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Carta aberta a Quartim de Moraes

Olavo de Carvalho

Mídia sem Máscara, 5 de dezembro de 2011

Nota:
Respondendo a Quartim de Moraes
Já faz dois dias que o fundador do MSM enviou esta carta, e o Vermelho.org ainda não deu sinal de vida. Aquele jornal eletrônico maoísta tem mais pressa em publicar insultos do que em respeitar o direito de resposta.


Carta aberta a Quartim de Moraes

Prezado senhor,

1. A Folha de S. Paulo não me “incluiu como colunista”, nem sequer como colaborador, se é que o senhor sabe a diferença. Apenas solicitou-me um artigo, único e isolado. Fique portanto o senhor tranqüilo, que o predomínio esquerdista nas páginas de opinião daquele jornal não foi abalado. Bem sei que o predomínio não basta para contentá-lo, já que é compatível com a presença esporádica de uma ou outra opinião divergente, miúda e apertada no meio de tantos luminares de esquerda que ali, como bem assinalou o seu correligionário Caio Navarro de Toledo, ocupam espaço mais que confortável. Ao protestar contra essa presença, o senhor revela, acima de toda possibilidade de dúvida, que só ficará satisfeito quando o mero predomínio se transmutar em domínio. Como o próprio Karl Marx, segundo depoimento de sua empregada e amante, fazia uns ritos estranhos nos quais acendia velas, não será vexame nenhum o senhor acender duas a Lúcifer e Belial para que o seu sonho se realize, seja com o nome de “Marco Regulatório da Mídia” ou qualquer outro.

2. O rótulo de “extremista”, que o senhor cola na minha testa, aplica-se mais propriamente à sua. Isto não é uma opinião, muito menos um insulto: é um fato objetivo empiricamente verificável. Extremista é, por definição, o sujeito que, na luta para impor suas preferências políticas, chega a medidas extremas. A medida mais extrema que existe, depois da qual o extremista não tem mais para onde avançar, consiste em matar o adversário. O senhor foi dirigente de uma organização que se dedicava precisamente a isso, ou seja, não somente legitimou em teoria o assassinato político, mas aprovou ao menos tacitamente a sua prática em casos concretos. Da minha parte, nunca fiz uma coisa nem a outra. Limito-me a falar contra certos partidos e personagens, sem propor contra eles nenhuma medida mais drástica do que a sua merecida desmoralização intelectual, por vezes também moral. Por que seria eu então o extremista, e não o senhor? Por que desmantelar o senso das proporções mediante uma inversão e um exagero forçado? Por que, aliás, autodesmoralizar-se mediante o apelo a um recurso estilístico tão pueril e de mau gosto e depois ainda alegar que quem o injuria sou eu e não o senhor mesmo? Se o senhor não tem nenhum respeito por si mesmo, respeite ao menos o título universitário que lhe deram.

3. O senhor diz que adquiri notoriedade “rosnando insultos contra a esquerda”. Não senhor. Adquiri notoriedade com uma polêmica em torno de Aristóteles, na qual levei a melhor contra altos sacerdotes do establishment universitário nacional sem tocar nem de raspão em matéria política. Foi esse episódio que me colocou nas primeiras páginas da “grande mídia” e levou O Globo a me contratar como colunista, fazendo da minha obscura pessoa, sem que eu lhe pedisse nem o desejasse especialmente, uma figura de certa projeção nacional. Posso, depois disso, ter proferido julgamentos que seus alvos, não sabendo o que lhes responder, fingiram considerar injuriosos. Se houvesse um pingo de sinceridade na sua alegação de injúria, teriam me processado, coisa que nunca fizeram. Aqueles julgamentos, aliás, jamais foram simplesmente rosnados: foram fundamentados com sobra de razões, às quais os pretensos insultados jamais souberam responder exceto com rotulações pejorativas desacompanhadas de qualquer argumentação lógica ou prova factual que as sustentasse, exatamente como o senhor faz no seu artigo. Por vezes esses esperneios histéricos vinham subscritos por milhares de adesões solidárias, na esperança de que o número de signatários compensasse a miséria de seus argumentos. Digo “miséria” por condescendência, porque aquilo que não existe não chega sequer a ser miserável.

4. Por fim, não me cabe defender a Folha, mas há três pontos no seu artigo que não podem passar sem correção.

Primeiro: Não é verdade que a mudança de orientação daquele jornal tenha sido uma manobra maquiavélica do “Sr. Frias”, como o senhor o chama, para adaptar-se aos ventos novos que então sopravam de Brasília. Aquela mudança reflete somente a troca de cabeças na direção do jornal e, logo depois, na presidência da empresa inteira. O senhor aí mistura, sob um mesmo nome, dois personagens. Na sua imaginação, Octávio Frias e Octávio Frias Filho são a mesma pessoa, unidade substancial de genitor e gerado que só tem precedente, que eu saiba, na teologia. O velho Frias era, de fato, um reacionário de marca, mas o filho dele é um esquerdista soft, esquerdista demais para o meu gosto, soft demais para o seu. O jornal simplesmente adaptou-se à orientação do novo diretor, não a uma mudança de identidade política do velho.

Segundo: Por mais que Frias pai gostasse do governo militar, é falso que transformasse seus jornais num reduto de direitismo militante. Ao contrário, respeitava a autonomia da redação ao ponto de manter nos postos de direção e chefia dos vários jornais da empresa os mais notórios esquerdistas, como Cláudio Abramo, Celso Kinjô, Jorge de Miranda Jordão, Múcio Borges da Fonseca e não sei mais quantos.

Direitistas nos altos postos, ali só houve três. O primeiro foi Jean Mellé, que já dirigia o Notícias Populares quando este pertencia ao então deputado Herbert Levy e foi mantido no cargo, como exigência contratual, quando a Empresa Folha da Manhã S/A comprou o jornal. Notícias Populares era um jornal de crimes, espetaculoso ao ponto do ridículo, com uma redação minúscula e sem qualquer relevância política. (V. Nota sobre Jean Mellé no final desta carta.)

Depois de Mellé vieram Antonio Aggio Júnior e Sérgio Paulo Freddi, colaboradoradores ostensivos dos órgãos de repressão e protegidos do governo militar, devendo a esses dois fatores e não a seus escassos talentos a ascensão que tiveram na empresa. Ascensão modestíssima, no entanto. Frias (pai) começou por tirá-los da redação principal, a do chamado “Folhão”, onde representavam um perigo imediato, e isolá-los na chefia de um jornal regional de circulação irrisória, o Cidade de Santos. Quando esse jornaleco fechou, foram chamados de volta a São Paulo, mas, de novo, encostados numa publicação menor, a vespertina Folha da Tarde, onde substituíram os esquerdistas radicais que, sob as bênçãos do Sr. Frias (pai), a haviam dirigido até então. A dupla assumiu o cargo quando o jornal, também de circulação mínima, já estava agonizante. Idêntica mudança de orientação ideológica aconteceu simultaneamente, e também às pressas, em outro jornal anêmico da empresa, a Última Hora, cuja direção Jean Mellé acumulou com a de Notícias Populares por um período fugaz até à extinção daquele diário. A Gazeta, que a empresa também havia comprado, foi entregue a um esquerdista histórico, Múcio Borges da Fonseca.

Fracos, moribundos, sem leitores, a Folha da Tarde e a Última Hora foram ossos secos que o velho Frias atirou aos cães governistas, para aplacá-los num momento de crise e temor subseqüente ao AI-5, preservando ao mesmo tempo a relativa independência do seu jornal principal, o “Folhão”, que continuou sob a direção de Cláudio Abramo e superlotado de esquerdistas na redação.

Como arremedo de prova do direitismo radical daquele jornal na época, o senhor menciona a presença do prof. Plínio Correia de Oliveira entre os articulistas da sua página de opinião, como se um mero colaborador ocasional, no meio de tantos outros, pudesse por si só definir a orientação ideológica de toda uma publicação. Muito mais significativas que os artigos de colaboradores externos são, em qualquer jornal, as colunas fixas, nas quais então se destacavam, entre outros esquerdistas notórios, Lourenço Diaféria, Jânio de Freitas, Newton Carlos, Flávio Rangel, Ruy Castro, Samuel Wainer, Antônio Callado e Paulo Francis (muito antes da virada liberal). O senhor não deveria dar palpites sobre jornalismo se não conhece sequer a distinção entre colaboradores e colunistas, que o senhor confunde por duas vezes.

Terceiro ponto: Que a Folha emprestasse carros ao Doi-Codi, é possível, mas, num momento em que a pressão do governo ia assumindo as feições de ameaça direta, emprestar uns carros à polícia política ou ceder aos colaboradores dela duas publicações falidas, enquanto os esquerdistas permaneciam ilesos na redação do jornal principal, foi cálculo que, visto de hoje, parece antes ter obedecido ao princípio de entregar os anéis para salvar os dedos. Se mostra uma certa esperteza oportunista da parte do velho Frias, o beneficiário maior dela não foi, decerto, o governo militar: foram aqueles que sobreviveram nos seus postos, com seus altos salários, em vez de ser reduzidos ao mutismo impotente, à marginalidade ou à condição de não-pessoas, como ocorre, nos países comunistas, com todos os inimigos do regime.

Ademais, o único índício a confirmar o empréstimo dos carros veio numa carta do ativista político Ivan Seixas, que, recusada pela Folha, recebeu ampla divulgação na revista Carta Maior.

Diz ali Seixas: “A Folha empregava carros para nos capturar e entregar para sessões de interrogatórios, como sofremos eu e meu pai. Ninguém me contou, eu vi carro da Folha na porta da Oban/Doi-Codi.”

Astúcia proposital ou ato falho freudiano, a redação ambígua confere ao depoimento um valor que não tem. Na primeira sentença, quem foi capturado pela Folha e entregue para interrogatórios? “Nós.” Quem é “nós”? O fim da frase sugere que se tratava do próprio Seixas e de seu pai: “entregar para sessões de interrogatório, como sofremos eu e meu pai”. Na sentença seguinte, porém, Seixas dá com a língua nos dentes, afirmando que “ninguém me contou, eu vi carro da Folha na porta da Oban/Doi-Codi”. Ora, se ele próprio houvesse sido transportado num carro da Folha, não veria o veículo estacionado na porta, mas o veria desde dentro, em movimento. Se viu o carro da Folha na entrada do Doi-Codi, é que chegou ali trazido por outro meio de transporte. Com toda a evidência, Seixas nem foi levado àquele órgão policial em veículo da Folha nem cita o nome de um só prisioneiro que o tenha sido: em vez disso, redige a frase ambígua que passa ao leitor uma impressão logo desmentida na frase seguinte.

Não digo que Seixas mentisse de caso pensado, nem nego que fatos como os alegados possam ter acontecido, mas um depoimento vago e contraditório não serve de prova do que quer que seja. O tom de certeza absoluta com que o senhor dá a coisa por provada é, no mínimo, sinal de leviandade.

Quase encerrando esta gentil mensagem, pergunto, sem esperança de uma resposta: Por que o senhor, mencionando a minha presença meteórica na Folha como prova do direitismo crônico do jornal, puxa discussão com o anônimo autor do editorial de 2 de novembro, em vez de fazê-lo comigo? E foi por inépcia literária ou pseudo-astúcia de moleque que nas linhas finais o senhor deu a impressão de falar de mim, quando estava apenas respondendo àquele fracote? É do seu costume bater em ursinho de pelúcia para pensar que está batendo num leão?

Agora, encerrando mesmo, faço-lhe um convite que é também um desafio, ou desafio que é também um convite. Se o senhor tem alguma diferença comigo que possa ser resolvida sem a minha supressão do mundo dos vivos, venha passar uns dias na Virginia e tirar o assunto a limpo. Discutiremos a coisa exaustivamente, gravaremos tudo e colocaremos em circulação no Vermelho.org e no meu site Mídia Sem Máscara. Caso o senhor aceite, prometo pagar do meu próprio bolso a sua passagem, mais a de um(a) acompanhante e todas as despesas de hospedagem em hotel modesto mas decente. Colocarei ainda um carro à sua disposição, sem ônus da sua parte exceto o consumo de gasolina. A região é linda e dará ao senhor a oportunidade altamente pedagógica de contemplar em pessoa os horrores do capitalismo. Não diga que os EUA não deixam comunistas entrarem no território. Deixaram até entrar um na presidência.

Nota — Mellé, que com Aggio e Freddi compunha para mim na época um trio de bêtes noires, era um exilado romeno, que vivera sob o regime Ceaucescu e tinha excelentes razões — que então eu não conhecia — para odiar comunistas. As palavras candentes com que o senhor verbera as crueldades da ditadura brasileira sugerem-me que deveria fazer uma comparação entre o Doi-Codi e o “centro de reeducação” de Pitesti, na Romênia natal de Jean Mellé, tal como descrito nos depoimentos de Dumitru Bacu e do pastor Richard Wurmbrand (v. http://www.scribd.com/doc/2915282/The-AntiHumans-by-Dumitru-Bacu-About-ReEducation-in-PITESTI-ROMANIA-Mind-Control-Horror e http://www.scribd.com/doc/31067286/Marx-and-Satan-Richard-Wurmbrand). Nenhum prisioneiro do Doi-Codi teve jamais seus dentes arrancados a sangue frio, um a um até o último, e isto não para obter alguma declaração dele e sim de outro prisioneiro que, amarrado, era obrigado a presenciar a cena e acusado, aos berros, de ser o responsável por ela. Isso era prática usual em Pitesti, e aplicada especialmente em religiosos de confissões diferentes: arrancavam os dentes de um padre ortodoxo diante dos olhos de um rabino, depois os do rabino diante de um pastor protestante etc. etc. O senhor, que é abertamente um apologista do estalinismo (v. http://www.revan.com.br/catalogo/0269c.htm), acha tudo isso um preço módico a ser pago pelo advento de um reino da justiça que jamais veio nem virá, mas se escandaliza de que eu considere a nossa ditadura militar um preço módico que a nação pagou para evitar que viessem a ocorrer entre nós horrores semelhantes, que ultrapassam a denominação genérica de “tortura” e entram no campo do puro satanismo militante.

A opção pela farsa

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 22 de agosto de 2008

O traço mais saliente e característico da classe intelectual no Brasil de hoje (quero dizer, dos últimos trinta anos) é o seu espírito de solidariedade grupal mafiosa, muito mais coeso, ciumento e impenetrável que o das corporações similares em outros países.

Vários fatores produzem esse fenômeno.

Um deles é a fusão indissolúvel do ofício intelectual com a militância partidária (esquerdista, é claro). Algo disso existe um pouco por toda parte, mas não em dosagem brasileira. Neste país a ascensão de um professor na escala acadêmica depende em quase nada das suas realizações intelectuais – em geral nulas ou desprezíveis – e em quase tudo da posição que ocupe na hierarquia partidária ou pelo menos nas afeições da liderança esquerdista. Carreiras como as dos srs. Emir Sader, Quartim de Moraes, Fernando Haddad, Luis Felipe de Alencastro e tantos outros seriam inexplicáveis sem isso. O dever de fidelidade partidária transmite-se, pela convivência estreita, à comunidade acadêmica, infundindo-lhe aquele sentimento de unanimismo e de autoproteção corporativa, que ao chamado da liderança mobiliza num instante um por todos, todos por um, com homogeneidade quase militar.

Uma segunda causa é a intimidade promíscua – também muito maior do que em outros países – de mídia e universidade, esta ditando as normas do aceitável e do inaceitável, aquela seguindo-as fielmente e, em troca, influindo na ascensão e queda das estrelas acadêmicas, produzindo do nada prestígios intelectuais tão formidáveis quanto incompreensíveis e condenando ao ostracismo quem caia no desagrado do mandarinato provinciano.

Mas, sem dúvida, o fator mais decisivo que aproxima e gruda esses sujeitos uns nos outros como uma colônia de ostras é a secreta consciência de sua própria inépcia, que rói cada um por dentro e o impele a buscar na aprovação do grupo um talismã contra os riscos da aventura intelectual solitária. Sim, o que o típico intelectual brasileiro de hoje mais teme, o que ele evita como à peste, é embrenhar-se sozinho na busca da verdade, desbravando territórios desconhecidos, sem que a bênção maternal da comunidade o venha tranqüilizar assegurando-lhe que não está louco nem raiando perigosamente alguma heresia.

Curiosamente, esse apego uterino, esse gregarismo pastoso de mentes atrofiadas é vendido ao público – e aos próprios membros do grupo – como se fosse a mesma coisa que a colaboração acadêmica, sem que aparentemente ninguém perceba a distância imensa que separa essas duas coisas, tão distintas entre si quanto um rosto humano e uma caricatura infernal.

É verdade nenhum progresso do conhecimento se alcança sem o diálogo, sem que as intuições pessoais, mesmo fundadas em investigações profundas, se exponham ao exame da comunidade erudita, conhecedora do status quaestionis. Mas não pode haver esse tipo de diálogo senão entre inteligências personalizadas, cada qual possuidora de um universo mental próprio, conquistado na audácia da busca solitária, sem o suporte consolador das crenças coletivas.

Isso simplesmente não existe – ou não existe mais – no meio intelectual brasileiro. Mentalidades reduzidas à impotência pelo vício do gregarismo não precisam nem podem entrar em diálogo, porque nada têm a trocar senão o igual pelo idêntico, o usual pelo costumeiro e o banal pelo ordinário. O que fazem não é diálogo, é monólogo coletivo. Tão plana, vulgar e torpe é a uniformidade das suas idéias, que às vezes têm de se apegar a miúdas diferenças de estilo ou de vocabulário – senão a alguma ciumeira pessoal, que nunca falta – para dar um arremedo de colorido ao cinzento ritual diuturno da confirmação recíproca. Chamar esse ambiente de medíocre seria louvá-lo imerecidamente. Mediocridade é apenas um padrão estatístico, distribuído anonimamente na multidão. Quando os medíocres se agregam e se condensam numa corporação organizada, o peso comum se adensa e o conjunto acaba descendo muito abaixo da média. O brasileiro comum é muito, muito mais inteligente do que os sessenta conselheiros acadêmicos do sr. presidente da República, autodenominados coletivamente “os intelectuais” para dar a entender que são os únicos que existem. O homem comum sabe que o problema mais grave do Brasil é a criminalidade. “Os intelectuais” não sabem. O primeiro aproveita para falar do assunto cada oportunidade que as pesquisas lhe dão. Os segundos reúnem-se com o sr. presidente para passar metodicamente em revista os males nacionais, e nem um único dentre eles se lembra de mencionar, mesmo por alto, que cinqüenta mil brasileiros morrem assassinados por ano (parece que, como meio de glorificação do governo pelos intelectuais da côrte, o crime não compensa).

Um lado especialmente deplorável do fenômeno é que, como a busca da segurança psíquica é às vezes mais forte do que os dois motivos políticos acima citados, o esprit de corps da submediocridade acadêmica se estende, por automatismo, até aos membros não esquerdistas (ou não muito esquerdistas) da comunidade. Não podendo aderir ativamente à política dominante, eles partem para a adesão passiva, refreando toda conduta verbal que dê sinal de direitismo, omitindo qualquer citação a autores tidos por inconvenientes ou, nos momentos extremos, assinando um ou outro manifesto de esquerda, naturalmente pelos motivos mais apolíticos que lhes ocorram no momento.

O mais irônico de tudo é que a própria miséria mental do grupo lhe dá uma certa autoconfiança ad hoc, na medida em que, eliminada toda investigação pessoal da verdade, o que resta no ar é um feixe de certezas coletivas reconfortantemente indiscutíveis. Com base nessa confiança, cada um dos integrantes do grupo está apto a posar de autoridade cientifica perante seus alunos, aos quais impõe opiniões com tanto mais facilidade quanto mais convencido esteja de personificar, como membro da comunidade iluminada, a verdade, o bem, o justo e o belo, isto é, precisamente aquelas coisas que, segundo as crenças marxistas e desconstrucionistas ali vigentes, não existem de maneira alguma e foram apenas inventadas pela burguesia para ludibriar os pobres.

O que não é de estranhar é que, sendo toda a sua segurança psicológica baseada num amálgama das mentiras existenciais de seus membros, uma comunidade tão coesa, tão ciosa da sua própria importância imaginária, viva assombrada pelo temor da decomposição e se torne tanto mais medrosa quanto mais escorada num sistema rígido de autodefesas neuróticas, acreditando enxergar perigos apocalípticos ao menor sinal de que alguém lhe fez alguma censura fora dos padrões admissíveis da autocrítica controlada, corporativa e comunista.

Por várias vezes tive a oportunidade de ser pessoalmente o fator aterrorizante que sacudiu até aos alicerces a autoconfiança da troupe, ocasiões nas quais tive o desgosto de ver centenas ou milhares de veneráveis anciãos e graves senhores de meia-idade correndo, como crianças assustadas, para defender a comunidade ameaçada pelo total de um (hum) atacante.

Houve época em que eu ria desse espetáculo. Hoje sei que não é coisa para rir. A farsa acadêmica brasileira não expressa só a pobreza intelectual assustadora da elite ensinante, que, por si, basta para explicar o desastre da educação nacional. Ela põe à mostra também uma miséria humana sem fim, já que ninguém opta pelo fingimento pomposo senão para esconder o desprezo que, no fundo, sente por si mesmo – e no Brasil acadêmico essa opção é o único tipo de vida intelectual que resta.

Direto da sarjeta

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 27 de março de 2008

Ao longo de mais de 20 anos a esquerda monopolizou tão eficazmente o espaço político brasileiro que, para não dar na vista, teve de nomear para o papel de direita ad hoc uma de suas próprias subdivisões internas, o PSDB, no instante mesmo em que Fernando Henrique Cardoso e Cristovam Buarque, então os mais destacados mentores intelectuais desse partido e do PT respectivamente, reconheciam não haver entre as duas agremiações nenhuma diferença ideológica ou estratégica substantiva, apenas disputa de cargos.

Se na eleição de 2006 o sr. Geraldo Alkmin colaborou com a farsa, prestando-se ao papel de concorrente inofensivo e recusando-se a incomodar o adversário com perguntas sobre suas ligações com gangues de narcotraficantes e seqüestradores, na de 2002 não houve nem isso, apenas um torneio de saudosismo esquerdista, em família, entre quatro patetas que não podiam falar nas guerrilhas dos anos 60 sem lágrimas nos olhos.

No domínio da cultura, então, a hegemonia esquerdista chegou a excluir totalmente, dos currículos universitários, das estantes de livrarias e dos suplementos culturais, qualquer menção a autores que não portassem o nihil obstat dos comitês centrais. Duas gerações de estudantes brasileiros foram submetidos a um regime de privação intelectual quase carcerária, baixando o padrão geral de exigência até àquele nível de miséria extrema em que tipos como Emir Sader e Quartim de Moraes podiam ser impostos como modelos supremos de intelectuais sérios sem que ninguém enxergasse nisso nada de doente.

Essa situação, que se prolongou por tempo suficiente para que o público se tornasse insensível à sua anormalidade, não teria como deixar de refletir-se no jornalismo. Por volta de 1995 já não havia nas redações um só direitista assumido, conservador. No máximo um ou dois “liberais” que recusavam com horror a classificação de “direitistas”.

Nesse ambiente, minha presença era tão singular e extravagante, que alguns leitores chegavam a negar minha existência, tomando-me pelo banqueiro Olavo Monteiro de Carvalho ou por pseudônimo de um milionário carioca, de vez que, na fantasia reinante, ninguém desprovido de um banco próprio ou de uma conta na Suíça poderia ser tão hostil aos belos ideais do socialismo.

Nos últimos anos, a situação mudou um pouquinho. Um pouquinho, quase um nada. Umas quantas opiniões que antes eram só minhas passaram a ser defendidas também por Diogo Mainardi, Reinaldo Azevedo e aproximadamente uma dúzia de blogs e jornais eletrônicos.

O aparecimento dessa leve irregularidade numa superfície que se desejaria uniformemente lisa e sem mácula foi o bastante para que um estado de alarma e de indignação heróica se espraiasse entre os defensores do pluralismo e da tolerância democrática.

Um desses baluartes da liberdade de opinião, o sr. Fernando Barros e Silva, escrevendo na Folha de S. Paulo, assegura que nós, os intrusos, somos despudoradamente interbajuladores, defensores de nossos privilégios, praticantes do compadrio, boçais, cínicos, exibidores de falsa cultura, desprezadores do Brasil, preconceituosos, racistas, antinordestinos e misóginos. Tudo isso num artigo que não chega a vinte linhas, no remate das quais ele ainda encontra espaço para acrescentar que o nosso método – sim, o nosso, não o dele – consiste na truculência verbal, no lixo retórico e, last not least, na “cultura da sarjeta” (sic).

Lendo isso, sinto-me tão culpado, tão envergonhado da minha baixeza inominável, que nem encontro palavras para responder ao sr. Barros. Recorro, pois, às de um meu companheiro de “cultura da sarjeta”: Fernando Pessoa. Num poemeto delicadamente intitulado “Ora, porra!”, ele assim se referiu aos Barros e Silva da sua época e nação:

"Então a imprensa portuguesa é 
que é a imprensa portuguesa? 
Então é esta merda que temos
que beber com os olhos?
Filhos da puta! Não, que nem
há puta que os parisse".

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