Agora é tarde

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 06 de março de 2008

Muitas vezes um escritor, se é escritor genuíno e não apenas um vendedor de si mesmo, tem de escolher entre dizer a verdade e ser persuasivo. Isso acontece quando a verdade que ele encontra é tão inusitada e chocante que não pode amoldá-la nem aos hábitos mentais nem às preferências do público. Se ademais ela é também complexa e obscura, tudo o que ele pode fazer é tentar verbalizá-la o mais fielmente possível, sem buscar ser aprovado pela maioria ou compreendido por todos. Ele terá então de escrever só para as pessoas inteligentes e honestas, que não são abundantes em parte alguma do universo — e as demais o considerarão, na mais branda das hipóteses, um pedante empenhado em humilhá-las.

Nas últimas décadas, creio ter sido o único escritor brasileiro que viveu essa experiência, pois os outros, repetindo mensagens previamente aprovadas pelo consenso do seu grêmio e da platéia, podiam esmerar-se em tornar esse alimento costumeiro cada vez mais fácil de absorver, ao ponto de derreter na boca sem ser preciso mastigá-lo.

A verdade que encontrei é dura, temível e repugnante: há uma revolução comunista em marcha no continente, prometendo reencenar aqui a tragédia do Leste europeu, e fazê-lo sob os mesmos pretextos edificantes usados lá. Na implementação desse projeto macabro colaboram centenas de partidos políticos, ONGs, quadrilhas de narcotraficantes, seqüestradores e assassinos, bem como vários governos da América Latina, incluindo o nosso. É a maior articulação revolucionária que já se observou no mundo, e a entidade que a promove, o Foro de São Paulo, permaneceu durante dezesseis anos sob o manto do segredo protetor, estendido sobre ele pelo cinismo da desconversa governamental e pela solicitude abjeta da mídia cúmplice.

A expressão “verdade inconveniente” foi tão prostituída pelo sr. Al Gore que reluto em usá-la, mas não há outra para explicar a tempestade de ódio que se abateu sobre mim por ter contado essas coisas. Se os políticos que lucraram com o silêncio, e os chefes de redação que tentaram calar a minha boca, e os leitores que me insultaram, e os presumidos experts em América Latina que usaram o peso da sua autoridade como tampão para impedir o vazamento dos fatos tiverem algum dia de me pagar reparações, sem dúvida me tornarei milionário um dia antes de ficar senil.

Mas o dano que sofri dessas criaturas é nada, rigorosamente nada, em comparação com o mal que fizeram ao seu país e a toda a América Latina. Agora, que a verdade rejeitada finalmente se impôs aos olhos de todos e os seus detalhes escabrosos começam a saltar incontrolavelmente como pulgas, o continente está em pé de guerra e o nosso governo já tomou posição, provando que é, como eu sempre disse que era, aliado incondicional das Farc, de Hugo Chávez, da ditadura cubana e, enfim, de tudo o que não presta.

Ao longo desses anos, dezenas de milhares de pessoas morreram sob o impacto da criminalidade crescente, do narcotráfico, das guerrilhas — e a maré montante da violência revolucionária, longe de arrefecer, ameaça agora subir mais alto ainda, com a eclosão da guerra longamente preparada pelo sr. Hugo Chávez e pelas Farc, tramada nos encontros do Foro de São Paulo sob o sorridente patrocínio do nosso presidente da República.

Tudo isso poderia ter sido evitado, bastando que os formadores de opinião cumprissem o seu dever em vez de xingar e boicotar quem o cumpria. Agora é tarde. Tudo o que eles podem é elevar a farsa à segunda potência, passando a falar do assunto com ares de quem o viesse fazendo há séculos.

A negação da existência e das atividades do Foro de São Paulo foi um crime comparável à negação do Holocausto, guardadas, é claro, as proporções, mas ressalvado também o fato de que uma buscou encobrir os horrores do passado, a outra os horrores presentes e futuros.

Contando cadáveres

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 29 de fevereiro de 2008

Publicado na Veja desta semana, um artigo de Reinaldo Azevedo sobre os bajuladores nacionais de Fidel Castro provocou entre os referidos a clássica reação desproporcional de ódio insano, camuflado em indignação moral e vertido abundantemente em cartas à redação e e-mails ao blog do colunista. O que mais irritou os remetentes foi a comparação entre o número de vítimas da ditadura brasileira e as da cubana – quatro centenas aqui, cem mil lá, num país de população quinze vezes menor –, mostrando, pela enésima vez, que os protestos humanitários tão típicos da tagarelice esquerdista se baseiam na total inversão das proporções e numa reivindicação psicótica do direito ao genocídio abençoado.

Contra esses números que falam por si, o beautiful people fidelista reagiu em massa mediante argumentos que, somados, se resumem a dois, o primeiro enunciado pelo diretor teatral Gerald Thomas, o segundo pelo tom geral das mensagens. Esses argumentos são: (1) O colunista escreve essas coisas porque está insatisfeito sexualmente; (2) Contar cadáveres não vale. Dessas duas premissas, o cérebro coletivo daquela entidade ruminante tirava a seguinte conclusão: Demitam esse desgraçado.

Como essa investida grotesca imita outras tantas das quais eu mesmo já fui alvo e aliás pelas mesmíssimas razões, permito-me aqui acrescentar ao artigo de Reinaldo Azevedo três observações que, numa discussão séria do assunto – coisa que não se pode esperar de um Gerald Thomas e similares –, jamais deveriam ser esquecidas:

1. Quando os comunistas e seus amantes protestam contra a contagem de cadáveres, alegando que a quantidade não vem ao caso, eles o fazem porque sabem que seu partido é o recordista mundial de homicídios em massa. Abstraída a quantidade, os crimes do comunismo ficam parecidos com os de qualquer outra ditadura ou mesmo com os efeitos de erros acidentais ou de catástrofes naturais, camuflando sua fisionomia hedionda no confortável anonimato das generalidades. Reinserido no panorama o fator quantidade, o comunismo, como já afirmei, matou mais gente do que duas guerras mundiais, somadas a todas as ditaduras de direita, epidemias e desastres aéreos do século XX. É natural que os advogados de cliente tão ruim tenham de apagar da sua folha corrida o traço distintivo que faz dele aquilo que é: o mais temível flagelo que já se abateu sobre a espécie humana.

2. No exame da violência estatal, as comparações quantitativas são não apenas legítimas, mas indispensáveis e obrigatórias. Sem a quantidade, fica impossível distinguir entre homicídio e genocídio, entre crimes contra a pessoa e crimes contra a humanidade. Fazer abstração do fator quantitativo, como os esquerdistas invariavelmente fazem nessas discussões, é abolir toda a legislação internacional de direitos humanos, à qual no entanto eles mesmos apelam quando lhes convém, reduzindo-a a mero instrumento de propaganda.

3. No caso específico do Brasil e de Cuba, não se trata de uma comparação entre governos quaisquer, nem mesmo entre violência estatal “de direita” e “de esquerda”, mas da comparação entre dois exércitos em combate: de um lado, o Estado brasileiro; de outro, a guerrilha internacional planejada, comandada e subsidiada pelo governo cubano. Em todas as discussões do tema na mídia nacional, os guerrilheiros do MR-8, da ALN ou da VAR-Palmares são sempre apresentados como puros dissidentes internos, quando na verdade faziam parte de um organismo político-militar supranacional, a OLAS, Organização Latino-Americana de Solidariedade – antecessora do Foro de São Paulo –, que obedecia estritamente ao comando estratégico de um governante estrangeiro, o ditador Fidel Castro. Ora, num confronto entre um Estado e uma força militar fundada no exterior, a única possibilidade de uma tomada de posição moral responsável é examinar quem começou as hostilidades e qual dos lados representava a alternativa mais razoável e humana. Que a iniciativa agressora partiu de Fidel Castro, é coisa que ninguém tem o direito de ignorar desde que a historiadora Denise Rollemberg – insuspeita de direitismo – demonstrou que a guerrilha nordestina de 1963 já era subsidiada pelo governo cubano, sendo portanto uma fraude completa explicar a eclosão do terrorismo no Brasil como reação ao golpe militar que sobreveio meses depois. Quanto ao segundo fator, a contagem das vítimas de um regime e do outro – quatro centenas de guerrilheiros em comparação com cem mil civis desarmados – fornece o dado essencial para o julgamento justo da situação. O Brasil foi agredido por uma força comandada do exterior, orientada pelo regime mais brutal e homicida do continente. Que na resposta nacional houve excessos e que eles devem ser investigados e punidos, ninguém jamais duvidou. Mas a reação em si, tanto quanto o uso da violência militar para implementá-la, foi inteiramente justa, necessária e moralmente obrigatória. Só mentalidades deformadas pelo culto autolátrico da santidade esquerdista podem negar uma verdade tão patente.

Monstros

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 28 de fevereiro de 2008

Para os comunistas e seus bajuladores, a morte de uns 400 terroristas, durante o regime militar brasileiro, foi algo de incomparavelmente mais grave, mais revoltante, mais intolerável do que a matança de 75 milhões de civis chineses pela ditadura de Mao Dzedong, de 20 milhões de russos pelo governo soviético ou de 3 milhões de cambojanos pela quadrilha de Pol-Pot. Claro, os comunistas são diferentes de nós. Segundo Che Guevara, são “o primeiro escalão da espécie humana”. Se você mata um deles, mesmo em defesa própria, é crime hediondo. Se ele mata 100 mil de nós, desarmados e amarrados, torna-se um herói, que é como o senhor Mino Carta define Fidel Castro.

Protestando contra a comparação quantitativa entre a ditadura brasileira e a cubana, que o colunista Reinaldo Azevedo faz na última Veja, Gerald Thomas vocifera seu sacrossanto horror à contagem de cadáveres e em seguida se põe a contá-los por sua vez, acusando os militares brasileiros pela “perda da vida de milhares, digo, milhares de vidas inocentes”. Primeiro, não eram inocentes: eram guerrilheiros armados, que só começaram a morrer depois de estourar com bombas dezenas de civis (estes sim, inocentes). Segundo: não foram milhares, foram quatro centenas na mais hiperbólica das hipóteses, jamais submetida a revisão crítica. Para Gerald Thomas, números são um expediente retórico desonesto quando verdadeiros: só os falsos são argumentos honrados.

Sinceramente, já estou velho demais para continuar fingindo que indivíduos capazes de julgar seus semelhantes com um critério tão desproporcional, tão disforme, tão manifestamente iníquo, sejam pessoas normais e decentes com quem eu não tenha senão divergências filosóficas. Esses sujeitos são doentes, são sociopatas perigosos, incapazes de olhar para os discordantes sem antever, com sádica alegria, o cadáver do “inimigo de classe” girando no espeto como um frango no forno da História.

Eis alguns – só alguns – dos objetivos proclamados abertamente pelos líderes e mentores comunistas:

1. Karl Marx: extermínio de classes sociais inteiras e de uns quantos “povos inferiores” (sic).

2. V. I. Lênin: terrorismo sistemático como fórmula de governo.

3. Leon Trotsky: militarização completa do trabalho industrial e agrícola. Supressão da liberdade de escolher emprego.

4. Stálin: “Morte aos pequenos proprietários rurais. Ódio e desprezo aos que os defendem” (sic).

5. Che Guevara: Treinar os militantes para que se tornem “eficientes e frias máquinas de matar” (sic).

Notem bem: não são crueldades impremeditadas, sobrevindas no calor da batalha. São intenções declaradas.

Como é possível que alguém em seu juízo perfeito considere o comunismo um belo ideal humanitário, que um acaso infeliz desviou de seus altos propósitos?

Foi só por um desejo insano de enganar-se retroativamente a si próprios que muitos comunistas, depois da morte de Stálin, começaram a espremer seus cérebros para explicar como o regime dos seus sonhos pudera “degenerar” em tanta violência e maldade. Não era degenerescência: era a execução racional e bem sucedida de planos traçados com muita antecedência – desde Marx – e levados à prática com a frieza metódica de uma obra de engenharia.

Fidel Castro, Guevara, Pol-Pot, Lênin, Stálin, Trótski, Marx – quem quer que escreva uma só palavra em favor desses monstros é seu semelhante, distinguindo-se deles em tamanho apenas, não em qualidade. Ainda que por covardia ou falta de ocasião não venha a realizar pessoalmente seus desígnios macabros, não esconde sua admiração por quem os realiza. E depois ainda se faz de horrorizado ante quem cometeu crimes incomparavelmente menores, se é que é crime apelar à violência para deter um genocídio anunciado e já em fase avançada de execução.