Revanchismo coisa nenhuma

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 21 de agosto de 2008

Na mesma semana em que pela primeira vez a classe militar esboça uma reação coletiva à perseguição de seus membros acusados de tortura, o juiz Baltasar Garzón desembarca no Brasil anunciando que vai puni-los se o governo local não o fizer, e dois porta-vozes da ONU aparecem nos jornais pontificando que “está mais do que na hora de o Brasil enfrentar esse assunto da anistia”. Está mais do que na hora, digo eu, é de os nossos militares entenderem que as tentativas de rever a Lei de Anistia não são mero “revanchismo” e sim uma vasta operação internacional, montada com todos os requintes do planejamento racional, da execução cuidadosa e do timing preciso, para quebrar a espinha das Forças Armadas latino-americanas e obrigá-las a escolher entre colocar-se a serviço da estratégia esquerdista continental ou perecer de morte desonrosa. A astúcia com que o governo brasileiro pulou fora de um confronto direto com os oficiais reunidos no Clube Militar, deixando a parte suja do serviço para seus aliados estrangeiros que com sincronismo admirável se ofereciam para a tarefa, é mais do que suficiente para ilustrar o que digo.

O tratamento dado a essas notícias pela mídia nacional também não é mera coincidência e sim um componente vital da trama. Um despacho da Agência Estado, reproduzido por toda parte, apresenta os dois homens da ONU como “peritos”. O termo visa a dar ares de isenção científica ao que dizem contra a Lei de Anistia, mas para que esse engodo funcione é preciso sonegar ao leitor, como de fato os jornais sonegaram, qualquer informação substantiva sobre o curriculum vitae dos entrevistados. O primeiro, Miguel Alfonso Martinez, foi nomeado para a Comissão de Direitos Humanos da ONU por Fidel Castro em pessoa, o que significa que está lá para encobrir os crimes da ditadura cubana sob uma cortina de acusações a governos bem mais inofensivos. O segundo, Jean Ziegler, suíço, entrou na mesma comissão em abril deste ano, sob os protestos de mais de vinte países, que não gostaram de ver nesse cargo um notório amigo e protetor de ditadores truculentos como Robert Mugabe, do Zimbábue, Muamar Khadafi, da Líbia, Mengistu Haile Mariam, da Etiópia, e o próprio Fidel Castro. Ziegler criou mesmo o “Prêmio Muamar Khadafi de Direitos Humanos”, que soa mais ou menos como “Prêmio Mensalão de Ética e Transparência”. Se o leitor soubesse dessas coisas, entenderia que os dois patetas falam apenas na condição de paus-mandados do comunismo internacional, e que ao apresentá-los como “peritos”, sem mais, a mídia nacional desempenha papel exatamente igual ao deles.

Mesmo o sr. Baltasar Garzón, por trás de sua fachada de campeão dos direitos humanos, permanece um desconhecido para a multidão dos brasileiros. Em 2001 ele recebeu um vasto dossiê contra Fidel Castro, mas respondeu que nada faria a respeito porque seu tribunal não tem jurisdição sobre governantes em exercício. O critério jurídico aí subentendido já é por si uma monstruosidade abjeta, pois significa que, para escapar ao senso justiceiro do sr. Garzón, tudo o que um ditador tem de fazer é permanecer no governo até à morte, em vez de devolver o poder ao povo como o fez o general Pinochet. O caso torna-se ainda mais escandaloso porque Fidel Castro agradeceu publicamente ao juiz a gentileza da sua reação e porque anos depois, quando Castro apeou do poder, Garzón não deu o menor sinal de perceber que ele tinha ipso facto caído sob a sua jurisdição.

Da minha parte, não tenho a menor dúvida de que essas pomposas iniciativas contra violadores de direitos humanos, sempre unilaterais e escancaradamente alheias ao senso das proporções, que é a essência mesma da justiça, têm no fundo um único objetivo: acostumar a população mundial à idéia de que assassinatos em massa são um direito inalienável e até um dever moral dos ditadores de esquerda, ao passo que qualquer violência incomparavelmente menor praticada contra comunistas é um crime hediondo cujo autor deve ser exposto à execração universal.

O mercado e um lembrete

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 14 de agosto de 2008

Os comunistas acreditavam que a propriedade privada era a realidade fundamental por trás da religião, e que abolindo esse fundamento poderiam suprimir do horizonte humano a perspectiva da transcendência, impondo à sociedade, segundo a expressão de Antonio Gramsci, uma cosmovisão “radicalmente terrestrializada”. Em vários países o capitalismo alcançou praticamente o mesmo resultado sem destruir a propriedade privada nem fazer dano algum aos muito ricos, na verdade tornando-os prodigiosamente mais ricos.

Se algo esse duplo e concorrente fenômeno demonstra, é que a expectativa comunista se baseava num non sequitur: definitivamente, a cultura espiritual não é um revestimento ideológico da propriedade privada – ela é uma estrutura independente, que pode sobreviver muito bem à estatização da economia ou definhar em pleno regime de livre empresa.

Mas também é evidente que, entre os adeptos da economia de mercado, só os fanáticos anti-religiosos e cultores devotos do dinheiro, tão incapazes quanto os comunistas de admitir quaisquer valores acima dos econômicos, festejariam como uma grande vitória das democracias ocidentais o fato de elas terem conseguido realizar os ideais do inimigo em vez dos seus próprios. Se essa realização desmascara de vez a falaciosa hierarquia marxista da “infra-estrutura” e “superestrutura”, ela derruba também a ilusão de que a liberdade de mercado tem o poder mágico de gerar as demais liberdades. O mercado não é uma alternativa entre outras: é um elemento constitutivo do processo econômico em geral. Em dose maior ou menor, ele está presente onde quer que haja produção e consumo acima da mera subsistência imediata. Nem mesmo o comunismo pode suprimi-lo por completo. Ora, um fator que está presente numa diversidade de situações não pode, por si, ser a causa geradora de nenhuma delas em particular. O mercado não produz nem a liberdade nem a tirania, ele simplesmente se adapta a uma e à outra com a resiliência de um instinto natural que jamais pode ser eliminado nem totalmente satisfeito.

De quebra, o sucesso de uma cultura anti-espiritual e até marxista nas sociedades capitalistas avançadas põe à mostra a fraqueza congênita da democracia capitalista, que é a a compulsão de gerar tanto mais ódio a si própria quanto mais generosamente cumpre sua promessa de dar a todos uma vida melhor.

Deixo o resto dessa explicação para mais tarde. No momento prefiro colocar aqui um lembrete sobre assunto um tanto diverso.

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Se o Foro de São Paulo se autodefine como coordenação estratégica da revolução continental, e se entidades como as Farc e o Mir estão submetidas a essa coordenação, nada no mundo, exceto a mendacidade cínica ou a rejeição psicótica da realidade, pode abolir o fato de que o criador e presidente do Foro é, por definição, o chefe da subversão, do narcotráfico e da indústria dos seqüestros na América Latina. Nenhuma prova de colaboração direta e material com essas atividades criminosas é necessária para demonstrar a responsabilidade penal daquele sob cuja liderança moral e política elas foram praticadas, assim como nenhuma prova de envolvimento material do ex-presidente Collor de Melo nas ações ilícitas do sr. P. C. Farias foi jamais exibida – ou mesmo cobrada – para que ele fosse considerado responsável por elas. Quanto ao proveito obtido nos dois casos, a Justiça admitiu não haver nenhum indício válido de que Collor tivesse embolsado pessoalmente um só centavo de fonte ilícita ou mesmo tirado algum lucro político da corrupção, ao passo que o próprio sr. Lula já confessou dever o sucesso da sua carreira à colaboração organizada das entidades congregadas no Foro, sem excluir dessa lista de credores as Farc e o Mir, cujos agentes no território nacional mais de uma vez foram alvos de eloqüentes gestos de gratidão petista. Nada poderia ser mais claro, mas, se a nossa mídia levou dezoito anos para admitir os fatos, talvez precise de outros dezoito para entender que eles significam alguma coisa.

Mentira temível

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 8 de agosto de 2008

O protesto do governo russo contra a equiparação moral de nazismo e comunismo condensa uma das falsificações históricas mais temíveis de todos os tempos. Temível pelas dimensões da mentira que engloba e duplamente temível pela credulidade fácil com que é acolhida, em geral, pelos não-comunistas e mesmo anticomunistas.

Até John Earl Haynes, o grande historiador do anticomunismo americano, subscreve esse erro: “Ao contrário do nazismo, que explicitamente colocava a guerra e a violência no cerne da sua ideologia, o comunismo brotou de raízes idealísticas.” Nada, nos documentos históricos, justifica essa afirmativa. Séculos antes do surgimento do nazismo e do fascismo, o comunismo já espalhava o terror e o morticínio pela Europa, atingindo um ápice de violência na França de 1793. A concepção mesma de genocídio – liquidação integral de povos, raças e nações – é de origem comunista, e sua expressão mais clara já estava nos escritos de Marx e Engels meio século antes do nascimento de Hitler e Mussolini.

O idealismo romantizado está na periferia e não no cerne da doutrina comunista: os líderes e mentores sempre riram dele, deixando-o para a multidão dos “idiotas úteis”. É significativo que Marx, Engels, Lênin, Stalin, Mao ou Che Guevara tenham dedicado pouquíssimas linhas à descrição da futura sociedade comunista e das suas supostas belezas, preferindo preencher volumes inteiros com a expressão enfática do seu ódio não somente aos burgueses e aristocratas, mas a milênios de cultura intelectual e moral, explicados pejorativamente como mera camuflagem ideológica do interesse financeiro e do desejo de poder. Entre os não-comunistas, a atribuição usual de motivos idealísticos ao comunismo não nasce de nenhum sinal objetivo que possam identificar nas obras dos próceres comunistas, mas simplesmente da projeção reversa da retórica de acusação e denúncia que nelas borbulha como num caldeirão de ódio. A reação espontânea do leitor ingênuo ante essas obras é imaginar que tanta repulsa ao mal só pode nascer de um profundo amor ao bem. Mas é próprio do mal odiar-se a si mesmo, e simplesmente não é possível que a redução de todos os valores morais, religiosos, artísticos e intelectuais da humanidade à condição de camuflagens ideológicas de impulsos mais baixos seja inspirada no amor ao bem. O olhar de suspicácia feroz que Marx e seus continuadores lançam sobre as mais elevadas criações dos séculos passados denota antes a malícia satânica que procura ver o mal em tudo para assim parecer mais suportável na comparação. Para aceitar como verdade a lenda do idealismo comunista, teríamos de inverter todos os padrões de julgamento moral, admitindo que os mártires que se deixaram matar na arena romana agiram por interesses vis, ao passo que os assassinos de cristãos na URSS e na China agiram por pura bondade.

Nos raros instantes em que algum dos teóricos comunistas se permite contemplar imaginativamente as supostas virtudes da sociedade futura, ele o faz em termos tão exagerados e caricaturais que só se podem explicar como acessos de auto-excitação histérica sem qualquer conexão com o fundo substantivo das suas teorias. Ninguém pode reprimir um sorriso de ironia quando Trotski diz que na sociedade comunista cada varredor de rua será um novo Leonardo da Vinci. Como projeto de sociedade, isso é uma piada – o comunismo inteiro é uma piada. Ele só é sério enquanto empreendimento de ódio e destruição.

Ademais, o protesto russo suprime, propositadamente, dois dados históricos fundamentais:

(1) O fascismo nasceu como simples dissidência interna do movimento socialista e não como reação externa. Sua origem está, comprovadamente, na decepção dos socialistas europeus com a adesão do proletariado das várias nações ao apelo patriótico da propaganda belicista na guerra de 1914. Fundados na idéia de que a solidariedade econômica de classe era um laço mais profundo e mais sólido do que as identidades nacionais – alegadamente invenções artificiosas da burguesia para camuflar seus interesses econômicos –, Lênin e seus companheiros de partido acreditavam que, na eventualidade de uma guerra européia, os proletários convocados às trincheiras se levantariam em massa contra seus respectivos governos e transformariam a guerra num levante geral socialista. Isso foi exatamente o contrário do que aconteceu. Por toda parte o proletariado aderiu entusiasticamente ao apelo do nacionalismo belicoso, ao qual não permaneceram imunes nem mesmo alguns dos mais destacados líderes socialistas da França e da Alemanha. Ao término da guerra, era natural que o mito leninista da solidariedade de classe fosse submetido a análises críticas dissolventes e que o conceito de “nação” fosse revalorizado como símbolo unificador da luta socialista. Daí a grande divisão do movimento revolucionário: uma parte manteve-se fiel à bandeira internacionalista, obrigando-se a complexas ginásticas mentais para conciliá-la com o nacionalismo soviético, enquanto a outra parte preferiu simplesmente criar uma nova fórmula de luta revolucionária – o socialismo nacionalista, ou nacional-socialismo.

Não deixa de ser significativo que, na origem do “socialismo alemão” – como na década de 30 era universalmente chamado –, a dose maior de contribuições financeiras para o partido de Hitler viesse justamente da militância proletária (v. James Pool “Who Financed Hitler: The Secret Funding of Hitler’s Rise to Power, 1919-1933”, New York, Simon & Schuster, 1997). Para uma agremiação que mais tarde os comunistas alegariam ser puro instrumento de classe da burguesia, isso teria sido um começo bem paradoxal, se essa explicação oficial soviética da origem do nazismo não fosse, como de fato foi e é, apenas um engodo publicitário para camuflar ex post facto a responsabilidade de Stalin pelo fortalecimento do regime nazista na Alemanha.

2) Desde a década de 20, o governo soviético, persuadido de que o nacionalismo alemão era um instrumento útil para a quebra da ordem burguesa na Europa, tratou de fomentar em segredo a criação de um exército alemão em território russo, boicotando a proibição imposta pelo tratado de Versailles. Sem essa colaboração, que se intensificou após a subida de Hitler ao poder, teria sido absolutamente impossível à Alemanha transformar-se numa potência militar capaz de abalar o equilíbrio mundial. Parte da militância comunista sentiu-se muito decepcionada com Stalin quando da assinatura do famoso tratado Ribentropp-Molotov, que em 1939 fez da União Soviética e da Alemanha parceiros no brutal ataque imperialista à Polônia. Mas o tratado só surgiu como novidade escandalosa porque ninguém, fora dos altos círculos soviéticos, sabia do apoio militar já velho de mais de uma década, sem o qual o nazismo jamais teria chegado a constituir uma ameaça para o mundo. Denunciar o nazismo em palavras e fomentá-lo mediante ações decisivas foi a política soviética constante desde a ascensão de Hitler – política que só foi interrompida quando o ditador alemão, contrariando todas as expectativas de Stalin, atacou a União Soviética em 1941. Tanto do ponto de vista ideológico quanto do ponto de vista militar, o fascismo e o nazismo são ramos do movimento socialista. (Deixo de enfatizar, por óbvia demais, a origem comum de ambos os regimes no evolucionismo e no “culto da ciência”. Quem deseje saber mais sobre isto, leia o livro de Richard Overy, “The Dictators. Hitler’s Germany, Stalin’s Russia” New York, Norton, 2004.)

Mas ainda resta um ponto a considerar. Se o comunismo se revelou uniformemente cruel e genocida em todos os países por onde se espalhou, o mesmo não se pode dizer do fascismo. A China comunista logo superou a própria URSS em furor genocida voltado contra a sua própria população, mas nenhum regime fascista fora da Alemanha jamais se comparou, nem mesmo de longe, à brutalidade nazista. Na maior parte das nações onde imperou, o fascismo tendeu antes a um autoritarismo brando, que não só limitava o uso da violência aos seus inimigos armados mais perigosos, mas tolerava a coexistência com poderes hostis e concorrentes. Na própria Itália de Mussolini o governo fascista aceitou a concorrência da monarquia e da Igreja – o que já basta, na análise muito pertinente de Hannah Arendt, para excluí-lo da categoria de “totalitarismo”. Na América Latina, nenhuma ditadura militar – “fascista” ou não – jamais alcançou o recorde de cem mil vítimas que, segundo os últimos cálculos, resultou da ditadura comunista em Cuba. Comparado a Fidel Castro, Pinochet é o menino-passarinho. Em outras áreas do Terceiro Mundo, nenhum regime alegadamente fascista fez nada de parecido com os horrores do comunismo no Vietnam e no Cambodja. O nazismo é uma variante especificamente alemã do fascismo, e essa variante se distinguiu das outras pela dose anormal de violência e crueldade que desejou e realizou. Em matéria de periculosidade, o comunismo está para o fascismo assim como a Máfia está para um estuprador de esquina. Mas não podemos esquecer aquilo que diz Sto. Tomas de Aquino: a diferença entre o ódio e o medo é uma questão de proporção – quando o agressor é mais fraco, você o odeia; quando é mais forte, você o teme. É fácil odiar o fascismo simplesmente porque ele sempre foi mais fraco do que o comunismo e sobretudo porque, como força política organizada, está morto e enterrado. O fascismo jamais teve a seu serviço uma polícia secreta das dimensões da KGB, com seus 500 mil funcionários, orçamento secreto ilimitado e pelo menos cinco milhões de agentes informais por todo o mundo. Mesmo em matéria de publicidade, as mentiras de Goebbels eram truques de criança em comparação com as técnicas requintadas de Willi Münzenberg e com a poderosa indústria de desinformatzia ainda em plena atividade no mundo. Se, no fim da II Guerra, a pressão geral das nações vencedoras colocou duas dúzias de réus no Tribunal de Nuremberg e inaugurou a perseguição implacável a criminosos de guerra nazistas, que dura até hoje, o fim da União Soviética foi seguido de esforços gerais para evitar que qualquer acusação, por mínima que fosse, recaísse sobre os líderes comunistas responsáveis por um genocídio cinco vezes maior que o nazista. No Cambodja, o único país que teve a coragem de esboçar uma investigação judicial contra os ex-governantes comunistas, a ONU fez de tudo para boicotar essa iniciativa, que até hoje se arrasta entre mil entraves burocráticos, aguardando que a morte por velhice livre os culpados da punição judicial. O fascismo atrai ódio porque é uma relíquia macabra do passado. O comunismo está vivo e sua periculosidade não diminuiu nem um pouco. O temor que inspira transmuta-se facilmente em afetação de reverência exatamente pelos mesmos motivos com que o entourage de Stalin fingia amá-lo para não ter de confessar o terror que ele lhe inspirava.