Olavo de Carvalho
O Globo, 16 de dezembro de 2000
“Quem quer que empreenda falar da idiotice, hoje em dia, corre o risco de sofrer insulto: podem acusá-lo de pretensão ou de querer perturbar o curso da evolução histórica” – Robert Musil |
Nunca no Brasil o povo teve opiniões tão taxativas sobre assuntos que desconhece e não deseja conhecer. Nunca se acreditou tão piamente que para estar na verdade basta repetir frases feitas, amparado na alegre solidariedade de uma roda de amigos que dizem sim. Nunca a fé mais obtusa foi aceita com tanta facilidade como sinônimo de saber esclarecido. Nunca o mero ouvir dizer se substituiu tão completamente ao conhecimento.
Em tais circunstâncias, a revelação de fatos em contrário, em vez de poder abalar ou relativizar essas opiniões, é recebida como um abuso intolerável, que em última análise deveria mesmo ser proibido.
Os fatos sobre o Rio Grande, que um eficiente “cordon sanitaire” lograra manter longe do conhecimento do público, e que foram revelados pela primeira vez fora daquele estado no meu artigo da semana passada, não parecem ter suscitado nos corações esquerdistas o menor princípio de dúvida quanto às belezas que à distância e por mero contágio labial atribuem ao Governo Olívio Dutra. Ao contrário, despertaram apenas a típica reação de bater no carteiro, culpando-o pelas más notícias. Um fragmento de conversa de dois intelectuais, entreouvido por acaso numa elegante livraria do Rio, ilustra esse estado de espírito:
— Como é que deixam o cara escrever essas coisas?
– Você sabe, o que deixa o sujeito mais furioso é que ninguém desceu ao nível dele para responder…
– Você sabe, a grande mágoa dele é não estar na Academia.
– Sei.
— E o que o cara fez com o Carpeaux, hein? Transformou ele num católico!
– O que mais me assusta é que, nesse vazio em que vivemos hoje, um sujeito como esse pode ter impacto, sabe como é, ter seguidores…
– Pois é.
– E aquilo é tudo financiado, você sabe.
– Óbvio! É tudo financiado! Tem gente por trás. É o ovo da serpente.
E por aí vai. Conversas como essa rolam mais que cachaça, madrugadas a dentro, em ambientes universitários supostamente cultos. Sei delas porque seus ecos respingam diariamente na minha caixa postal eletrônica. E é sempre a mesma coisa: a mesma conjeturação psicótica de conspirações milionárias por trás de cada opinião pessoal de um notório pobretão, a mesma malícia ingênua, a mesma tagarelice sonsa de caipiras que se dão ares de “insiders” e trocam informações de bastidores sobre coisas que cada um ignora mais completamente que o outro.
A proliferação desses mexericos, que decerto não chegam a me magoar, mas que me assustam quando os considero como índices do grau de consciência da nossa classe letrada, tem uma origem muito simples. Quando comecei a escrever sobre a degradação da inteligência nacional, em 1995, uns quantos representantes dela (NB: da degradação) saíram em campo, mostrando seus títulos doutorais como dentes de leão, com a pose de quem ia fazer em picadinhos, num relance, o intruso desrespeitoso. Levaram as respostas que mereciam, botaram o rabo entre as pernas e se recolheram às suas respectivas insignificâncias, ou “cátedras”, restringindo-se daí por diante a falar de mim para rodas de alunos, “intra muros”, longe da arena jornalística e do execrável direito de resposta, instituição burguesa da qual tanto me prevaleci. Por menos que eu freqüentasse esses ambientes – pois minha mãe me ensinou a ver por onde ando –, cada passo dessa disseminação academo-epidêmica de tolices chegou ao meu conhecimento, ora pela boca de observadores intrigados que me relatavam o que tinham ouvido em classe, ora por meio dos próprios mexeriqueiros, que traíam o segredo da causa, depositando-o em listas de discussão e em “chats” da Internet, sem imaginar que fofoca atrai fofoca e que algum curioso sempre acabaria copiando as mensagens e remetendo-as a mim com um pedido de explicações aliás impossível de atender, pois certas condutas estão abaixo da possibilidade de ser explicadas. O tempo acabou condensando no meu HD um precioso acervo documental do puerilismo e da inconcebível estreiteza mental dos ambientes acadêmicos dominados pelo espírito de militância, ou militantância.
Sei que ao contar isso dou a essas crianças crescidas um motivo para novas analogias cinematográficas eruditamente alarmantes:
— Estão vendo? A serpente no ovo tem os Mil Olhos do Dr. Mabuse. É a Gestapo, cara!
Mas, por mais que essas almas hipersensíveis a zunzuns sejam impermeáveis aos fatos, vou lhes fornecer mais um.
A história do jornalista gaúcho processado por dizer o óbvio, que lhes contei na semana passada, não parou por ali. Quarta-feira, 13 de dezembro, a 5a. Câmara Criminal de Justiça de Porto Alegre, julgando o pedido de “habeas-corpus” impetrado pelo advogado Paulo Couto e Silva em favor de Gilberto Simões Pires, decidiu que não é crime dizer que as pessoas que usam crianças para a propaganda de ideologias violentas estão usando crianças para a propaganda de ideologias violentas. A bela vitória judicial obtida pelo comentarista da TV RBS no processo absurdo e insolente que lhe moveu o Governo do Rio Grande do Sul é um marco memorável na história da liberdade de imprensa neste país. Mas, justamente por ser memorável, não será memorizado. Será omitido dos registros jornalísticos até desaparecer por completo. Daqui a alguns anos, quando eu voltar a mencioná-lo, certos leitores se sentirão por isso autorizados a colocá-lo em dúvida e a me exigir provas, no mesmo tom de cobrança ríspida com que se dirigem a mim, hoje, quando falo do serviço de espionagem petista – aquele mesmo que, denunciado em 1993, sumiu tão completamente do noticiário que agora já pode, desde a confortável invisibilidade que o protege, mover os cordões da mídia para dar a aparência de coisa ilícita às atividades de seu concorrente legal, a Abin.