinadas é, aliás, o mínimo que se poderia esperar de cérebros versados na dialética de Marx, onde a revolução avança por meio da administração inteligente das contradições.

No Brasil, as duas estratégias citadas correspondem à via petista originária e à via tucana. Por ter sido eleito para implantar a primeira e depois adotado a segunda, o sr. Luís Inácio Lula da Silva é chamado de traidor pela massa ignara. Nos altos círculos do Foro de São Paulo, Fidel Castro e Hugo Chávez riem dessa indignação histérica porque sabem que Lula nunca foi tão fiel à estratégia global do movimento.

A duplicidade de vias permite que, nas horas de aperto, a esquerda tire proveito publicitário até de seus próprios crimes e desvarios. Quando algum corrupto de esquerda é pego em flagrante, basta acusá-lo de traidor, de vendido para a direita, mesmo quando ele não tenha roubado para si próprio e sim para o esquema partidário, o que é precisamente o caso do Mensalão. O Fórum Social Brasileiro, que se anuncia para breve, está programado exatamente para esse fim: capitalizar a roubalheira petista, explicando-a retroativamente como delito de “neoliberalismo”…

Outro exemplo: a esquerda americana envia à Amazônia uns “missionários” do Conselho Mundial das Igrejas para fomentar entre os índios ambições politicamente corretíssimas de “nações indígenas” independentes, enquanto a esquerda brasileira, explorando a ignorância nacional de que essa entidade é pró-comunista, aproveita o caso para denunciar o “imperialismo americano”.

Mais caracteristicamente ainda, presidentes americanos notoriamente pró-esquedistas como Jimmy Carter e Bill Clinton incentivam a destruição das forças armadas latino-americanas, último baluarte de resistência anticomunista no continente, enquanto agitadores locais se infiltram nas academias militares e em think tanks como a Escola Superior de Guerra para incitar na oficialidade, com base nisso, o ódio anti-americano. A operação completa-se quando em seguida aparecem líderes tradicionais da esquerda afagando os militares e insinuando que está na hora de “superar velhos ressentimentos” e unir-se “contra o inimigo da pátria”.

Multiplicados ad infinitum, ardis como esse acabam não apenas surtindo efeito, mas consolidando-se como esquemas de raciocínio padronizados, que proliferam espontanemente e se adaptam por automatismo a mil e uma circunstâncias diversas. Para militantes comunistas tarimbados, essas operações são pura rotina.

O método Derrida

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 12 de janeiro de 2006

Jacques Derrida era judeu. Diferia dos demais pensadores judeus por duas peculiaridades: (1) seu principal guru era militante nazista; (2) seu principal discípulo também. Quando ele usou de todos os artifícios desconstrucionistas para diluir o duplo vexame, transmutando Martin Heidegger e Paul De Man em vítimas do mundo mau e seus acusadores em guardas de campo de concentração, talvez soubesse que tinha encontrado finalmente a serventia ideal do seu famoso método.

O pressuposto do desconstrucionismo é a lingüística de Ferdinand de Saussure. Enquanto não se conseguiu descrever a língua como estrutura, como objeto, isolando-a das condições vivas da sua utilização, não foi possível inutilizá-la. A isso dedicou-se o autor da Grammatologie , movido pela ambição de provar que todo mundo antes dele estava enganado, que todos os discursos eram autocontraditórios, que não significavam coisa nenhuma e que, no fim das contas, só sobrava a “vontade de poder”.

As análises que ele faz são perfeitas, desde que você entenda que se referem à “língua” de Saussure, não à de Platão, de Dante ou de qualquer um de nós. Aquela não existe: é uma estrutura hipotética, um sistema de regras. Ler nela é impossível, porque aí o sentido de cada palavra se torna apenas a diferença entre ela e as demais, e não algum objeto do mundo, o que implica que ninguém compreenderia uma única palavra se não conhecesse todas as outras. Se fosse assim com as línguas de verdade, o primeiro bebê ainda estaria tentando aprender a primeira palavra.

Felizmente, a “língua” de Saussure não foi feita para ser falada ou escrita, apenas teorizada. Quando você compra um salame no supermercado, o que vem no pacote é um composto de carne, gordura e tripas, não apenas a diferença entre o salame e tudo o mais. Ninguém jamais comeu uma diferença. No mundo real, você pode perfeitamente compreender uma palavra sem conhecer qualquer outra do mesmo idioma. Basta alguém dizer a palavra e apontar o objeto correspondente. A língua não é um sistema: é um aglomerado fragmentário de procedimentos que só é completado pelo sistema do mundo, pela realidade em torno, na qual ela é uma forma de instalação humana, articulada por sua vez com muitas outras. Retirada desse conjunto, considerada “em si mesma”, ela se torna um sistema, mas por isso mesmo não pode mais funcionar: sem os objetos (e aliás também sem o sujeito), sobram rombos demais num tecido feito de meras diferenças; diga você o que disser, o resultado será incongruente.

O empreendimento de Derrida consistiu em traduzir mentalmente todos os livros para a língua saussuriana e, lendo-os, concluir que ficavam perfeitamente absurdos, coisa que até eu que sou mais trouxa teria lhe avisado antes se ele me perguntasse. Feito isso, porém, ele saiu vendendo a conclusão como se valesse para tudo o que os homens disseram em qualquer língua desde os tempos de Cro-Magnon até o advento de Jacques Derrida. Os pedantes que acreditaram nele acabaram falando numa língua que tem mesmo as propriedades daquela que ele descreve: está cheia de contradições e não significa nada. Quando querem convencer alguém de alguma coisa, já não podem portanto nem mesmo tentar ser lógicos e conseqüentes. Gritam frases soltas, barbaramente contraditórias, e fazem uma expressão desvairada, com olhos de fogo, mostrando como você é mau e perverso se não fizer o que eles querem. A filosofia de Derrida não é uma filosofia: é uma pegadinha. A vantagem é que aqueles que caem nela aprendem a pegar os outros e a viver disso. Você não tem idéia de quanto eles conseguem obter por esse meio em subsídios do governo, direitos especiais e proteção da polícia para qualquer besteira que inventem. Realizando assim a primazia da vontade de poder sobre o pensamento racional, provam que Jacques Derrida era mesmo o gostosão. Qualquer semelhança com o método nazista é deplorável coincidência, da qual Derrida está tão inocente quanto Heidegger, De Man, Nietzsche e talvez até o Führer em pessoa.

O grande rombo

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 9 de janeiro de 2006

Reagindo com fúria burlesca ao meu artigo da semana retrasada, o general Andrade Nery, por extenso Durval Antunes Machado Pereira de Andrade Nery, vice-presidente da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra, está fazendo circular pela internet uma nota repleta de solecismos, na qual me chama de “pseudojornalista dissimulado, entreguista, antipatriota, peitado, defensor intransigente de uma política globalizante que prioriza uma só nação dando-lhe o direito de explorar todos os povos” ( sic ).

Eu não solicitaria a atenção do leitor para semelhante estupidez se esta fosse apenas um insulto pessoal e não, como de fato é, um sintoma elucidativo daquilo mesmo que denunciei no meu artigo: o esforço maciço de traidores e usurpadores para colocar as nossas Forças Armadas a serviço de tudo o que elas combateram no passado. Pela sua posição na Adesg, Andrade Nery está bem equipado para dar uma substantiva contribuição a esse esforço, e é só isto o que torna as suas palavras dignas de exame.

O teor mesmo das imputações é tão ridículo, tão inverso ao conteúdo expresso de tudo o que escrevi, disse e fiz ao longo da minha carreira jornalística, que nenhuma dificuldade séria impedirá o leitor de perceber, à primeira vista, que o general não tem a menor idéia do que está dizendo: é apenas um papagaio de bordel a repetir mecanicamente coisas feias que ouviu de prostitutas. Com efeito, o encanecido oficial, nos intervalos furtivos do seu convívio perfeitamente respeitável com velhos companheiros de farda, freqüenta o círculo de redatores da Hora do Povo , aquela publicação eminentemente fecal que, no centenário de Stálin, celebrou o ogro genocida como “o maior democrata da humanidade” ( sic ), e cuja misteriosa sobrevivência com tão poucos leitores e anúncios só veio a ser cabalmente explicada mediante a revelação das propinas que, por conta do tristemente célebre projeto “oil for food”, recebera de Saddam Hussein. Nas horas sombrias em que o peso da dignidade castrense se torna excessivo e os instintos baixos da mendacidade atávica clamam por soltar a franga, é nesse submundo mental que o general Nery busca alívio e reconforto, não só intoxicando-se daquela droga impressa, mas ajudando a produzi-la sob a forma de invencionices convenientemente anti-americanas, bem ao gosto de seus camaradas de farra ideológica, publicadas em confraternização promíscua com as de outras macacas de auditório de Mao Tsé-tung, Fidel Castro e Pol-Pot.

O que se ouve num ambiente desses não se repete em casa. Deposita-se discretamente na privada do esquecimento. A não ser, é claro, quando se tem a vocação incoercível da papagaiada. Aí o que o sujeito faz é empoleirar-se na janela do prostíbulo e repetir o discurso inteiro que ouviu lá dentro, surpreendendo-se de que os transeuntes distraídos não parem para aplaudi-lo.

O que o general Nery escreveu de mim só fica bem no recinto fechado da redação da Hora do Povo . Fora daí, alardeado para o mundo, a céu aberto, é uma gafe medonha, um vexame colossal, além de delito previsto nas leis penais do país.

O general chama-me de todos aqueles nomes para dar a impressão de ser um tribuno indignado, erguido em defesa de uma nobre instituição, a Escola Superior de Guerra, que teria sido atacada por mim. Bela comédia. Na verdade, eu nada disse contra a ESG, mas tudo contra o estado atual em que se encontra. Nada contra a instituição, tudo contra os que hoje se servem dela para finalidades opostas às suas metas originárias. Defender esses farsantes e usurpadores não é defender a instituição: é aviltá-la, é cuspir na sua história, fingindo-se de seu advogado. Atacá-los não é falar mal dela: é honrar os que a criaram, é dar voz aos mortos que já não podem se defender. Tal a diferença entre o empreendimento do general Nery e o meu.

A ESG de hoje não é mais a de ontem. Mas não é a sua continuação, o fruto de uma evolução normal. É a sua negação, o seu oposto simétrico. Não há conciliação entre elas. Quem ama a primeira, odeia a segunda, e vice-versa. O próprio general Nery fornece a prova dessa transformação. Leiam o seguinte parágrafo (transcrevo sem correções):

Assim foram encomendados (à ESG) planos de governo na área energética, planos para melhoria das comunicações – o que à época era um caos, pois se demorava quatro dias para falar do Rio de Janeiro para Manaus- domínio da energia nuclear, tecnologia para agroindústria, tecnologia de ponta na área de engenharia. desta forma, nasceram a Usina de Tucuruí, Itaipu, ampliação da Usina de Paulo Afonso, Furnas, a Usina Nuclear de Angra dos Reis, Embrapa, I.T.A, Embraer, bem como o desenvolvimento dos motores a álcool, plano hoje oferecido a Cuba para solução  de suas carências, face ao atual valor do petróleo, e o embargo pelos Estados Unidos da América .”

Tudo o que ele diz aí é verdade. A ESG realizou grandes trabalhos para o país. Só que todos eles – com exceção do último, e já veremos por quê — foram realizados entre a fundação da Escola e o fim do chamado “governo militar”, em 1988. Nesse período, a instituição, com sua “doutrina da segurança nacional”, servia ao Brasil e aos valores tradicionais da civilização cristã que nortearam a construção do país. Ela era o centro intelectual da defesa da nacionalidade – e da segurança continental — contra a ameaça comunista vinda de Cuba. Por isso os comunistas a odiavam, tanto quanto hoje odeiam a mim, e falavam dela nos mesmos termos que o general agora usa contra mim. Consideravam-na o templo do entreguismo, chamavam-na de vendida ao imperialismo ianque, de servidora da exploração internacional. Nesse tempo, a ESG recebeu vultosas tarefas do governo e se desincumbiu delas com eficiência e patriotismo inigualáveis. Não é estranho que tantas coisas boas para o país fossem feitas por uma instituição acusada de trabalhar a serviço de interesses estrangeiros, como representante local de uma concepção de segurança continental “imposta por Wall Street”? O general não faz idéia de quanto me honra ao macaquear, contra mim, o discurso com que os inimigos do Brasil tentaram enlamear a imagem da instituição que hoje ele finge servir para melhor servir-se dela.

Não por coincidência, de todas as realizações da ESG que constam da sua lista, só uma corresponde ao período atual, à chamada redemocratização ou Nova República: trata-se de um plano para o desenvolvimento de motores a álcool, já antigo, mas agora – surprise! — “oferecido a Cuba para solução de suas carências, face ao atual valor do petróleo, e o embargo pelos Estados Unidos da América”. Não liguem para a regência preposicional capenga. O homenzinho apenas exerce seu direito ao analfabetismo funcional. O que importa é a informação: o apologista da nova ESG não tem a alegar em favor dela senão o que a velha ESG fez pelo do Brasil e o que ela, agora, faz em benefício de Cuba. Para ele, já se vê, as duas coisas são igualmente patrióticas. Tanto faz defender o Brasil contra uma ditadura estrangeira que financiava a subversão armada no nosso território, nas décadas de 60-70, ou ajudar essa ditadura a fazer exatamente o mesmo, agora. Com um agravante formidável: comparadas aos feitos das FARC, as guerrilhas dos anos 70 eram uma escaramuça de moleques; ao lado do Foro de São Paulo, a velha OLAS de Fidel Castro ( Organización Latino-Americana de Solidariedad ) era um clube de futebol de botão. Se naquela época a ESG serviu como um poderoso cimento para dar solidez à “grande barreira” erguida contra as ambições cubanas, muito mais obrigação teria de fazê-lo hoje, em vez de dar força a uma ditadura que subsidiou e orientou a matança de tantos soldados brasileiros.

Fazer de conta que a ESG não mudou, que dá na mesma servir ao Brasil ou a Cuba, é uma fraude tão manifesta, tão despudorada, que só por endossá-la o general já faria jus ao estatuto de inimigo da pátria, de traidor das Forças Armadas, de agente de influência a serviço – gratuito ou remunerado, pouco importa – daquilo que existe de pior no mundo. E sua atuação na ESG é a prova mais evidente de que a entidade, para dizer o mínimo, traiu a si própria e hoje se empenha em cortejar seus inimigos de ontem.

Saber como se deu essa transformação é outro problema. Não freqüento a Escola, só observo suas manifestações exteriores, assustando-me com o espaço cada vez maior ali concedido a agentes de influência dedicados a fazer das Forças Armadas brasileiras um instrumento do comunismo internacional. Quando, alguns anos atrás, o sr. Márcio Moreira Alves chegou a ser cogitado para reitor civil da instituição, a mudança que ela sofrera ao longo dos anos se tornou visível demais para ser ignorada. O sr. Moreira Alves, pouco antes, tinha voltado de uma viagem à Amazônia, entusiasmado com a transformação ideológica das nossas tropas de fronteira, que, dizia ele, varavam noites estudando as obras de Ho Chi Mihn e sonhando com uma guerra na selva… contra os narcotraficantes? Não. Contra os guerrilheiros das Farc, que entravam e saíam do nosso território como se fosse sua própria casa? Não. Sonhavam com uma guerra contra os marines americanos.

Era esse o mesmo Exército das décadas de 60 e 70? Quantos soldados brasileiros a Marinha americana havia matado, para que nossos jovens oficiais a odiassem tanto? Que extraordinários benefícios o Brasil havia recebido do movimento comunista internacional, para que nossas tropas se oferecessem para morrer a serviço dele?

Não acompanhei a transformação da ESG capítulo por capítulo, mas observei que, tão logo veio abaixo a ditadura soviética, intelectuais iluminados, civis e militares, se aproveitaram da impressão do momento para proclamar que o movimento comunista internacional já não era problema e que nosso inimigo potencial, daí por diante, eram os EUA.

Como prova disso, alegavam a presença constante de ONGs americanas na Amazônia e, naturalmente, a expansão do “imperialismo americano” através do Plano Colômbia e atividades similares.

A falsidade desse diagnóstico saltava aos olhos de quem quer que conhecesse algo do movimento comunista. Desde logo, a extinção da URSS não foi acompanhada de nenhuma modificação substancial na velha KGB, que só mudou de nome mas nem sofreu cortes no seu orçamento, nem foi expurgada de seus velhos quadros comunistas, nem teve alteradas as suas funções tradicionais. Falar em “fim do comunismo”, nessas circunstâncias, era tão ridículo quanto teria sido proclamar a extinção do nazismo se, morto o Führer, a Gestapo continuasse a funcionar sem ser incomodada.

Desde o começo dos anos 90, era previsível a qualquer momento a revivescência do comunismo sob outro nome qualquer. Quando a IV Assembléia do Foro de São Paulo proclamou seu objetivo de “reconquistar na América Latina tudo o que perdemos no Leste Europeu”, ignorar esse perigo trornou-se cegueira suicida. Hoje, quando o poder no continente está nas mãos dos Chávez, dos Evos Morales, dos Kirchners e dos Lulas, continuar a ignorá-lo é cumplicidade criminosa. Mas, na ESG, os Andrades Nerys estão preocupados é com o “avanço do imperialismo americano”.

Ora, só um observador perverso e mal intencionado, ou ainda mais burro do que o próprio Andrade Nery jamais conseguiria ser, não percebe que as entidades americanas que interferem na Amazônia, como por exemplo o Conselho Mundial das Igrejas, a Fundação Rockefeller e agentes de George Soros, não representam de maneira alguma os interesses nacionais dos EUA, mas, ao contrário, estão profundamente associadas ao movimento esquerdista e anti-americano que se esforça para quebrar a espinha do poder nacional americano e transferir a soberania do país para organismos internacionais. Não há ninguém que ignore isso nos EUA – mas, graças a onipresença de agentes de influência na mídia nacional e em entidades como a ESG, essa informação ainda não chegou ao Brasil. Claro: é preciso ocultá-la a qualquer preço, pois ela modifica radicalmente a visão do quadro estratégico internacional e dilui perigosamente o empenho de juntar forças no mundo inteiro para um ataque multilateral aos EUA – empenho apoiado pelas mesmas organizações que os intelectuais iluminados descrevem como pontas-de-lança do “imperialismo ianque”.

Quanto ao Plano Colômbia, obra de um presidente cujas conexões ideológicas não escapam nem a velhinhos com Alzheimer desde que ele se elegeu com a ajuda do governo da China e depois se tornou protetor da espionagem chinesa em Los Alamos, o seu único efeito, previsível demais para ser coincidência, foi desarmantelar os velhos cartéis e transferir todo o seu poder às Farc. Se isso é imperialismo americano, eu sou o Andrade Nery em pessoa.

Dentro dos EUA, até as crianças de escola sabem que há uma briga de foice entre o nacionalismo americano, tradicionalista e conservador, e o esquema globalista associado às fundações bilionárias, à intelectualidade enragée , ao movimento neocomunista e aos organismos administrativos internacionais. Juntar tudo no mesmo saco e catalogá-lo sob o rótulo geral de “imperialismo americano” só é possível no Terceiro Mundo, onde a população ignora tudo da política interna americana e pode ser facilmente ludibriada para desviar seu ressentimento das verdadeiras centrais globalistas e despejá-lo sobre os EUA. Patifes como Andrade Nery não fazem outra coisa na vida senão colaborar com esse gigantesco esquema de desinformação, no qual se depositam as mais altas esperanças de “reconquistar na América Latina o que perdemos no Leste Europeu”. Se para isso tentam parasitar as glórias da velha ESG, é porque sabem que só por meio do engodo podem manipular as Forças Armadas, transformando a “grande barreira” no “grande rombo” por onde a tropa inteira dos tradicionais inimigos do Brasil vem entrando para galgar todos os altos postos e cobrir-se de glórias usurpadas.

Durante anos fui, na grande mídia brasileira, o único jornalista empenhado em defender as Forças Armadas contra o bombardeio de calúnias, sabendo que este, no fundo, vinha das mesmas fontes da “nova doutrina estratégica” que ia ganhando terreno na ESG e por toda parte. Por ter assumido essa posição, sofri toda sorte de ataques e boicotes, recebi inumeráveis ameaças de morte, vi minha família ser difamada e perdi três empregos. Recebi duas condecorações, uma do Exército, outra da Aeronáutica. Senti que compensavam tudo aquilo. Não tenho estômago para assistir a esse espetáculo grotesco de um agente de influência comunista posar de advogado da honra militar enquanto eu faço o papel do malvadinho, do inimigo, do bandido. É absurdo demais, é insano demais. É o mundo de Pirandello, de Kafka, de Ionesco, o mundo da Rainha de Copas. É a realidade transformando-se em sátira de si mesma. Um engenheiro do rombo falando em nome da “grande barreira”! Valha-me Deus! Até que ponto este país vai consentir em deleitar-se no fingimento, na farsa, na burla geral?

***

PS – No terceiro parágrafo deste artigo, o leitor não deve enxergar nenhuma insinuação maldosa contra as prostitutas, essas boas moças que tanto alegraram a nossa juventude. Como diria o eminente Agamenon Mendes Pedreira, o jornalista mais sério do Globo , a única coisa em comum entre elas e os Andrades Nerys é que elas mudam de posição a pedido do freguês.