A história do mundo para crianças

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 31 de março de 2008

Por aqui até crianças sabem aquilo que os cientistas políticos, comentaristas de mídia, analistas estratégicos brasileiros estão longe de poder sequer imaginar: que a verdadeira disputa política nos EUA não é propriamente entre republicanos e democratas, mas entre globalistas e americanistas, e que nada, absolutamente nada do que se passa no mundo de hoje – sobretudo nas áreas mais diretamente submetidas à influência americana – pode ser compreendido se não for enfocado nessa perspectiva.

Quando digo crianças, não é força de expressão. Kyle Williams é um garoto homeschooled que estreou no jornalismo aos doze anos de idade, em 2001, e manteve uma coluna regular no WorldNetDaily até 2005. Seus primeiros artigos foram reunidos no livro Seen and Heard ( http://shop.wnd.com/store/item .asp?ITEM_ID=1127 ), onde as estrelas intelectuais da ESG, da USP e da Folha de S. Paulo poderiam colher muitas lições úteis, se tivessem maturidade para isso.

Certamente Williams não é a única fonte para o estudo do assunto. Só na minha biblioteca já reuni uns cem títulos a respeito, dentre os milhares que circulam nos EUA. Recomendo o livro do garoto para não sobrecarregar os cérebros dos nossos formadores de opinião com alimento mais maduro.

Em 2001, Williams já havia compreendido perfeitamente que, para a elite globalista, empenhada na construção ultra-rápida de um governo mundial segundo as linhas aprovadas oficialmente pela ONU, o único obstáculo considerável era a soberania americana. Daí que não apenas subsidiassem generosamente movimentos anti-americanos por toda parte, mas, internamente, investissem pesado no “multiculturalismo” destinado a dissolver o próprio senso de identidade nacional.

Passados sete anos (três desde que Williams abandonou o jornalismo, talvez por achar-se velho demais para essas coisas), as propostas jurídico-administrativas mais atrevidas destinadas a quebrar a espinha do poder nacional americano – a dissolução das fronteiras com o México e o Canadá, a submissão do governo americano ao Tribunal Penal Internacional e o Tratado da Lei do Mar – ainda encontram resistência obstinada, mas os progressos na guerra cultural são notáveis, tanto no exterior quanto na esfera doméstica, onde o simples surgimento da candidatura Barack Obama prova que o anti-americanismo explícito já tem alguma força eleitoral.

A ascensão da esquerda na América Latina teria sido impossível sem o apoio dos círculos globalistas. As relações entre o Diálogo Interamericano e o Foro de São Paulo datam pelo menos de 1993. A ligação próxima da elite “progressista” americana com a narcoguerrilha colombiana ficou mais que provada com as visitas de importantes dirigentes da Bolsa de Valores de Nova York aos comandantes das Farc (v. Por trás da subversão). E não podemos esquecer que a ocultação da existência do Foro de São Paulo, favorecendo o crescimento dessa entidade longe dos olhos da opinião pública, recebeu um potente impulso legitimador da parte do próprio CFR, Council on Foreign Relations, o mais importante think thank globalista dos EUA (v. Mentiras concisas e Alencastro, o sábio da Veja).

Desde o fim da era Reagan, uma política comercial um tanto mais agressiva da parte dos EUA veio junto com a quase total abdicação da “diplomacia pública” e de qualquer tentativa séria de rebater as violentas campanhas anti-americanas por toda parte. Essa estranha combinação de ousadia comercial e timidez diplomática é a fórmula infalível para despertar o ódio a um país. Trinta anos atrás, os princípios e valores americanos tinham alguma presença no debate político-cultural em todo o mundo. Desde então, só o que se vê é o interesse comercial nu e cru, adornado de sorrisos lisonjeiros que só servem para alimentar suspeita. Entre os conservadores americanos, é forte a convicção de que o Departamento de Estado vem há décadas trabalhando contra os EUA e em favor da elite globalista.

No Brasil, ignora-se tudo, literalmente tudo a respeito desse conflito que tanto os globalistas quanto seus adversários sabem ser o capítulo mais decisivo da disputa de poder no mundo. Nas colunas de jornal, nas conferências da ESG e em círculos de discussões militares na internet, só o que encontro é um enfoque atrasado de mais de quarenta anos, no qual tudo o que venha dos EUA é interpretado como expressão direta e inequívoca do “interesse nacional” americano em luta para dominar a América Latina. Isso é de uma estupidez quase inimaginável, mas não resta a menor dúvida de que muitos que a cultivam não padecem dela pessoalmente, apenas a incutem, por esperteza, na mente dos outros.

Mal orientado por um fluxo de informações planejado precisamente para isso, o patriotismo das nossas Forças Armadas pode ser, de um momento para outro, transformado em instrumento do anti-americanismo continental e acabar servindo ao globalismo no instante mesmo em que imagina combatê-lo. Submetidas durante duas décadas a uma brutal campanha de desmoralização e ao progressivo desmantelamento dos seus recursos, as nossas Forças Armadas arriscam ser levadas àquele ponto de desespero no qual uma oferta de compromisso, vinda de seus mais empedernidos algozes e legitimada por pretextos aparentemente patrióticos, pode aparecer como uma tábua de salvação.

O duplo tratamento pavloviano dado pela elite comunista aos militares – de um lado, a difamação incessante, o aviltamento, a cusparada; de outro, a aproximação sedutora e capciosa sob as desculpas de “reconciliação” e “defesa da Amazônia” – foi calculado precisamente para chegar a esse resultado. E está chegando.

Talvez não esteja longe o dia em que nossos oficiais se sintam honrados de integrar o “exército anti-imperialista” de Hugo Chávez, sem saber que, voltando o seu ódio contra os EUA, ajudam a derrubar a única barreira efetiva que se opõe às mesmas ambições globalistas contra as quais acreditarão piamente estar levantando a bandeira da soberania pátria.

Se um engano tão descomunal parece grotesco demais para poder transmutar-se em realidade, algumas amostras do atual pensamento militar brasileiro que circulam pela internet tendem a mostrar, ao contrário, que isso já está acontecendo. Parece mesmo que não há limites para a autodegradação compulsiva que se tornou, de uns anos para cá, o modo brasileiro de ser.

Ironicamente, a política mais recente do Departamento de Estado para com a América Latina concorre ativamente para levar a esse resultado. Proclamando mentirosamente a lealdade do governo brasileiro à velha aliança com os EUA e recusando-se a reconhecer a parceria de Lula com as Farc e Hugo Chávez no quadro do Foro de São Paulo, a administração Bush só reforça a credibilidade de uma das mentiras mais astutas já concebidas pela esquerda brasileira para aliciar os nossos militares: a lenda de que Lula “aderiu ao capitalismo” e está agora trabalhando para os americanos. A perspectiva atemorizante da fragmentação real e virtualmente oficial do nosso território – uma parcela para o MST, outra para as comunidades indígenas, outra para os “quilombolas”, outra para os narcotraficantes, etc. –, que inspira tanto horror entre os nossos militares patriotas, surge assim como se fosse uma iniciativa do nacionalismo americano e não de seus verdadeiros autores, o conluio de globalistas e esquerdistas. O próprio ressentimento dos militares contra os sucessivos governos esquerdistas que tudo fizeram para desmantelar as Forças Armadas é assim voltado contra os EUA e transmutado em arma a serviço da “revolução bolivariana” no continente. Sem dúvida a esquerda nacional aprendeu alguma coisa com a máxima de Ronald Reagan: “Você pode conseguir tudo o que quiser, desde que não faça questão de levar o mérito.”

Na verdade, a insistência psicótica do Departamento de Estado em tratar o governo Lula como se fosse um parceiro confiável e um baluarte de resistência à onda comuno-chavista, ignorando reiteradas ações e palavras do próprio Lula que mostram que ele não é nada disso, explica-se simplesmente pelo desejo de camuflar o fracasso descomunal da política latino-americana do governo Bush. Ninguém no Departamento de Estado ignora o compromisso inflexível de Lula com o Foro de São Paulo, isto é, com Hugo Chávez e o terrorismo. Mas reconhecer isso em voz alta, principalmente num ano eleitoral, é mais do que se poderia esperar, seja do presidente americano, seja da sra. Condoleezza Rice.

Neste aniversário do movimento cívico-militar de 1964, não há assunto mais digno da atenção das nossas Forças Armadas.

Direto da sarjeta

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 27 de março de 2008

Ao longo de mais de 20 anos a esquerda monopolizou tão eficazmente o espaço político brasileiro que, para não dar na vista, teve de nomear para o papel de direita ad hoc uma de suas próprias subdivisões internas, o PSDB, no instante mesmo em que Fernando Henrique Cardoso e Cristovam Buarque, então os mais destacados mentores intelectuais desse partido e do PT respectivamente, reconheciam não haver entre as duas agremiações nenhuma diferença ideológica ou estratégica substantiva, apenas disputa de cargos.

Se na eleição de 2006 o sr. Geraldo Alkmin colaborou com a farsa, prestando-se ao papel de concorrente inofensivo e recusando-se a incomodar o adversário com perguntas sobre suas ligações com gangues de narcotraficantes e seqüestradores, na de 2002 não houve nem isso, apenas um torneio de saudosismo esquerdista, em família, entre quatro patetas que não podiam falar nas guerrilhas dos anos 60 sem lágrimas nos olhos.

No domínio da cultura, então, a hegemonia esquerdista chegou a excluir totalmente, dos currículos universitários, das estantes de livrarias e dos suplementos culturais, qualquer menção a autores que não portassem o nihil obstat dos comitês centrais. Duas gerações de estudantes brasileiros foram submetidos a um regime de privação intelectual quase carcerária, baixando o padrão geral de exigência até àquele nível de miséria extrema em que tipos como Emir Sader e Quartim de Moraes podiam ser impostos como modelos supremos de intelectuais sérios sem que ninguém enxergasse nisso nada de doente.

Essa situação, que se prolongou por tempo suficiente para que o público se tornasse insensível à sua anormalidade, não teria como deixar de refletir-se no jornalismo. Por volta de 1995 já não havia nas redações um só direitista assumido, conservador. No máximo um ou dois “liberais” que recusavam com horror a classificação de “direitistas”.

Nesse ambiente, minha presença era tão singular e extravagante, que alguns leitores chegavam a negar minha existência, tomando-me pelo banqueiro Olavo Monteiro de Carvalho ou por pseudônimo de um milionário carioca, de vez que, na fantasia reinante, ninguém desprovido de um banco próprio ou de uma conta na Suíça poderia ser tão hostil aos belos ideais do socialismo.

Nos últimos anos, a situação mudou um pouquinho. Um pouquinho, quase um nada. Umas quantas opiniões que antes eram só minhas passaram a ser defendidas também por Diogo Mainardi, Reinaldo Azevedo e aproximadamente uma dúzia de blogs e jornais eletrônicos.

O aparecimento dessa leve irregularidade numa superfície que se desejaria uniformemente lisa e sem mácula foi o bastante para que um estado de alarma e de indignação heróica se espraiasse entre os defensores do pluralismo e da tolerância democrática.

Um desses baluartes da liberdade de opinião, o sr. Fernando Barros e Silva, escrevendo na Folha de S. Paulo, assegura que nós, os intrusos, somos despudoradamente interbajuladores, defensores de nossos privilégios, praticantes do compadrio, boçais, cínicos, exibidores de falsa cultura, desprezadores do Brasil, preconceituosos, racistas, antinordestinos e misóginos. Tudo isso num artigo que não chega a vinte linhas, no remate das quais ele ainda encontra espaço para acrescentar que o nosso método – sim, o nosso, não o dele – consiste na truculência verbal, no lixo retórico e, last not least, na “cultura da sarjeta” (sic).

Lendo isso, sinto-me tão culpado, tão envergonhado da minha baixeza inominável, que nem encontro palavras para responder ao sr. Barros. Recorro, pois, às de um meu companheiro de “cultura da sarjeta”: Fernando Pessoa. Num poemeto delicadamente intitulado “Ora, porra!”, ele assim se referiu aos Barros e Silva da sua época e nação:

"Então a imprensa portuguesa é 
que é a imprensa portuguesa? 
Então é esta merda que temos
que beber com os olhos?
Filhos da puta! Não, que nem
há puta que os parisse".

Leitura indispensável

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 25 de março de 2008

Não é porque foi a minha filha Maria Inês quem traduziu, nem porque fui eu mesmo quem recomendou enfaticamente o livro ao editor Edson de Oliveira, nem mesmo porque as notas, muito boas, são do meu ex-aluno Martim Vasques da Cunha. Não é por nada disso, mas vocês têm de ler – todo brasileiro que deseje entender o mundo de hoje tem de ler – as Reflexões Autobiográficas do filósofo germano-americano Eric Voegelin recém-lançadas pela É-Realizações, de São Paulo.

Seqüência de depoimentos informais gravados por Ellis Sandoz em 1973 e depois publicados em transcrição corrigida pelo próprio Voegelin, as Reflexões têm no entanto um fio condutor bem nítido, desenvolvido coerentemente do princípio ao fim: como um grande estudioso extraiu da própria experiência vivida o tema que seria o das suas investigações até o fim dos seus dias; como planejou e dirigiu a aquisição do vasto repertório de conhecimentos necessários para dar ao assunto um tratamento intelectualmente responsável (incluindo diversas viagens de estudos) e como foi tentando ao longo dos anos várias perspectivas diferentes e modificando a formulação do trabalho até à culminação de seus esforços nos cinco volumes da obra magna Order and History e nas considerações finais recolhidas postumamente em What is History? (1990) e The Drama of Humanity (2004), onde as reflexões do filósofo e erudito se transfiguram em pura sabedoria.

O tema inicial não poderia ser mais importante: a origem intelectual dos movimentos ideológicos de massa e o seu sentido na estrutura geral da vida humana. Voegelin foi testemunha direta da ascensão do comunismo e do nazismo, tendo de fugir às pressas da Áustria sob ocupação alemã quando seus livros sobre a origem do racismo o tornaram odioso ao novo regime.

Tal como Franz Werfel, Luigi Sturzo, Reinhold Niebuhr, Robert Musil e outros escritores que observaram de perto a expansão avassaladora das forças totalitárias, Voegelin logo notou que não se tratava só de movimentos políticos, mas de projetos civilizatórios integrais que ambicionavam modificar radicalmente a natureza humana e o lugar da humanidade na ordem cósmica. Para compreender esse fenômeno era preciso não só rastrear suas origens nas primeiras heresias cristãs, mas tentar enquadrá-lo numa tipologia histórica dos vários modelos de “ordem” surgidos ao longo dos tempos – entendendo-se por ordem não somente a hierarquia de poder mas a estruturação abrangente do sentido da vida.

Rendendo-se com admirável honestidade às novas descobertas historiográficas que se sucediam, Voegelin teve de modificar várias vezes o curso dos seus estudos, chegando a abandonar uma História das Idéias Políticas da qual já tinha escrito nada menos que oito volumes e a alterar de alto a baixo o plano de Order and History a partir do terceiro volume.

Para nós, testemunhas e vítimas de uma nova onda totalitária que se espalha agora pela América Latina, essa autobiografia de erudito e cientista tem o valor e a urgência de um manual de estudos para todos os que se sintam chamados a penetrar intelectualmente a situação de modo a poder exorcisar, um dia, os demônios geradores da confusão sangrenta que metódica e inexoravelmente, como num pesadelo planejado, vai engolfando o nosso continente.

Mas, mesmo em épocas mais tranqüilas, eu recomendaria as Reflexões Autobiográficas como modelo didático de uma vida de estudos. Num país onde as universidades sempre desprezaram sua missão e hoje se empenham ativamente em proibir toda tentativa de cumpri-la, é só em livros como esse que o estudante sério pode encontrar algum guiamento.

Muitas décadas atrás, li outro grande livro, La Vie Intellectuelle , de A.-D. Sertillanges, receituário compacto e formidavelmente claro dos deveres do estudioso, e disse para mim mesmo: “É isso o que eu quero ser quando crescer.” As Reflexões de Eric Voegelin são, de algum modo, o complemento inverso dessa obra: são a fórmula da vida intelectual mostrada não desde seus princípios e métodos, mas desde o exemplo concreto de uma vocação realizada, vitoriosa no sentido mais pleno da palavra.