O sonho de um mundo “sem ideologias”, onde tudo seja resolvido por meio de critérios “pragmáticos” e “de mercado”, orienta hoje não só muitas decisões da classe empresarial mas a política externa de vários países e boa parte das opiniões em circulação no debate público sobre os mais variados assuntos.
Para muita gente, o pragmatismo supra-ideológico – chamemo-lo assim, em falta de outro nome — adquiriu estatuto de sabedoria convencional ao ponto de que já quase ninguém percebe que ele próprio é uma ideologia, e aliás uma das mais grosseiras que o mundo já conheceu.
A estrutura interna do pensamento ideológico caracteriza-se pela compressão forçada da realidade para dentro de uma única dimensão, portanto pela recusa ou proibição de examinar os fatos e aspectos que não caibam no padrão escolhido.
Em geral os fundadores de uma ideologia sabem que ela é objetivamente falsa. Não a defendem porque crêem que ela descreve acuradamente a realidade, mas porque esperam que, se um número suficiente de pessoas acreditar no que dizem, a conduta delas se tornará mais previsível e manipulável na direção desejada. Toda ideologia é nesse sentido uma profecia auto-realizável: ela visa a criar as próprias condições sociais e psicológicas que lhe darão retroatiovamente uma aparência de veracidade. Mas no fundo a ambição dos ideólogos fundadores é transcender a distinção de aparência e realidade, fazendo com que esta copie tão bem aquela que se torne indiscernível dela e acabe por se transformar nela efetivamente. Essa ambigüidade inata do pensamento ideológico escapa geralmente à quase totalidade dos seus aderentes e seguidores, sendo uma espécie de segredo originário bem guardado pelos fundadores e só acessível, em cada geração, a uma reduzida elite de seus discípulos mais talentosos e clarividentes.
Todo ideólogo – inclusive o fundador – é por excelência um manipulador, mas, por isso mesmo, está sujeito a ser manipulado por seus adversários, na medida em que estes, sabendo de antemão como ele interpretará (ou fingirá interpretar) o curso dos acontecimentos, podem alimentá-lo de informações pré-selecionadas para induzi-lo a conclusões que sejam as mais interessantes para eles, não necessariamente para ele.
Toda ideologia é assim um canal de desinformação, mas com mão dupla, no qual o desinformante está sujeito a ser ele próprio desinformado. Isso acontece quando o ideólogo, no afã de persuadir os outros, se deixa ele próprio persuadir pela sua ideologia, esquecendo-se de que ela era apenas um instrumento de ação, na origem, e passando a tomá-la como critério de explicação da realidade. No corpo total dos adeptos e propugnadores de uma ideologia, evidentemente os mais sujeitos a cair nesse erro são os círculos “exteriores” mais distantes do fundador, que já receberam a ideologia pronta e, não tendo participado da sua criação, são geralmente insensíveis à sua ambigüidade originária. O risco é maior se nem mesmo receberam a doutrina da sua fonte inicial, mas de segunda mão, como crença usual infusa na cultura ambiente. Assumindo como verdade objetiva a simplificação compressiva originária, tornam-se assim maximamente previsíveis e manipuláveis.
No caso da ideologia aqui mencionada, o pragmatismo supra-ideológico, a ironia da situação é que um dos seus mais fortes atrativos retóricos é o apelo à “maturidade”, ao “realismo”, à “política de resultados” e à “objetividade dos fatos” (com forte respaldo “tecno-científico”) em oposição ao “romantismo” e à “fé irracional” que, segundo essa perspectiva, seria a característica eminente das ideologias em geral – isto é, porca miséria, das outras ideologias. Por meio desse viés o pragmatista supra-ideológico se torna o mais ingênuo e manipulável dos ideólogos no instante mesmo em que se imagina imunizado contra ilusões ideológicas.
Na medida em que encara o mundo sub specie mercatus , ele fecha os olhos para todas as motivações humanas que não possam ser explicadas pelo cálculo econômico racional, tornando-se assim incapaz de prever as ações de tipos como os aiatolás muçulmanos, os generais chineses ou os homens da KGB. Quando se defronta com essas ações, ilude-se ao ponto de desprezá-las como irracionais, primitivas e destinadas ao fracasso, com o que ajuda esses seus adversários a passar por fracos para mais facilmente derrotá-lo.
É claro que ao me referir a cálculo econômico não quero dizer que o pragmatista supra-ideológico explique tudo por fatores econômicos (se bem que ele o faça até com freqüência), mas que o tipo de raciocínio que ele emprega em todas as áreas de investigação e ação ao seu alcance — a diplomacia ou a guerra, por exemplo — seja estruturalmente o mesmo que emprega em economia, fundado no egoísmo racional dos motivos. É por isso que ações de longuíssimo prazo, que transcendem a expectativa de vida dos personagens envolvidos, não lhe parecem ter realidade em si mesmas, mas ser apenas construções ideológicas erigidas em cima de interesses mais imediatos e palpáveis – o que significa que ele não as compreende de maneira alguma. As derrotas vexaminosas do Ocidente na competição com o movimento comunista internacional – cada vez mais patentes por trás da ilusória “queda da URSS” – ou a impotência européia ante a invasão islâmica são os exemplos mais notórios.
O pragmatismo supra-ideológico não só é uma ideologia, mas é mesmo uma das mais enganosas, já que a maior parte de seus seguidores lhe ignora totalmente as origens e por isso mesmo dificilmente se encontra entre eles um manipulador consciente: são praticamente todos vítimas da ilusão que propagam. Embora leve o nome da escola filosófica fundada por Charles Sanders Peirce e William James, essa ideologia tem pouco a ver com ela; e, embora seja hoje moeda corrente entre os liberais, ela se origina no que pode haver de mais oposto ao liberalismo, isto é, a tecnocracia positivista com seu sonho de substituir a vida política por uma administração científica centralizada. Os pragmatistas supra-ideológicos são tão inconscientes das implicações reais da sua escolha que nem percebem que a hegemonia da racionalidade econômica sobre os fatores ditos ideológicos e “irracionais” da vida social não traria jamais a vitória da liberdade de mercado, mas a expansão ilimitada da administração estatal.
Um mundo sem ideologias é o mesmo que um mundo sem política – é o projeto da “sociedade administrada”, isto é, totalmente controlada, para o qual tantos liberais contribuem inconscientemente por meio de sua adesão ao pragmatismo supra-ideológico, que deveriam antes combater por todos os meios ao seu dispor.
O discurso ideológico é, no fundo, nada mais que retórica – o tipo de pensamento que não é voltado para o conhecimento, mas para a ação imediata. A persuasão retórica é absolutamente indispensável à ação prática, na esfera privada como na vida pública. Querer eliminá-la é tão utópico – e tão ideológico – quanto querer suprimir o mercado.
O mal não está na mera existência do pensamento ideológico, nem mesmo na sua onipresença na vida social. O mal aparece quando as esferas de atividade que deveriam ser orientadas por formas de pensamento mais exigentes e mais voltadas à descoberta da verdade se deixam infectar de ideologismo, como acontece, no Brasil, com a quase totalidade do que se produz sob o rótulo de “ciências sociais”. Mas a adesão mesma de tantos acadêmicos e consultores empresariais ao pragmatismo supra-ideológico é um sintoma desse mal.