A tradição revolucionária – 3

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 18 de julho de 2011

A monstruosa superioridade do movimento revolucionário ante seus adversários de todos os matizes não se limita, é claro, ao campo da desinformação estratégica. Nada se compara à sua capacidade de mobilização de massas em qualquer país do mundo, quando não em todos eles, e em tempo quase instantâneo. Dois exemplos clássicos:

(1) A guerrilha de Chiapas, que, derrotada mil vezes no terreno militar, acabava obtendo tudo o que queria no campo político, graças aos protestos que se seguiam imediatamente, em dezenas de países, a cada vitória do governo mexicano.

(2) As manifestações populares que se seguiram em prazo recorde ao atentado mortífero de dezembro de 2003 na Espanha, voltadas, não contra os terroristas, mas contra… o governo espanhol.

Nesses episódios, como em centenas de outros, salta aos olhos a articulação do movimento revolucionário, unificando terrorismo, desinformação e protestos de massa. A invulnerabilidade política da guerrilha de Chiapas serviu de modelo para o estudo The Advent of Netwar, de John Arquilla e David F. Ronfeldt, publicado pela Rand Corporation, que pode ser descarregado do site http://www.rand.org/publications/MR/MR789/, que pioneiramente descreveu a nova estrutura “em redes”, infinitamente mais eficaz, que havia substituído a velha hierarquia monolítica dos partidos revolucionários. A mobilização instantânea dessa rede colocava o governo mexicano numa luta inglória contra um inimigo evanescente, “onipresente e invisível”, que nenhuma força armada poderia jamais controlar. (V. o meu artigo “Em plena guerra assimétrica”, DC, 24 de julho de 2006, http://www.olavodecarvalho.org/semana/060724dc.html).

O caso espanhol ilustra ainda mais claramente ainda a força da hegemonia cultural como preparação do terreno para grandes operações que articulam desinformação e protestos de massa. Ante a brutalidade dos atentados, um governo conservador intoxicado e enfraquecido por temores “politicamente corretos”, plantados na mente da classe dominante com décadas de antecedência, sentiu-se inibido de ferir suscetibilidades islâmicas e preferiu, num primeiro momento, atribuir o crime ao ETA, a guerrilha basca. Em menos de vinte e quatro horas a massa organizadíssima, claramente preparada de antemão, estava nas ruas protestando contra a ineficiência do governo em localizar os verdadeiros culpados. Foi o fim do gabinete conservador (v. meu artigo “Exemplo didático”, Jornal da Tarde, 25 de março de 2004, http://www.olavodecarvalho.org/semana/040325jt.htm).

Por favor, pensem um pouco e respondam: existe no mundo alguma articulação direitista, conservadora ou reacionária habilitada a brincar assim de gato e rato com os governos revolucionários como estes fazem com todos os demais governos?

Vejam só o caso da Rússia: com o seu contingente duplicado, a KGB conta, hoje em dia, com milhares de pseudópodos espalhados pelo mundo, operando legalmente sob o disfarce de bancos, indústrias, firmas de consultoria, o diabo; tem ademais a seu serviço a máfia russa, que desde o começo dos anos 90 possui o domínio sobre todas as grandes redes criminosas do mundo, da Sibéria à Venezuela e à Colômbia (v. Claire Sterling, Thieves’ World: The Threat of the New Global Network of Organized Crime, New York, Simon & Schuster, 1994, bem como Helène Blanc e Renata Lesnik, L’Empire de Toutes les Mafias, Paris, Presses de la Cité, 1998), mais o terrorismo islâmico que é criatura sua (v. Ion Mihai Pacepa, “The Arafat I Knew” em http://www.weizmann.ac.il/home/comartin/israel/pacepa-wsj.html) e todos os movimentos revolucionários militantes do mundo, agora unidos a ela por laços cada vez mais complexos e difíceis de rastrear. Que poder, no mundo, jamais se organizou para enfrentar uma coisa dessas? Por favor, não caiam no ridículo de mencionar a CIA, organização incomparavelmente menor, cuja inermidade ante essa máquina infernal já se comprovou centenas de vezes.

Para piorar ainda mais as coisas, resta o fato de que a elite econômica ocidental, que uma opinião pública boboca pode ainda imaginar empenhada em defender a democracia e a liberdade, há muitas décadas já se deixou seduzir pela proposta de “governo mundial”, que traz as marcas inconfundíveis do ideal revolucionário: um projeto de sociedade hipotética a ser realizado mediante a concentração do poder. Concentração aliás muito mais densa que aquela prevista em qualquer dos projetos revolucionários anteriores, já que baseada no total controle da psicologia das massas por uma elite de “engenheiros comportamentais” iluminados (v. Pascal Bernardin, Machiavel Pédagogue – Ou le Ministère de la Réforme Psychologique, Éd. Notre-Dame des Grâces, 1995). A convergência desse projeto com a utopia socialista é tão acentuada que, nos países ocidentais, a KGB não precisa gastar um tostão para promover a demolição “politicamente correta” da moral e das instituições: o serviço é feito inteiramente sob os auspícios da elite globalista bilionária, em cuja vanguarda se destacam George Soros e a família Rockefeller.

O segredo da hegemonia revolucionária é simples: continuidade e intensidade do debate interno. Em qualquer conflito, cruento ou incruento, o contendor que dura mais é, por definição, o vencedor. O clássico simbolismo chinês já representava o poder ativo, soberano, por uma linha contínua, a passividade por uma linha quebrada. A fragilidade das resistências que se opõem ao avanço revolucionário advém do fato de que mesmo as entidades mais antigas, mais aptas, portanto, a sustentar objetivos de longo prazo, como a Igreja Católica, a Casa Real Britânica, a comunidade judaica, a Maçonaria ou mesmo o governo americano, têm suas finalidades próprias, distintas e limitadas, só ocasionalmente e pontualmente entrando em disputa direta com o movimento revolucionário na luta pelo poder mundial que é, para ele, o objetivo constante e o foco unificador de todos os seus esforços. A visão que essas entidades têm do processo revolucionário é acidental e quebradiça. É nos intervalos dessa linha descontínua que o movimento revolucionário se insinua, utilizando para seus próprios fins as energias daqueles que teriam tudo para ser seus mais eficientes e temíveis adversários.

Resposta a Carlos Nougué

Olavo de Carvalho

17 de julho de 2011

“Se, porém, eles pelas obras profanam a fé e não se escondem,
cobertos de vergonha, debaixo da terra, por que se irritam contra nós,
que condenamos com palavras o que eles manifestam com ações?”

(São João Crisóstomo)

1. Abomináveis palavrões (1) 1

2. Abomináveis palavrões (2) 5

3. Adversário filosófico? 5

4. Impropérios 5

5. Proposta de debate (1) 6

6. Proposta de debate (2) 7

7. Proposta de debate (3) 8

8. Repetidor do Magistério (1) 10

9. Repetidor do Magistério (2) 10

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1. Abomináveis palavrões (1)

Antes de tudo, não posso deixar de dizer-lhe publicamente que a maneira como você tratou a Sidney Silveira, ofendendo-o com os mais abomináveis palavrões, não se faz com um pai de família nem é digna de um homem que se diz filósofo.

A referência ao estatuto de “pai de família” do Sr. Silveira é descabida e só entra aí como apelo emocional kitsch: o homem não foi criticado enquanto pai de seus filhos ou esposo da sua digníssima. Ademais, sou eu mesmo pai e avô de família até mais numerosa que a dele, o que não o inibiu de espalhar contra mim, não uma, mas sucessivas insinuações pérfidas e difamatórias, indignas, já não digo de um filósofo – coisa que ele nunca foi –, mas de qualquer cidadão comum honrado e cumpridor das leis, mesmo solteiro e sem família.

Desde muito antes deste episódio o Sr. Silveira já vinha fazendo intrigas a meu respeito, procurando por todos os meios indispor contra mim o público católico. Um de meus alunos publicou no Orkut uma breve antologia dessas insinuações perversas, mal camufladas sob a aparência caricatural de elevadíssimas discussões doutrinais. Não preciso, portanto, repeti-las aqui.

A persistência obstinada dessas investidas mostrava que não eram efusões ocasionais e espontâneas, mas lances de uma campanha sistemática, deliberada, firmemente disposta a não cessar enquanto não conseguisse tornar minha imagem odiosa e suspeita aos fiéis e à hierarquia da Igreja. No curso dessa guerrinha malévola e sem razão, fui acusado, entre outras coisas, de heresia e de satanismo, e por fim atirado ao inferno sem remissão como autor de pecado contra o Espírito Santo – aquele que não será perdoado nem nesta vida nem na próxima.

Tudo meticulosamente calculado para que um fiel católico, ao ler essas coisas sem me conhecer muito bem, sentisse a urgente conveniência de manter distância de mim e confiar-se, em vez disso, ao magistério de Sidney Silveira e Carlos Nougué.

Todas essas provocações agüentei quieto. Cheguei, no máximo, a mencionar uma delas, de passagem, num artigo em que respondia a vários mexeriqueiros da mesma espécie:

“Outro, ainda, sem medir o grotesco do que fazia, macaqueava a estrutura dialética das quaestiones disputatae medievais para discutir, com ares de Sto. Tomás na sua cátedra de Paris, esta questão transcendente: ‘É lícito ao filósofo usar palavras de baixo calão?’ – concluindo, evidentemente, pela negativa, e deixando inculcada nos seus devotos discípulos imaginários a impressão enganosa de que o filósofo referido usara aquelas palavras em demonstrações filosóficas, como substitutivos da argumentação racional, e não apenas num programa informal de rádio destinado a responder e-mailse comentar, por alto, as notícias da semana…”[1]

Como qualquer leitor inteligente percebe à primeira vista, é apenas uma anotação vagamente irônica, não um protesto. Muito menos um revide.

Isso foi o máximo que o sr. Silveira ouviu de mim ao longo de toda a série de insinuações ora mais, ora menos veladas que foi despejando sobre a minha pessoa ao longo de muitos meses.

Ele não pode alegar que sou impulsivo ao reagir, nem pronto a desferir socos e pontapés à mais leve provocação.

Só perdi a paciência quando ele, encorajado pelo meu longo silêncio, partiu das meras indiretas à falsificação ostensiva de um texto meu, para dar ares de coisa anticatólica a algo que eu escrevera contra inimigos da Igreja.[2]

Aí seus propósitos de intrigante malicioso já não podiam mais ser ocultados, ao menos aos olhos de quem houvesse compreendido as suas anteriores performances. Aos demais, no entanto, aquele artigo difamatório, meticulosamente fabricado para jogar contra mim a opinião católica inteira de uma só vez, podia parecer à primeira vista não conter nada mais que a elegante e polidíssima correção de um erro doutrinário.

Quando um intrigante astuto faz uso da língua dupla, cavando um abismo de distância enganosa entre o conteúdo peçonhento e o tom de urbanidade respeitosa (quando não de piedade devota), ele coloca sua vítima na difícil contingência de não poder responder ao conteúdo sem romper com o tom, expondo-se assim à pecha de impolido e truculento, nem conservar o tom sem amortecer a virulência do conteúdo, tornando-se assim cúmplice de seu acusador.

A dose de malícia e perversidade necessária para que alguém se dedique a montar esse gênero de armadilha é tamanha, que dispensa explicações. Tudo o que há para dizer a respeito a Bíblia já resumiu em duas palavras:Bilingüis maledictus – “maldito o homem de duas línguas”.

Quem leia a série inteira dos artigos consagrados por ele à demolição da minha imagem notará que essa tensão entre o conteúdo e o tom não é exclusiva de um deles, mas a regra geral e constante do “estilo” – chamemo-lo assim – do Sr. Silveira. Ele não age assim por deliberação malévola, consciente de montar uma arapuca para colocar sua vítima em posição comprometedora. Ele age assim com naturalidade, com inocência até, sem a menor consciência de que pratica o mal. Ele age assim porque ele é assim, porque tal é a sua maneira de ser, a sua personalidade – a personalidade de um santarrão que, ao deleitar-se na falsificação e na calúnia, acredita piamente praticar as mais elevadas virtudes cristãs.

Há uma diferença enorme, na escala de gravidade, entre quem comete um crime isolado, mediante premeditação explícita, e o criminoso habitual que os comete às pencas, sem premeditação nenhuma, com a espontaneidade de quem respira. No primeiro caso, o delito pode ser uma exceção no curso de uma vida que, fora isso, permanece honrada e limpa. No segundo, o sujeito é uma alma estruturalmente deformada, para a qual o estado de crime se tornou uma segunda natureza. O primeiro, por saber que delinqüiu, pode sentir vergonha e ter medo da danação. O segundo, com a consciência mais tranqüila do mundo, pode tornar-se até professor de moral e porta-voz do Magistério sagrado.

É este precisamente o caso do Sr. Sidney Silveira. O tom de pureza santa com que ele fala contrasta de tal maneira com a sujeira de seus atos, que a hipótese da premeditação pontual tem de ser excluída in limine, cedendo lugar à de uma alma dividida em partes estanques, que não se enxerga, que não compreende o que faz, que não tem a mínima condição de julgar seus motivos nem de orientar seus atos.

Que uma personalidade assim tosca e mal formada seja a de um professor de moral e religião, eis aí um sintoma, dentre tantos outros, do estado de alienação, de inconsciência geral que se apossou da sociedade brasileira desde há alguns anos.

Seus ataques imotivados à minha pessoa tornavam-se ainda mais graves por não ser iniciativas isoladas, mas virem em convergência com outras iniciativas do mesmo teor, provenientes de diversos grupos empenhados em revestir-se da aura de defensores da fé para mais facilmente poderem delinqüir em nome da Igreja. Sobre algumas dessas escrevi em 20 de novembro de 2009:

“Não vejo por que me defender de acusações tão francamente imbecis e mal intencionadas. Quem quiser acreditar nelas só fará dano a si mesmo. O único ponto que interessa ressaltar – por ser um fenômeno sociológico de certa importância – é que cada um daqueles que as emitem jura não ter-me ofendido jamais e, ao menor revide da minha parte, sai chorando que foi difamado, atacado, vilipendiado etc. etc. Isso é uma regra geral absolutamente infalível em todos os casos.”[3]

O Sr. Sidney Silveira, como você pode ver, não constitui exceção. A única diferença é que ele não se contenta em verter suas próprias lágrimas de autopiedade, mas ainda toma emprestadas as de seu acólito Carlos Nougué.
2. Abomináveis palavrões (2)

Quanto a essa sua afetação de escândalo sacrossanto ante palavrões de uso comum que eu mesmo já ouvi da sua própria boca (você deve se lembrar da sua versão aliás genial do título do livro do ator Sérgio Brito, “No Palco dos Outros”, como “Pau no Cu dos Outros”), já estava respondida de antemão num post do Adversus Haereses, escrito por alguém que não conheço e que é totalmente alheio à presente altercação. Leia e tente aprender alguma coisa: http://advhaereses.blogspot.com/2010/09/xingando-com-os-santos.html.
3. Adversário filosófico?

Alguém seria capaz de imaginar, já não se diga um Santo Agostinho ou um Santo Tomás de Aquino, e nem sequer um Sócrates, um Platão, um Aristóteles, mas um Kant ou um Husserl ofendendo a mãe e a honra de um adversário filosófico seu?

“Adversário filosófico”? Cadê? Não estou vendo nenhum. Só vejo um criminoso, um bandidinho, praticante obstinado da difamação e da calúnia, que deveria ser respondido mediante um processo judicial e considerar-se um afortunado por ter recebido, em vez disso, apenas uns palavrões mais que merecidos.

Foi a esse tipo de gente que S. José Maria Escrivá de Balagüer se referiu ao dizer que, contra ela, não restava outra saída senão recorrer ao que ele chamava “o apostolado dos palavrões”, oferecendo-se, ademais, para ensinar alguns a quem não os conhecesse em número e potencial ofensivo suficientes. Convém lembrar, aliás, que os palavrões espanhóis são bem mais ferinos, mais agressivos que os brasileiros, sempre atenuados pela sua conotação humorística.

Mas S. José Maria, com toda a evidência, é apenas um “santo boca suja”, indigno de figurar nas páginas de Contra Impugnantes.
4. Impropérios

Um milhão de impropérios, Olavo, não fazem um silogismo…

E um milhão de insinuações maliciosas não têm o valor e a dignidade de um palavrão bem aplicado.
5. Proposta de debate (1)

Como porém em meio a tais palavrões devemos reconhecer, como quer que seja, um fundo doutrinal seu com respeito ao escrito de Sidney Silveira, venho por meio desta carta aberta fazer-lhe um convite:
Você aceitaria participar comigo de três quaestiones disputatae transmitidas por videoconferência e com direito universal de acesso? Explico-me.
1) A primeira quaestio disputata giraria em torno do seguinte tema: “As relações entre razão e fé e entre filosofia e teologia em Santo Tomás de Aquino”.

Você está realmente decidido a posar de meu “adversário filosófico”. À noite, ou até de dia, com os olhos abertos, deve sonhar que é Sto. Tomás de Aquino pisoteando a cabeça de Averróes.

O debate que você propõe não faz o menor sentido.

Com relação ao primeiro ponto, já expus minha opinião dezenas de vezes. Vou resumi-la aqui:

1. A teologia católica foi, historicamente, a primeira ciência que, fora do domínio estritamente formal, se organizou como um edifício lógico-dedutivo integral, fornecendo assim o modelo para todas as demais ciências, que em vão se esforçam até hoje para copiá-lo. É verdade que para isso ela contou com o aporte do precedente aristotélico, mas Aristóteles, pelo próprio caráter fragmentário dos seus escritos, antes sugeriu essa possibilidade do que a realizou materialmente, cabendo este mérito, sem sombra de dúvida, à teologia católica.

2. Portanto, essa teologia não pode ser vista como uma tentativa de “conciliar” a fé com uma razão científica que até então não existia e que ela própria estava criando no ato mesmo de constituir-se. Entender a obra dos autores das Sumas medievais como esforços no sentido dessa conciliação é projetar sobre ela, retroativamente, uma visão extemporânea.

3. Uma vez compreendida a identidade de suas estruturas lógico-formais, a única diferença substantiva que pode restar entre a teologia e as demais ciências, sob o ponto de vista da sua respectiva cientificidade, é que a teologia aceita entre suas premissas os dados da fé, enquanto as demais ciências aceitam somente os dados dos sentidos confirmados experimentalmente. Mas essa diferença é antes um estereótipo midiático do que um fato da realidade. De um lado, a função dos dados da fé no edifício teológico resume-se à da confiabilidade do testemunho – o testemunho dos evangelistas, dos Apóstolos e do próprio Nosso Senhor Jesus Cristo. De outro, não existe nenhuma “demonstração experimental” que também não se baseie, em última análise, em testemunhos convencionalmente admitidos como confiáveis – o testemunho das máquinas e equipamentos, do técnico que os manipula e de toda uma complexa cadeia de transmissão que inclui até mesmo a variável da subjetividade pessoal. Passou o tempo em que se imaginava o “fato científico” como a própria voz da realidade. Hoje sabe-se, e a nenhum teórico da ciência com um mínimo de idoneidade ocorreria negá-lo, que a “experiência científica” é apenas um elemento ou aspecto da formação do testemunho, e não há nenhuma, absolutamente nenhuma razão para supor que o testemunho de profissionais envolvidos numa constante disputa de posições, verbas e prestígios seja, a priori, mais confiável que o dos autores e personagens dos quatro Evangelhos. Nesse sentido, a diferença de credibilidade entre a teologia e as demais ciências se reduz a zero.

4. Assim sendo, o confronto de “fé” e “razão” é menos um debate proveitoso do que um equívoco retroativo nascido da concepção kantiana, inteiramente gratuita aliás, da fé como ato arbitrário da vontade.

Se você tem alguma objeção séria ao que acabo de dizer, escreva-a e verificarei se há nela substância que baste para alimentar um debate. Se não tem, vamos debater o quê, hein?
6. Proposta de debate (2)

2) A segunda quaestio disputata giraria em torno do seguinte tema: “Segundo a doutrina de Santo Tomás de Aquino, deve um teólogo-filósofo católico invocar o magistério da Igreja?”.

Este ponto não é de maneira alguma uma quaestio disputata. Ninguém discute se o filósofo católico deve ou não invocar o Magistério. É claro que deve. E desde os tempos de Sto. Tomás já está estabelecido que, caso esteja argumentando apenas como filósofo e não como teólogo, não deve invocá-lo como prova e sim apenas como elemento auxiliar de esclarecimento, mas nada impede e tudo ordena que deva fazê-lo ao falar como pregador, apologista e exegeta.Não vejo onde poderia se introduzir, aí, uma divergência capaz de dar margem a um debate.

Ao propor esse debate, só o que você faz é ocultar, sob o manto de uma divergência doutrinal tão nobre quanto inexistente, o verdadeiro ponto em questão. O que estou contestando não é que o filósofo ou quem quer que seja deva ou possa “invocar o Magistério”. O que contesto é que invocar o Magistério seja tão bom quanto usá-lo como pretexto para a prática de um crime.

Desviar o debate para uma questão geral de princípio é um expediente muito safado para camuflar o mau uso do princípio. Essa é aliás outra característica do modus pensandi não só do Sr. Silveira, mas do seu. Atendo-se às discussões gerais e de princípio, esquivam-se do exame das finalidades concretas com que o fazem.

Mutatis mutandis, é como se um delinqüente, perguntando se deve usar um crucifixo, visse na resposta positiva uma autorização para usá-lo como gazua para arrombar portas.
7. Proposta de debate (3)

3) E a terceira quaestio disputata giraria em torno do seguinte tema: “É possível conciliar a doutrina ético-política de Santo Tomás com o liberalismo e a democracia liberal?”.

Neste ponto seria talvez possível um debate, mas não com quem começa por confundir os termos da questão. Você se refere à democracia liberal como modelo abstrato, tal como concebido por John Locke e similares, ou às democracias liberais reais, historicamente existentes, nascidas não da imitação servil de um modelo e sim de circunstâncias histórico-sociais complexas, praticamente incontroláveis? No primeiro caso, não há o que debater: a resposta é obviamente “Não”, com a ressalva de que esse modelo, por definição, inclui espaço para a luta pelas concepções tomistas e portanto para a modificação possível da democracia liberal num sentido adequado à doutrina de Sto. Tomás. No segundo caso, a pergunta é imbecil, porque não se pergunta se uma coisa é compatível com as condições da sua subsistência. Desde o advento dos modernos regimes totalitários, a Igreja buscou abrigo sob as asas das democracias liberais e só graças à proteção destas últimas pôde subsistir e prosperar ao longo de todo o século XX.[4] E quando digo “a Igreja”, incluo aí a totalidade dos estudiosos do tomismo. Não consigo imaginar Garrigou-Lagrange ou Joseph Maréchal lecionando em Moscou sob Stalin ou em Havana sob Fidel Castro. Desse estado de coisas, puro dado empírico surgido de circunstâncias históricas, nasceu ex post facto, e quase espontaneamente, a tentação de “conciliar” tomismo e democracia liberal no plano doutrinário mediante remendos maritainianos. Embora reconheça nesses arranjos alguma utilidade política, ao menos no sentido de poupar à Igreja a acusação de ingrata e autocontraditória (por viver da compatibilidade prática com aquilo que ela mesma havia declarado incompatível na doutrina), eu seria o último a desejar defendê-los em teoria, que é precisamente o que você pretende que eu faça nesse seu “debate”.

Como as três questões sugeridas são extemporâneas e despropositadas, é evidente que o seu convite não tem outra finalidade senão dar ares de alta divergência teológica àquilo que não passa, em substância, do confronto moral, se não judicial, entre vítima e difamador.

Note, por favor, que nas observações com que respondi ao Sr. Silveira não levantei nenhuma objeção de ordem teológica ou filosófica; apenas denunciei a falsificação patente que ele fizera de um texto meu. É uma questão de fato, não de doutrina. Como é fato vergonhoso, torna-se bem compreensível que o Sr. Silveira e seu paladino estejam ansiosos para fugir de tão desagradável assunto para as alturas do debate doutrinal, exatamente como um ladrão que, pego em flagrante, tentasse camuflar o vexame provocando uma discussão erudita de Direito Penal.

Um debate não serve de nada se não parte de divergências sinceras, pertinentes e arraigadas na situação real. Fora disso, é puro teatro.

Quer ver como se monta um espetáculo nesse teatro? É simples. Pegue um sujeito que mencionou por alto algumas vantagens parciais e transitórias da democracia liberal, vista nele a camiseta de doutrinário do liberalismo (até mesmo sem distinguir entre o liberalismo como fórmula política e o liberalismo teológico já condenado como heresia), e convide o sujeito para um debate onde ele apareça como defensor de idéias que não tem. Aí você surgirá, no momento culminante, como porta-voz do Magistério e destruidor de heresias. Aplausos gerais. Pano.
8. Repetidor do Magistério (1)

Antes porém de terminar esta carta, quero frisar dois pontos:
a) Não sou teólogo nem filósofo, mas mero e pequeno repetidor do magistério infalível da Igreja e de Santo Tomás de Aquino e seus auxiliares.

E quem jamais pensou que você fosse filósofo, teólogo ou coisa assim? A espécie humana, que eu saiba, está informadíssima de que você é um professor de português e blogueiro, se tanto. O aviso, portanto, tomado na sua intenção aparente, é desnecessário e inútil.

Lido, porém, com mais atenção, revela uma utilidade mais profunda, insensível à primeira vista.

Se você fosse apenas um filósofo ou mesmo um teólogo, suas palavras expressariam meras opiniões pessoais, mais escoradas ou menos escoradas em fundamentos racionais e na doutrina da fé, mas nunca portadoras de qualquer autoridade superior à razão humana.

Como “mero repetidor do Magistério infalível”, você se torna automaticamente o representante, a personificação mesma da infalibilidade. Discordar da sua pessoa, nessas circunstâncias, só pode ser heresia, satanismo ou mesmo pecado contra o Espírito Santo.

Como a proposta de um debate afirma desde logo a existência de uma discordância, eu já entraria nele ostentando na testa esses rótulos ou outros piores ainda, se os há.

Você há de compreender que eu sinta uma certa inibição de discutir com Deus.

A afetação de humildade com que o seu aviso se apresenta é apenas a camuflagem de uma presunção demencial.
9. Repetidor do Magistério (2)

Mas que faz, exatamente, um “repetidor do Magistério”? Repete, literalmente ou por paráfrases, o que já foi dito. Qualquer um pode fazer isso. Um computador faz isso muito bem, principalmente se tem uma conexão com a internet e uma impressora.

Jesus, salvo engano, não ordenou que “repetissem” os seus Mandamentos, mas que os cumprissem. Não é algo que se possa fazer na esfera abstrata das afirmações gerais. Cumprir os mandamentos é imitar Jesus no campo das ações reais, das situações concretas e particulares. Não se pode compreender nenhuma situação concreta por mera dedução das regras gerais. Ao contrário, para saber qual regra aplicar, e como, você precisa já ter compreendido a situação concreta antes disso.

Não há limites para a quantidade de conhecimentos que podem ser necessários para a compreensão de qualquer situação concreta. Você pode extraí-los do senso comum, da experiência pessoal, da cultura literária e histórica, da psicologia, do Direito, da filosofia ou da teologia.

Não é como puro “repetidor do magistério” que você pode compreender qualquer situação concreta. É como homem – no sentido de uma alma formada pela totalidade das influências culturais absorvidas e organizadas numa síntese pessoal. Ora, pensar como homem, mas fazê-lo com pleno senso de responsabilidade, é precisamente o que se denomina “filosofar”.

Como não é possível filosofar sem incerteza, sem um senso atemorizante da falibilidade humana, é compreensível que algumas mentes covardes se recusem a fazê-lo e prefiram refugiar-se na segurança absoluta de “repetidoras do Magistério infalível”.

Na medida, porém, em que o Magistério se compõe de afirmações gerais que não podem substituir a compreensão das situações concretas, mas antes a requerem como condição prévia da sua aplicabilidade, o resultado é que o puro “repetidor do Magistério” se exime da responsabilidade de examinar a situação concreta antes de emitir sobre ela julgamentos que permanecerão tão infalíveis quanto deslocados e impróprios.

Dito de outro modo: o “repetidor do Magistério” dá aos fatos uma interpretação qualquer, impulsiva e irrefetida, e em seguida sai desferindo condenações e anátemas com a infalibilidade da doutrina eterna.

Em suma: o “repetidor do Magistério” está livre para fugir da realidade e buscar abrigo num reino etéreo de idéias gerais. Para mentir e dar à mentira o prestígio e a autoridade do ensinamento magisterial.

É exatamente isso o que você faz nesta sua “resposta”, ao dar a aparência de ataque despropositado e gratuito ao que foi, na realidade, a reação tardia, moderada e justa a uma longa e persistente campanha de intrigas e difamações.

Uma vez tomada como verdadeira a priori e sem o mais mínimo exame essa versão dos fatos, você está livre para tecer em torno dela as mais lindas considerações doutrinais, sempre no tom modestíssimo, humilíssimo, da infalibilidade divina.

É o mesmo procedimento usado pelo Sr. Sidney Silveira na sua ridícula “Resposta em tom de sermo vulgaris”, onde, fazendo de conta que ignora tudo o que andou dizendo e escrevendo contra mim desde muitos meses sem jamais ser respondido ou repreendido por isso, se apresenta como vítima inocente de um ataque verbal repentino, imotivado e sumamente pecaminoso.

Você vai até um pouco além: aproveita a ocasião para promover-se ao estatuto de adversário intelectual do Olavo de Carvalho – sonho dourado de tantos tagarelas idiotas neste país! –, desafiando-o para um debate que, como é bem do seu estilo, foge ao contato com a situação real e sai voando para a esfera sublime das puras questões doutrinais.

Não, Nougué, não quero participar do seu teatrinho, não quero ajudar você a posar de Sto. Tomás pisoteando Averróes, pela simples razão de que Tomás nunca mentiu contra Averróes nem o difamou.

Se você quer um debate, o tema deveria ser: “É justo, na doutrina tomista, o defensor da fé mentir, e mentir mentir nem mesmo contra um inimigo da Igreja e sim contra alguém cujo maior pecado foi defender a fé com mais eficiência do que ele, pregando, ensinando e convertendo, ainda que nem sempre o fizesse (concedo ad argumentandum) pelos meios convencionais e admitidos do magistério eclesial?”

b) Como sei de seu hábito de vituperar com impropérios, digo desde já: não responderei a eles, de modo algum. Se há algo que aborreço, são os bate-bocas, que geralmente não servem senão para inflar a soberba e provocar a má ira do homem. Ademais, dizia Santo Agostinho que, para pecadores como nós, todo sofrimento é justo. Pois bem, acrescento: se não posso deixar de defender, como fiz aqui, a honra de um pai de família e amigo como Sidney Silveira, saiba que, quanto à minha pessoa, toda e qualquer ofensa de sua parte a considerarei justa. Afinal, não devemos todos oferecer nossas miúdas humilhações Àquele que sofreu por nós as mais graves injúrias?

Oooooh, não exagere, não seja tão rigoroso consigo mesmo! Assim as pessoas vão até pensar que você é santo. Ponha um pouco de brandura nisso, ame a si próprio o suficiente para poder amar seus semelhantes ao menos um pouquinho.

Exageros teatrais à parte, o fato é que você não merece todos os xingamentos. Nunca o chamei, por exemplo, de veado, pois isso o colocaria numa situação deprimente e injusta: se você fosse veado, feio como é, teria de viver num estado de privação erótica deplorável, sendo os homossexuais, segundo dizem, hipersensíveis ao fator estético, do qual as mulheres, para sua sorte, às vezes prescindem na escolha de seus parceiros. Não, Nougué, você não é veado. Como no título que você inventou para o livro do Sérgio Brito, você só traz dano ao traseiro dos outros, não ao seu próprio, e aliás não o faz por meios genitais e sim bloguísticos.

Também não o chamei de filho da puta, pois, se sua mãe exercesse esse ofício, você apelaria à desculpa de ter sido criado num bordel e não ser, portanto, culpado de ter uma consciência moral deformada. Definitivamente, você não é um filho da puta. É o safadíssimo filho de uma senhora respeitável e gentil, da qual bem me lembro, que Deus a tenha.

Não precisa mesmo responder. Não há resposta para o óbvio.

Richmond, 17 de julho de 2011

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Notas:

[1] V. http://www.olavodecarvalho.org/textos/091120tanquerey.html. O trecho referia-se aos artigos “Filósofo boca-suja?” (http://contraimpugnantes.blogspot.com/2009/09/filosofo-boca-suja.html) e “Ainda o filósofo boca-suja” (http://contraimpugnantes.blogspot.com/2009/09/ainda-sobre-o-filosofo-boca-suja.html). Note-se que, ao retornar ao assunto neste segundo texto, o autor nem em sonhos tentava retificar a falsa impressão de que o filósofo acusado usara de palavrões contra “adversários filosóficos” e não contra políticos ladrões, líderes genocidas, seqüestradores, traficantes de drogas e tipos similares, que são os alvos costumeiros das minhas investidas radiofônicas. Fazendo-se novamente de humilde servidor da Igreja, reincidia na difamação com os ares mais inocentes do mundo. Também aí nada respondi, esperando que o episódio não voltasse a repetir-se, poupando-me assim o enfrentamento público com alguém que, malgrado tudo, era um católico. 

[2] Diga ele o que disser, não há desculpa para quem, ao ler uma crítica a algo chamado “neotomismo”, tente dar a impressão de que a crítica se refere a autores que viveram dois, três ou sete séculos antes da eclosão desse movimento. Foi mediante esse truque sórdido, impossível de ser praticado por erro inocente, que o Sr. Silveira, para me tornar abominável aos olhos da Igreja, tentou fazer de mim um inimigo de todos filósofos tomistas. Se isso não é difamação, a palavra “difamação” mudou de sentido. 

[3] Id.

[4] Os casos da Espanha e de Portugal sob Salazar e Franco merecem um estudo em separado, mas aí a pergunta teria de ser: “É possível conciliar as doutrinas de Sto. Tomás com o fascismo?”

A tradição revolucionária – 2

A tradição revolucionária - 2

 Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 15 de julho de 2011

Os efeitos da hegemonia revolucionária são visíveis por toda parte. Não faltam exemplos mais perto de nós. O “Plano Colômbia”, de Bill Clinton, fornecendo ajuda ao governo colombiano para o combate ao narcotráfico sob a condição de que “não tocasse nas organizações políticas”, serviu apenas para, desmantelando os antigos cartéis, dar às FARC o monopólio do comércio de drogas na América Latina, fazendo daquela incipiente organização guerrilheira uma potência de dimensões continentais e o sustentáculo financeiro do Foro de São Paulo que hoje domina doze países latino-americanos e vai rapidamente estendendo seus tentáculos por todos os outros. Ao mesmo tempo, o plano serviu de pretexto para que as mesmas FARC desencadeassem uma violenta campanha de publicidade contra a “agressão americana” personificada no mesmo plano. Dialeticamente, não há contradição nenhuma em beneficiar-se da ajuda recebida e usá-la como instrumento de propaganda contra o desastrado benfeitor. Muitos críticos do movimento revolucionário dizem horrores do “pensamento duplo” que o inspira, mas raramente entendem que por trás de uma aparente contradição lógica se esconde uma ação de mão dupla inteiramente racional do ponto de vista prático.

Por mais chocante que pareça, esse exemplo é rigorosamente nada em comparação com as grandes operações de desinformação estratégica com que o velho governo soviético conseguia — e o atual governo russo ainda consegue — fazer seus adversários trabalharem para ele, realizando integralmente o ideal de Sun-tzu, segundo o qual a mais brilhante das vitórias se obtém sem combate, moldando à distância as decisões do governo inimigo por meio de um bem calculado fluxo de informações entre verdadeiras e falsas.

Outro caso notável foi a facilidade com que a desinformação soviética, apelando à confiança dos americanos na invulnerabilidade das suas instituições democráticas e agitando na sua frente o fantasma da “perseguição marcatista” (em cuja realidade a mídia e o establishment continuam acreditando até hoje), logrou bloquear investigações decisivas sobre a penetração comunista nas altas esferas do governo de Washington, só para que quarenta anos depois a abertura dos arquivos de Moscou viesse a confirmar, tarde demais, as piores suspeitas do senador Joe McCarthy, com a única diferença de que os infiltrados não eram dezenas, como ele supunha, mas sim milhares.

Duas décadas atrás, a diplomacia chinesa, repetindo o truque que Lênin já aplicara aos investidores europeus em 1921 conseguiu convencer políticos e empresários americanos de que a abertura para a economia de mercado traria automaticamente a liberalização do regime. Mesmo após o massacre da Praça da Paz Celestial os sábios de Washington continuaram afirmando anestesicamente que “a China estava no bom caminho”. Com toda a evidência, o instrumento de desinformação utilizado no caso foi uma das crenças mais queridas dos liberais e conservadores: o nexo de implicação recíproca entre liberdade econômica e liberdade política.

O sucesso dos mais espetaculares ardis de desinformação estratégica postos em prática pelos governos revolucionários seria, no entanto, impossível sem a hegemonia cultural e psicológica de que o movimento revolucionário desfruta em escala mundial. Hegemonia cultural significa ser o controlador dos pressupostos embutidos no pensamento do adversário, de tal modo que o trabalho dos agentes envolvidos numa operação concreta de desinformação estratégica se reduz ao mínimo. Quando o agente de desinformação trabalha num ambiente já antecipadamente preparado pela hegemonia cultural, ele pode controlar facilmente as reações do adversário sem precisar abusar dos expedientes usuais da espionagem que tornariam a sua ação mais visível, mais material. Por isso o velho Willi Münzenberg chamava essas operações de “criação de coelhos”: basta juntar um discreto casal de bichinhos e contar com a propagação automática dos efeitos esperados. Uma ação clássica do tipo “medidas ativas” pode ser investigada e denunciada pelos meios usuais dos serviços de inteligência, mas uma operação fundada em prévia hegemonia cultural pode tornar-se tão evanescente que qualquer tentativa de denunciá-la acabe assumindo as aparências da mais louca “teoria da conspiração”. Por isso é que Antonio Gramsci qualificava a influência do partido revolucionário, quando escorada na hegemonia cultural, de “um poder onipresente e invisível”. Tanto mais invisível quanto mais onipresente.

Enquanto o movimento revolucionário se move com a destreza alucinante de uma dialética capaz de absorver e aproveitar todas as contradições, as elites ocidentais, nominalmente liberais ou conservadoras, se apegam a uma lógica linear de tipo positivista que, quando não encontra um elo material de causa e efeito escancaradamente visível, acredita que nada está acontecendo.

Os filósofos escolásticos ensinavam que, para agir, é preciso antes existir. A existência, por sua vez, pressupõe unidade e continuidade. Um ser dividido em pedaços, desprovido de vida unitária, não é de maneira alguma um ser: é uma ilusão fantasmal que se agita no ar por instantes, deixando livre o espaço histórico para a ação do ser genuíno.

Não há nenhum exagero em dizer que o movimento revolucionário mundial é a única força política que conta para alguma coisa na história do mundo. Enquanto seus adversários não o perceberem como unidade, nada poderão contra ele. Lutando contra uma de suas alas, acabarão servindo a alguma outra, como tem acontecido invariavelmente. No fim das contas, toda a política mundial corre o risco de acabar se reduzindo a um leque de conflitos internos do movimento revolucionário. Se e quando isso acontecer, não será excesso de pessimismo anunciar o início de mil anos de trevas.