Leituras

PT colhe plantio

por Janer Cristaldo 

“Isso já passou dos limites”, disse o presidente Fernando Henrique Cardoso, comentando o assassinato do prefeito Celso Daniel. Elástica noção de limites, a do presidente. Ocorreram 307 seqüestros em São Paulo, só no ano passado. Quer dizer que quase um seqüestro por dia ainda não constitui limite? O brutal assassinato de uma senhora, liberada por seus captores e logo após fuzilada pelas costas em frente à própria casa, estaria ainda longe do limite? O narcotráfico, que administra as favelas e determina dias feriados ou de luto, fechamento de escolas ou comércio, não seria um limite?

Ao que tudo indica, não. Pois, em sua magnanimidade, o príncipe dos sociólogos tem uma generosa noção de limite. Os seqüestros e assassinatos cometidos pelos terroristas que queriam transformar o Brasil em uma imensa Cuba, não só foram anistiados como seus autores foram regiamente recompensados com cargos e polpudas aposentadorias. Sem ir mais longe, podemos começar por seu ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira.

Membro do Partido Comunista Brasileiro, optou pela luta armada ingressando na Aliança Libertadora Nacional (ALN), o grupo terrorista de Carlos Marighella, de quem era motorista. Marighella, se alguém não mais lembra, é o autor do Manual do Guerrilheiro Urbano, traduzido em várias línguas na Europa e livro de cabeceira das Brigadas Vermelhas italianas e do Baader-Meinhoff alemão. (Em Estocolmo, em plena social-democracia nórdica, encontrei uma tradução do manual em sueco). Foi morto em 1969, em uma emboscada pela polícia e hoje é cultuado como santo pelas esquerdas.

Em agosto de 1968, Aloysio Nunes – de codinome Mateus – participou do assalto ao trem pagador da Santos-Jundiaí. Em outubro, ao carro pagador da Massey-Ferguson. Ainda no mesmo ano, viajou com passaporte falso para Paris, onde passou a coordenar as ligações de Cuba com os comunistas brasileiros. Lá, filiou-se ao Partido Comunista Francês e negociou com o presidente Boumedienne, da Argélia, para que comunistas brasileiros recebessem treinamento militar naquele país. Com a Lei da Anistia, de 1979, regressou ao Brasil, onde foi eleito pelas esquerdas deputado estadual, vice-governador e deputado federal. Amigo dileto de Fidel Castro, após uma visita a Cuba no ano passado, o ditador foi ao seu embarque e o acompanhou até o avião para as despedidas, em homenagem a seu passado revolucionário.

O agitprop internacional, assaltante e guerrilheiro, assecla de Marighella e íntimo de ditadores, com o cinismo peculiar das esquerdas quando chegam ao poder, declarou recentemente à jornalista Ana Paula Padrão:

“Em outros momentos – eu me lembro – no tempo do regime militar, os serviços de repressão puderam desmantelar o PCB, o PC do B, a ALN, a VPR, o MR-8. Será que não podem dar conta desses criminosos que hoje fazem seqüestros relâmpagos e esse tipo de ação?”

Poder, podem, Mateus. O problema é que quando estes grupos são desbaratos, os criminosos viram ministros.

Não menos interessante é ouvir Fernando Henrique condenar seqüestros. Logo Fernando Henrique, que humilhou a nação ante uma sórdida campanha na imprensa internacional financiada por uma rica família do Canadá e avalizou a libertação de seus filhinhos seqüestradores, condenados pela Justiça a quase três décadas de prisão.

Lula, o tetracandidato, foi correndo solidarizar-se com o entourage da vítima e participou de uma marcha pela paz. José Genoíno fala em Rota nas ruas e prisão perpétua. A multidão de petistas que acompanhou o enterro do prefeito pede pena de morte. Um programa de segurança do PT assume um projeto novayorquino e neoliberal, a tolerância zero. Quem empunhava estas bandeiras há questão de dois anos? Paulo Maluf, qualificado como fascista por empunhá-las. Acontece que as eleições estão aí e é preciso entrar em sintonia com o que eleitor pede.

Por ocasião do seqüestro de Abilio Diniz, outro era o discurso do tetracandidato. Apressou-se em intermediar as negociações entre seqüestradores e polícia, de modo a garantir a integridade física, não do empresário, mas … dos seqüestradores. Fernando Henrique Cardoso, mais seu ministro da Justiça na época, José Gregori, mais a Igreja, o PT e entidades ligadas aos famigerados Direitos Humanos empenharam-se com afinco na libertação dos canadenses. Quando o governo de um país, o líder da oposição e mais a Igreja lutam pela libertação de seqüestradores, qual mensagem recebe o grande público? Só uma: seqüestro pode render lucros e permanecer impune.

Talvez o leitor contemporâneo já nem lembre, mas foram as esquerdas que introduziram no Brasil esta modalidade. Em nome de utopias assassinas, começaram a seqüestrar aviões e diplomatas. Dialogavam não com pessoas, mas com Estados. Curvem-se as nações ante o Brasil: seqüestro de aviões tem patente tupiniquim, é achado genuinamente nosso. No curto período em que estiveram na prisão, os seqüestradores exerceram uma função didática, ensinando suas técnicas aos presidiários de direito comum. E agora se queixam do progresso dos alunos.

A tolerância das esquerdas com o seqüestro sempre foi óbvia, pelo menos até a semana passada. Alguém ouviu algum dia o PT condenar as FARC colombianas, que fazem do seqüestro sua estratégia privilegiada de obtenção de fundos? Eu nunca ouvi. O que vi, isto sim, foi o governo petista gaúcho receber com tapete vermelho um bandoleiro das FARC. Que, não contente em ser recebido quase com dignidade de chefe de Estado, andou fazendo palestras em escolas Brasil afora, em comunidades administradas pelas esquerdas.

Os seqüestros do passado não constituem crimes para estes senhores. Neste insólito país, onde os derrotados escrevem a história presente, são tidos como atos heróicos e patrióticos. Até mesmo crimes horrendos tinham nobres conotações. As vestais que hoje se chocam com a execução brutal de Celso Daniel, não manifestaram horror algum ante outra execução também brutal, a daquele infeliz soldado que Lamarca executou, prisioneiro e indefeso. Ninguém, nas esquerdas, pediria prisão perpétua ou pena de morte para o assassino de um companheiro de armas. Pelo contrário, Lamarca hoje está instalado na galeria dos Vultos da Pátria, gozando do mesmo status de um Tiradentes. Ninguém, nas esquerdas, foi prestar solidariedade à família do soldado morto. Mas há projetos de impor aos currículos escolares a vida e obra deste santo homem, capitão Carlos Lamarca.

O pensamento de esquerda criou um caldo cultural onde criminoso não é mais criminoso, mas vítima. Onde invasor de terras é herói e o proprietário que as defende é bandoleiro. Onde Luis Carlos Prestes é beato e Che Guevara vira santo.

São chegados os dias de colheita.

25/01/2002

 

O varejo e a liderança nas indústrias

José Nivaldo Cordeiro


5 de janeiro de 2002

A revista Exame que está nas bancas trás uma excelente reportagem de capa sobre o comportamento de diversos mercados, destacando o avanço de marcas pouco conhecidas no ranking dos mesmos, contrariando o manuais de marketing em uso nas academias e no comando das gigantes nacionais e multinacionais. A reportagem é assinada pelo editor executivo Nelson Blecher e é daquelas que deverão ser lida por muito tempo. É uma referência para a compreensão da dinâmica do mercado brasileiro.

Todas as análises listadas na reportagem sobre o fenômeno estão corretas e pertinentes. Mas penso que a reportagem deixou pelo menos quatro pontos importantes sem o devido aprofundamento: 1- Não há barreiras à entrada na maioria dos mercados de bens de consumo de massa, razão pela qual qualquer descuido das marcas líderes enseja o aparecimento de um enxame de novos concorrentes; 2- É falsa a visão dos executivos de marketing de que o esforço mercadológico, com ênfase na comunicação, é a condição para o triunfo no mercado, o que induz a uma postura arrogante por parte das indústrias líderes em relação aos concorrente e aos canais de distribuição; 3- A dependência de força de venda terceirizada, com a estrutura em cascata dos impostos, pode significar a diferença entre ter lucro ou prejuízo; e 4- A relação coma rede varejista tem que ser cultivada como a variável estratégica de qualquer negócio, sob pena de fracasso mesmo das melhores marcas e dos melhores produtos.

O primeiro ponto parece uma obviedade. O conhecimento tecnológico para a produção da maioria dos produtos está incorporado no maquinário e a mão-de-obra gerencial treinada para tocar a fábrica é relativamente abundante. Então não há barreiras significativas nem de conhecimento e nem de custos, de modo que pessoas empreendedoras e com faro empresarial podem se estabelecer com grande sucesso.

O segundo ponto é a arrogância dos executivos de marketing, hoje já bem menor do que no passado, mas não o bastante. Nas empresas de bens de consumo de massa esses executivos normalmente são o poder, relegando opiniões valiosas dos executivos de vendas a segundo plano. Eu mesmo tive uma experiência didática quando era gerente de vendas de uma grande indústria de iogurtes. Na época fomos procurados por uma grande cadeia de varejo para fabricar a sua marca própria , o que naturalmente nos daria uma vantagem competitiva formidável em relação aos concorrentes, pois essa era a segunda maior cadeia varejista do país, à época. A idéia foi vetada pelo diretor de marketing, sob o falso argumento de que assim estaria prostituindo-se o mercado. É claro que um concorrente menor topou a parceria e aumentou substancialmente a sua participação no mercado, em prejuízo da marca líder.

Qual foi o erro de análise de diretor de marketing? Que a sua tarefa não era vender a produção industrial enquanto tal, mas sim, uma marca, uma evidente bobagem. Um coisa não colide com a outra, muito ao contrário. Está claro que a razão estava com o diretor de vendas, que queria o negócio, mas não teve força para vencer um argumento falso.

A utilização de distribuidores e outros intermediários no processo de venda caducou em muitos mercados. A forte concorrência obriga a prática de margens pequenas sobre o custo de produção, do contrário o produto não vende, de modo que colocar intermediários significa agregar custo de impostos sem agregar valor. É suicídio. A estratégia correta é terceirizar a logística, mas preservar a força de venda. A logística deve ser entregue aos melhores operadores do ramo, que podem reduzir substancialmente os custos, mas tirar pedidos nos mercados, fazer o trabalho de merchandising e demais as ações nos pontos-de-venda tem que ser encarado como uma necessidade estratégica, algo como o coração do negócio. Produzir não é o mais importante; o essencial é vender.

Por fim, é preciso sublinhar que a rede varejista, desde aquelas pequenas com apenas um ou poucos pontos-de-venda, até aquelas gigantes, devem ser tratadas de forma personalizada, conhecendo-se toda a estrutura decisória e procurando antecipar-se aos movimentos estratégicos dessas empresas. Para isso é preciso uma força de venda muito bem treinada. Um perfeito conhecimento do setor varejista é a condição para uma ação de sucesso em qualquer indústria e não fazê-lo pode custar bem caro. Uma organizada inteligência de vendas é absolutamente essencial mas, diga-se, é algo mais fácil de dizer do que de fazer.

O varejo é o locus onde a vitória ou a derrota de qualquer negócio se consuma. É a lição mais relevante de mercado nos tempos atuais.

Erasmo e a Reforma

José Nivaldo Cordeiro


2 de janeiro de 2002

Continuando a série de artigos a partir dos temas extraídos do livro de Paul Johnson, História do Cristianismo, será abordado neste a Reforma religiosa que explodiu no século XVI. Como é bem o método de Johnson, ele sempre parte de personalidades destacadas, sua biografia e sua psicologia, para construir o fio narrativo. Para esse tema, sem dúvida o autor elegeu a figura de Erasmo de Roterdã como emblemática dos novos tempos, um fiel continuador da obra paulina e um adversário intelectual de Agostinho.

Contudo, para entrar no tema antes é necessário contextualizar a formação do momento. Falar da Reforma é também falar do Renascimento e de sua grande e revolucionária novidade, a imprensa, mais precisamente as técnicas de impressão mecânica. A Terceira Força, no dizer de Johnson. Com ela, não mais haverá como controlar os textos sagrados, nem os clássicos, nem a difusão de conhecimento. O Imprimatur dos censores eclesiásticos passou a não controlar mais coisa alguma, o que era facílimo nos tempos das cópias manuscritas, de feitio lento e caro e inteiramente sob controle do clero. É ela que vai plantar a semente do livre exame das Escrituras, quebrando o monopólio clerical.

Antes, convém algumas poucas observações sobre o período medieval.

A Idade Média foi um tempo em que prevaleceu por toda a Europa o cristianismo total, que regulava a vida de toda a sociedade, em todas as classes sociais. A Igreja Católica dividia o poder com os reis e príncipes, estando o mesmo concentrado na esfera civil, mas não há dúvida de que o clero, e sobretudo o Papa, eram a autoridade moral. Ninguém conseguiria governar contra a Igreja.

Foi também um momento em que a Igreja contaminou-se pelas razões de Estado. Na verdade, o papado era uma monarquia absolutista e espelhava o modelo de Estado reproduzido no meio civil. O problema é que freqüentemente a Igreja, a partir da teologia civil de Agostinho, era o próprio Estado, com todas as suas conseqüências. Os horrores das caças aos hereges, às bruxas, aos judeus, o exercício da justiça draconiana contra os inimigos e os homens simples teve a bênção e mesmo a inspiração na Igreja. Foram tempos de injustiça e dor, mas também foram tempos de grandes avanços. As ordens religiosas revolucionam as técnicas agrícolas, sendo a Igreja e seus membros os inovadores e os detentores do conhecimento que permitiram o grande salto na oferta de alimentos, que viabilizou a expansão sem paralelo da população européia, sem dúvida uma das condições e talvez a causa mais profunda do advento dos tempos moderno.

Johnson vai encontrar em Agostinho a ideologia legitimadora para escorar a ação civil da Igreja, de certa forma a fonte a legitimar o poder absolutista, que muitas vezes abusou da tortura e das execuções sumárias. Não é uma página dignificante da nossa história.

Em paralelo, foi a Igreja a depositária e a responsável pela preservação dos conhecimentos humanistas e científicos. Praticamente nenhum homem de pensamento importante pôde frutificar fora do abrigo da Igreja. Sem ela, certamente a Europa – e o Ocidente como um todo – teria quebrado os elos culturais com a antigüidade clássica e a erudição judaico-cristã.

O apogeu do poder de Estado coincidiu com as formas mais abjetas de simonia no seio da Igreja. As relíquias, algumas verdadeiras fraudes, serviram para explorar a crendice popular e para extorquir recursos dos crédulos. A Igreja passou a vender bênção e salvação, através de indulgências. O fato é que a Igreja estava corrompida e todos os homens respeitáveis clamavam por reformas, muito antes do século XVI. Se o papado tivesse tido a clarividência e a humildade de conduzi-las, a história teria sido outra e a cristandade não precisaria ter a sua unidade quebrada.

Ao iniciar a narrativa desse período, Johnson focaliza inicialmente a visita feita por John Colet, reitor da Escola de São Paulo e fundador da nova escola de gramática, e Erasmo, ao Santuário de Cantuária, na Inglaterra, por volta de 1512. O relato do autor é chocante:

“Em seus últimos Colóquios, Erasmo deixou-nos um relato da visita e seria difícil conceber um pequeno episódio mais pungente, às vésperas da Reforma, que esse confronto entre o santuário do triunfalista clerical martirizado e os dois mais convictos apóstolos do Novo Ensino. Os dois eruditos eram homens pios e sua visita foi reverente. Contudo, o relato de Erasmo deixa claro que ambos ficaram profundamente chocados com o que viram. As riquezas que adornavam o santuário eram espantosas. Erasmo considerou-as incongruentes, desproporcionais, tesouros ‘perante os quais Midas e Creso teriam parecido mendigos’; trinta anos depois, os agentes de Henrique VIII recolheriam, dali, 140 quilos de ouro, 125 de folheado de prata, 150 de prata pura e 26 carroças de outros tesouros. Colet irritou o sacristão que os acompanhava ao recusar-se a dar um beijo reverencial em uma importante relíquia, o braço de São Jorge, e ao tratar um velho trapo supostamente embebido no sangue de S. Tomás com um ‘assobio de desprezo’. A três quilômetros da cidade, perto do asilo de pobres de Harbledown, a impaciência do reitor com o ‘cristianismo mecânico’ foi submetida a mais um teste quando um mendigo licenciado os aspergiu com água benta e ofereceu o sapato de S. Tomás para que o beijassem: ‘será que esses tolos esperam que beijemos os sapatos de todos os bons homens que já existiram?’, indagou, furioso. ‘Por que não nos trazer seu cuspe e seus excrementos para que os beijemos?’ Após esse encontro memorável, os dois homens retornaram a Londres” (página 321).

Homens como eles, e mais Pico dela Mirândola, Marcilio Ficino, Lorenzo de Valla, e Johann Rauchilin, eruditos que redescobriram os tesouros culturais guardados pelos bizantinos e judeus, em grego e hebraico, foram os agentes da grande transformação que viria. “Para Ficino, Platão, cujas obras fundamentais agora se encontravam disponíveis no grego original, pertencia a um série de intérpretes do divino, que tinha início com Zoroastro e passava por Hermes Trismegisto e Pitágoras – uma sabedoria antiga que antevia e confirmava o cristianismo. Ao mesmo tempo, todo o espectro da erudição hebraica, que se havia mantido intocada na Espanha por séculos, foi disponibilizada para o Ocidente por Mirândola, que uniu a teosofia cabalista judaica à cosmologia neoplatônica… Assim, o Novo Ensino entrou em conflito, pela primeira vez, com a Igreja estabelecida. Agora, os homens tinham condições de estudar os textos gregos e hebraicos no original e compará-los com a versão recebida em latim, tratada como sacrossanta pelo Ocidente por séculos… A mensagem do Novo Testamento era, na verdade, a seguinte: um maior conhecimento é a ponte para uma verdade espiritual mais pura. Ficino, Pico e Rauchlin defendiam a existência de uma religião, por assim dizer, natural; a existência, por parte de experiências filosóficas e religiosas diversas, de uma unidade. Ao longo dos séculos, os acréscimos haviam obscurecido essa verdade: o Novo Ensino pretendia redescobri-la e purificá-la” (páginas 322/323).

Essa busca da verdade por meio da crítica, a partir das novas descobertas, foi a base do Renascimento e o ponto a partir do qual a reforma da Igreja tornou-se um movimento irresistível. E, claro, a alavanca motora foi certamente o surgimento das técnicas de impressão, que baratearam e abreviaram enormemente o processo de produção de livros e outros materiais impressos.

“A difusão de novos conhecimentos praticamente coincidiu com o desenvolvimento técnico da imprensa. A coincidência assegurou a aceleração de ambos” (página 323).

Erasmo é fruto dessa nova era de estudos e comunicações. Ele “tornou-se um erudito de elevados padrões acadêmicos; era também um popularizador e jornalista, que compreendia a importância da comunicação. Queria que seus livros fossem pequenos, acessíveis e baratos e foi o primeiro escritor a compreender todas as potencialidades da imprensa. Trabalhava com velocidade, com freqüência na própria gráfica, escrevendo e corrigindo suas provas na hora. O cheiro de tinta de impressão – o incenso da Reforma – o estimulava… Na década de 1530, havia trezentas mil cópias de seu Novo Testamento grego em circulação, e mais de 750 mil de suas outras obras. Era um grande fenômeno, um best-seller mundial vivo” (página 326).

Dois pontos são centrais no movimento da Reforma, além dessa explosão de conhecimento permitido pela imprensa e pela erudição. O primeiro é que a consolidação de uma grande classe média, letrada e capaz de estudar independente da Igreja os textos sagrados, enfraqueceu a autoridade eclesiástica mesmo em assuntos estritamente religiosos. Essa classe média letrada era positivamente anticlerical. O segundo fator é a releitura das Epístolas paulinas, especialmente aquela dirigida aos Romanos, em tudo e por tudo contrária à Igreja enquanto instituição hierárquica e contra a simbiose entre o poder civil e a religião. A combustão foi rápida e o incêndio incontrolável. O Ocidente jamais seria o mesmo.

Lutero e Calvino (e os demais reformadores), os apóstolos do novo tempo, ao quebrarem a unidade da fé cristã criaram também as condições para a emergência dos maiores horrores que a humanidade já conheceu. Primeiro as guerras religiosas, depois as guerras entre os Estados cristãos, que culminaram com as Grandes Guerras do século XX. A história da Reforma é a história da intolerância. Erasmo anteviu isso com toda clarividência: “Erasmo era um pacifista. Não aceitava a doutrina da ‘guerra justa’. Se cada Estado optasse por seu próprio tipo de religião, segundo os ditames do governante, a guerra, pensava ele, seria inevitável’ (página 333). É claro que essa postura de Erasmo quanto à “guerra justa” o colocava em posição absolutamente antagônica a Agostinho.

Um olhar sobre a história européia e do cristianismo sugere que há uma evolução gradativa no processo de consciência individual, ao preço de muito sofrimento e muita dor, a começar pelo sacrifício do próprio Cristo Jesus. Desde então tem sido uma luta constante de indivíduos isolados para manter a chama da consciência, quase sempre em oposição aos poderes mundanos e muitas vezes com risco da própria vida. O tempo da Reforma não foi diferente. Por trás das controvérsias teológicas, via-se que na verdade acontecia o confronto entre o poder coletivo dos Estados (e das Igrejas) com os indivíduos que ousaram seguir o seu próprio caminho e ter as suas próprias convicções. Muitos foram covarde e impiedosamente assassinados, às vezes anonimamente. Mas os “restos de Israel” puderam sempre sobreviver.

Veremos no próximo artigo que durante a Segunda Guerra mundial esse eterno conflito entre César e Cristo não mudou a sua qualidade, mas assumiu dimensões ciclópicas.

O que consola a quem observa o processo como um todo é que, no final, o Bem sempre triunfa sobre o Mal, Mal esse que tem no poder de Estado a sua expressão mais acabada e a sua ferramenta mais afiada para sacrificar os homens tocados pelo Espírito.

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