Promessa aos leitores

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 30 de agosto de 2007

Em entrevista ao Jornal da Unicamp, João Carlos Kfouri Quartim de Moraes, indagado sobre o atentado terrorista que matou o capitão americano Charles Chandler em 1968, respondeu: “Essa ação me valeu dois anos de condenação.” (v. aqui). Confiando nessa informação, repassei-a aos leitores do JB, e por isso fui acusado, pelo próprio Quartim, de publicar “uma mentira deslavada”. Em entrevista ao jornal eletrônico www.vermelho.org , reproduzida no site oficial do PT, o referido jura, agora, que não foi condenado por essa ação terrorista, mas por outro motivo. Não vou me perguntar se ele tem falta de memória ou falta de vergonha. Ambas essas deficiências aparecem sintetizadas na mentira esquecida, atribuída retroativamente a quem teve a imprudência de acreditar nela.

Ainda nas declarações à Unicamp, Quartim afirmou sobre o caso Chandler: “Boa parte dos indiciados morreu nos porões do Doi-Codi.”

Bem, da lista total de indiciados (publicada na Folha da Tarde de 28 de novembro de 1969), Carlos Marighela morreu em tiroteio de rua; Dulce de Souza foi trocada por um embaixador seqüestrado, viajou pelo mundo e voltou ao Brasil depois da anistia; Diógenes José Carvalho prosperou como presidente do Clube de Seguros da Cidadania e tornou-se tristemente célebre com o apelido de “Diógenes do PT”; João Leonardo da Silva Rocha foi para Cuba; Ladislau Dowbor continuou vivo, dando aulas na PUC de São Paulo; Onofre Pinto morreu em combate na fronteira com a Argentina, em 1974; Marcos Antonio Brás de Carvalho foi morto em tiroteio, na sua própria casa, em 1969; Pedro Lobo de Oliveira trabalhou como segurança do advogado Luís Eduardo Greenhalgh até pelo menos 1986, quando o vi pela última vez; João Carlos Kfouri Quartim de Moraes está vivo e, aparentemente, passa bem, pelo menos até ler este artigo. Só não sei de Manoelina de Barros, mas suspeito que ela também não “morreu nos porões do Doi-Codi”, pois seu nome não consta de nenhuma das listas de mortos e desaparecidos que circulam pela internet. Doravante – prometo aos leitores — darei a qualquer declaração de Quartim de Moraes a mesma quota de credibilidade que cabe à expressão “boa parte dos indiciados”.

Sugiro a mesma precaução aos militares brasileiros – poucos, espero – que aparentemente aceitam esse indivíduo como interlocutor confiável no “diálogo” que ele orquestrou entre as Forças Armadas e as organizações comunistas.

Afinal, esse diálogo – um novo nome para aquilo que antigamente se chamava infiltração — é composto de sorrisos e lisonjas, em público, mas entrecortado de ameaças veladas.

Às vezes a duplicidade não é só de palavras, mas de atos.

Matar prisioneiros inermes é um crime monstruoso em qualquer circunstância. Mas a liderança comunista tem-se esforçado para que aqueles que o cometeram sob as ordens do Estado brasileiro sejam objeto de castigo, enquanto os que fizeram o mesmo a mando de organizações terroristas são homegeados como heróis.

A última dessas homenagens glorificou a figura macabra de Carlos Lamarca – tão macabra quanto a de qualquer torturador do Doi-Codi –, que não só matou um prisioneiro amarrado, mas o fez em pessoa, com sucessivas coronhadas, esmagando-lhe metodicamente o crânio.

Naturalmente, esperar que crimes iguais tenham tratamento igual é extremismo de direita.

Palavras de um infiel

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 29 de agosto de 2007

Anos atrás, impressionado com a quantidade de autores nulos e desprezíveis a que Wilson Martins dera meticulosa atenção na sua História da Inteligência Brasileira , enviei a ele uma pilha de livros de Mário Ferreira dos Santos, sugerindo que remediasse, numa segunda edição, a falta de menções ao maior dos nossos filósofos. A resposta que recebi foi um atestado de leviandade: alegando que o assunto escapava à sua área de competência, Martins se eximia de cumprir o mais elementar dos seus deveres de historiador. Na edição aumentada do calhamaço, Mário continuou ausente. Melhor para ele, é claro: livrou-se de ser pesado na balança da inépcia.

Já eu não tive a mesma sorte. Abjurando do seu voto de abstinência filosófica, mas confirmando plenamente a razão que alegou para emiti-lo, o crítico paranaense se mete a resenhador e juiz de meus livros A Dialética Simbólica e O Futuro do Pensamento Brasileiro (São Paulo, É-Realizações, 2007), com resultados que me levam a conjeturar, entre espasmos de terror, o que teria ele podido entender da Filosofia Concreta ou de Pitágoras e o Tema do Número, que tive a ingenuidade de lhe remeter naquela ocasião.

Omitindo-se de tocar no conteúdo dos meus escritos, que lhe escapa por completo, Martins limita-se a condenar-lhes o tom “agressivo”, provando que a incapacidade de elevar-se à esfera das significações não imuniza contra a percepção das ênfases emocionais respectivas, como pode aliás confirmá-lo quem quer que já tenha gritado com um cãozinho doméstico ou mesmo com uma galinha.

No único ponto em que tenta discutir algo das minhas idéias, Martins não só escolhe um detalhe secundário, mas ainda lidando com tópico mais ao alcance do seu QI o melhor que ele consegue é produzir um formidável contra-senso: afetando desprezo pela distinção que faço entre verso e prosa, ele lhe opõe a de Gustave Lanson em L´Art de la Prose (1908) e, após citar esta última, assegura, com a cara mais bisonha do mundo, que “Olavo de Carvalho chega, por inesperado, a conclusões semelhantes” às do autor francês. O leitor jamais saberá se errei por discordar ou concordar e muito menos o que pode haver de tão inesperado no fato de duas opiniões concordantes concordarem.

Na verdade, não importa. O que Martins tem sobretudo a objetar aos meus ensaios é que estão imersos na ilusão pueril de poder contestar erros filosóficos, quando ele, Martins, desde o alto do seu Olimpo de serenidade e isenção, sabe que “não há idéias erradas” ( sic ), frase que ele atribui a um juiz da Suprema Côrte americana mas que, independentemente da autoria, é com certeza a mais idiota que li nos últimos quarenta anos (levando mesmo a suspeitar que o crítico, em segredo, alimente ambições presidenciais). Não havendo diferença substantiva entre verdade e erro, só restam, como critérios aceitáveis de julgamento filosófico, o bom-mocismo e a polidez, aos quais, é certo, falho miseravelmente.

Meses antes, eu já havia aqui condenado o primado das regras de polidez sobre a verdade, a moralidade, as leis – a apoteose do enfeite, em plena derrocada de tudo o mais. Martins não precisava, logo numa resenha dos meus livros, ter personificado tão bem o culto idolátrico à futilidade, que impera no Brasil de hoje. Mas, no fundo, estou felicíssimo de ter sido condenado como infiel a essa religião de socialites. Se para ser escritor neste país é preciso praticá-la, de bom grado deixo esse emprego para Wilson Martins e similares. Eu não o aceitaria por dinheiro nenhum deste mundo.

Roendo a Grande Barreira

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 27 de agosto de 2007

O segredo tenebroso por trás do manifesto em prol de Quartim de Moraes

Três menções nada honrosas mas inteiramente justas que, de passagem, fiz a João Carlos Kfouri Quartim de Moraes nos meus artigos suscitaram da intelectualidade comunista que domina as universidades neste país uma reação absurda, grotesca, desproporcionalmente histérica: um manifesto assinado por mais de seiscentos ativistas acadêmicos, que me acusam de caluniador, fascista, agente pago do governo americano e até “perseguidor político” do professor da Unicamp (maiores explicações no meu website, www.olavodecarvalho.org , sob o título “Resposta aos puxa-sacos de Quartim de Moraes”).

Os signatários enaltecem em termos candentes as virtudes intelectuais do referido, sem dizer quais são, é claro, mas contrastando-as com a total ausência delas na minha pessoa; e, sem responder a uma só das acusações que fiz a ele, ainda têm o imensurável cinismo de alardear que a mim, não a eles próprios, faltam argumentos para uma discussão séria do assunto.

O manifesto, publicado na internet , não só angariou automaticamente a adesão dos comunistas mais notórios, mas foi endossado pela direção nacional do PT e reproduzido no site oficial do partido, com as assinaturas dos srs. Ricardo Berzoini e Marco Aurélio Garcia. Tudo indica, portanto, que mexi num vespeiro, que o prof. Quartim é mais importante e mais intocável do que todos os outros esquerdistas que critiquei ao longo dos tempos.

Que é que há de tão notável, de tão sacrossanto no professor da Unicamp para que até o partido governante assuma as dores dele e consinta em participar de um empreendimento ridículo no qual nenhuma autoridade respeitável jamais se deixaria envolver?

O caso merece investigação.

Vejamos, em busca de pistas para a solução do enigma, a obra escrita do prof. Quartim. Para uma carreira acadêmica de quarenta anos, ela é pífia e composta quase que inteiramente de obras que ele apenas organizou, não escreveu (detalhe que sua bibliografia tem em comum com a do dr. Emir Sader). No conteúdo, a quase totalidade compõe-se de material de interesse exclusivo da militância (quando não de mera propaganda comunista), sem relevância cultural para pessoas cujo horizonte mental vá um pouco além disso. Olhando o conjunto, só uma conclusão é possível: a produção intelectual do prof. Quartim não pode ser nem mesmo motivo de orgulho pessoal, quanto mais de adoração geral. Logo, não foi por ter atacado um gênio, uma glória intelectual nacional, que meu artigo provocou tanta ira e escândalo.

Outra explicação possível é que feri os brios da tradição esquerdista, blasfemei contra o culto da “luta armada”. Mas esta hipótese também não funciona, porque já escrevi coisas piores contra outros ex-guerrilheiros e ninguém perdeu o sono por isso.

Resta a possibilidade de que as acusações em si sejam absurdas, infundadas e aptas a provocar uma justa revolta. Vejamos uma por uma. Tudo o que escrevi do prof. Quartim foi o seguinte:

1) Tendo sido um dos mandantes do assassinato do capitão Charles Chandler, ele é um assassino com sentença transitada em julgado, e chamá-lo de assassino é um direito elementar de qualquer cidadão brasileiro. Rotular isso de “calúnia” é inverter criminosamente o sentido do Código Penal, que define como tal a imputação falsa e não verdadeira de crime. Na letra e no espírito da lei, quem comete calúnia – contra mim – são os signatários do manifesto.

2) Quartim quer a aproximação entre os esquerdistas e os militares, mas com a condição de que os crimes cometidos pelos primeiros continuem esquecidos, se não premiados, e os dos segundos sejam investigados e punidos. Afirmei isso e repito, pois é traslado fiel de suas próprias palavras e atitudes.

3) Ao apontar como indício da desumanidade do regime escravagista no Brasil as constantes fugas de escravos, o prof. Quartim se omite de dizer que sinal idêntico se observa, em quantidade incomparavelmente maior, na debandada geral de refugiados do regime comunista, de cuja maldade descomunal o mesmo Quartim não diz jamais uma palavra, preferindo, em vez disso, fazer a apologia de Stálin (“Um outro olhar sobre Stalin”, http://www.revan.com.br/catalogo/0269c.htm ).

São afirmações óbvias em si mesmas, irrespondíveis. Que é que Quartim e seus seiscentos protetores têm a objetar a elas? Nada, absolutamente nada. Daí a raiva, o ódio impotente que, sem ter meios de agir, recorre a esse expediente pueril do “manifesto de intelectuais” para tentar impressionar pelo número e intimidar pela exibição de força.

A coleta de assinaturas, é claro, já virou palhaçada. A molecagem foi respondida com molecagem. Centenas de anônimos invadiram o espaço do abaixo-assinado, estourando com piadas escatológicas, ofensivas mas não imerecidas, o grotesco arremedo de seriedade com que seiscentos palhaços tentavam ludibriar o público.

Mas toda a trapaça que arriscaram é nada, em comparação com o ardil logo em seguida montado pela direção nacional do PT ao publicar sua versão do episódio (v. http://www.pt.org.br/sitept/index_files/noticias_int.php?codigo=2710 ). Registrando que minhas críticas ao prof. Quartim começaram em resposta a uma entrevista dada por ele ao site www.vermelho.org , o partido prossegue:

“Nessa entrevista, [Quartim] aventava a possibilidade de estabelecimento de novos vínculos entre setores das Forças Armadas e a esquerda brasileira em torno de um programa nacional e democrático… Diante dos mínimos sinais de que possa haver tal diálogo democrático entre a esquerda e os militares na atualidade, Olavo de Carvalho vocifera…”

Com evidente malícia, o PT omite, do seu relato, justamente a única frase do prof. Quartim que critiquei na sua entrevista: “Cometeríamos a pior das infidelidades à memória de nossos mortos se consentíssemos em pagar, pelas boas relações com os militares de hoje, o preço do esquecimento dos crimes cometidos pela ditadura.”

Essa frase é uma promessa explícita de continuar tratando de maneira desigual os crimes da esquerda e os da direita, isto é, premiando os primeiros e punindo os segundos. Ao omitir esse trecho, o PT tenta dar a impressão de que tudo ia às mil maravilhas no relacionamento amoroso entre os comunistas e as Forças Armadas. Coloquem a frase no lugar e verão que esse relacionamento não passava de uma fachada montada pela liderança comunista para enganar os militares e obter, deles, tudo em troca de nada. Com essas palavras fatídicas, Quartim deu com a língua nos dentes, evidenciando a verdadeira intenção dos comunistas, e eu, em vez de deixá-las passar despercebidas num site que só comunistas lêem, lhes dei um destaque medonho num jornal de circulação nacional.

Eis aí a razão da histeria que o meu artigo provocou. O prof. Quartim, em primeiro lugar, não é um “intelectual esquerdista” comum e sobretudo não é um membro do PT. É um dirigente do Partido Comunista – organização internacional infinitamente mais poderosa do que mil PTs. É regra básica do movimento comunista que a sua atuação se desenvolva sempre em dois planos simultâneos: um, notório e público; o outro, discreto e, em caso de necessidade, clandestino. O comando estratégico esta sempre, por definição, na parte discreta, mesmo em épocas de tranqüila liberdade. Quando uma figura de intelectual comunista aparentemente secundária e modesta como a do prof. Quartim se revela, de repente, mais valorizada do que o próprio presidente da República (a quem chamei até de parceiro de narcotraficantes sem que ninguém perdesse o sono por isso), o que o episódio torna claro é que o personagem tem alguma função essencial na parte discreta da estratégia comunista. Ele não é um garoto-propaganda como o nosso presidente ou uma Angela Guadagnin qualquer. Ele está no centro obscuro de onde emanam as grandes operações que, a longo prazo, buscam decidir o curso da História. Ele não está no show , brilhando ante os holofotes. Está no coração das trevas.

O papel específico do prof. Quartim no presente estado de coisas acabou sendo revelado pela própria nota do PT. Independentemente de outras funções que possa ter no esquema comunista, ele era o homem encarregado de restaurar a esquerda militar que existia antes de 1964, fazendo das Forças Armadas, ou de uma parcela delas, um instrumento da revolução continental. Ele se preparou longamente para isso, promovendo os estudos que depois publicou na série “A Esquerda Militar no Brasil” e em vários artigos de jornais e revistas. Que a infiltração comunista nas Forças Armadas conseguiu alguns resultados efetivos nos últimos anos, é a coisa mais evidente do mundo. A transformação da ESG em megafone da esquerda prova-o da maneira mais evidente. A passividade dos militares ante a escalada subversiva, que em épocas mais saudáveis eles já teriam interrompido com um simples pronunciamento de generais, mostra que a intoxicação comunista conseguiu, pelo menos, espalhar no meio castrense uma espécie de paralisia. Mas a conquista ainda estava longe de ter alcançado seus objetivos. A maioria absoluta dos militares brasileiros continua patriota e conservadora como o era em 1964. Ainda faltava muito para que a obra de engenharia concebida pelo prof. Quartim alcançasse o sucesso pretendido, pondo abaixo, mediante lisonjas e promessas, a “Grande Barreira” – como a chamou, num livro memorável, o general Agnaldo Del Nero Augusto — que sempre se opôs à transformação das Forças Armadas em instrumentos da subversão comunista. A Grande Barreira foi roída, mas não derrubada.

Ao evidenciar as intenções maliciosas e traiçoeiras com que Quartim e seus colaboradores tentavam seduzir os militares, coloquei em risco uma das operações mais delicadas e ambiciosas de infiltração comunista já tentadas nesse país. Eis o motivo do pânico que meus artigos espalharam entre os ativistas acadêmicos.

Confesso que, ao escrever aquelas menções ao prof. Quartim, eu ainda não tinha me dado conta de nada disso. Se violei um segredo tenebroso, foi inteiramente sem querer. Foi a própria reação desproporcional e psicótica dos comunistas que me fez notar que eu havia acidentalmente tocado em algum ponto muito secreto e muito dolorido do esquema revolucionário comunista. Deus escreve direito por linhas tortas.