Leituras

O testemunho de Hilferding

Por Alceu Garcia


17 de março de 2002

Quando eu era criança, acreditava em Papai Noel. Quando adolescente, eu podia jurar que o nazismo e o fascismo foram movimentos reacionários patrocinados e dirigidos pela alta burguesia em sua luta abjeta contra o heróico proletariado e sua zelosa vanguarda de intelectuais. Porém, na medida em que me debrucei sobre o assunto com um mínimo de objetividade e isenção, essa sólida convicção foi se dissolvendo. Como negar que Mussolini foi um destacado e virulento socialista marxista na Itália de antes da Primeira Guerra, elogiado até por Lenin? O programa político do Partido Nazista – aliás Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães – poderia ser subscrito tranquilamente pelo nosso PT, se omitidas as menções aos judeus, sem que ninguém notasse nada de estranho. Ademais, ambos os movimentos tiveram amplo apoio popular, mas do que o comunismo. Havia algo de profundamente errado na teoria que eu aprendera da propaganda esquerdista dominante. Tudo se esclareceu totalmente quando travei contato com a obra de autores liberais, tais como Ludwig von Mises (Omnipotent Government e Uma Crítica ao Intervencionismo) e Friedrich Hayek (O Caminho da Servidão). Esses estudiosos alegaram e provaram mais do que satisfatoriamente que tanto o comunismo quanto o nazifascismo foram movimentos socialistas revolucionários e anticapitalistas. Seu parentesco decorre do fato de que todos beberam nas mesmas fontes doutrinárias: Hegel, Blanqui, Marx, Sorel e outros.

 Fuçando as bibliotecas, descobri o testemunho robusto nesse mesmo sentido de um marxista puro-sangue, Rudolf Hilferding (1877-1941), perdido entre dezenas de depoimentos de comunistas arrependidos reunidos por Julien Steinberg no livro Verdict of Three Decades: >From the Literature of Individual Revolt against Communism, 1917- 1950. Hilferding, um eminente marxista austríaco, chegou por caminhos diferentes às mesmas conclusões de seus compatriotas liberais a respeito da identidade essencial entre comunismo e nazi- fascismo.

 Não se trata de uma opinião qualquer. Hilferding foi talvez o único economista marxista dotado de originalidade e espírito independente além do próprio Marx. Ele estreou na arena das polêmicas teoréticas, ainda muito jovem, desafiando, para o debate sobre da teoria do valor- trabalho, pedra fundamental da doutrina da mais-valia, ninguém menos do que o consagrado Eugen von Böhm-Bawerk, então reconhecido mundialmente como um dos maiores economistas de seu tempo. Bohm- Bawerk publicara uma crítica demolidora à essa concepção fundamental do marxismo. Marx, asseverou o pioneiro do marginalismo, reduz erradamente o valor de uma mercadoria à quantidade de trabalho necessária à sua produção, com isso ignorando exceções óbvias como a terra, que tem valor e não é fruto do trabalho. Ademais, o valor de uso dos produtos é abstraído da análise geral do valor, abstração arbitrária e descabida que invalida irremediavelmente essa teoria como meio adequado de compreensão de seu objeto. Por outro lado, Marx admite que os preços das mercadorias raramente ou mesmo nunca coincidem com o valor de troca supostamente decorrente do trabalho nelas cristalizado, sendo que, aliás, não há como reduzir o trabalho, heterogêneo por definição, a uma unidade de conta homogênea e constante.

 Hilferding retrucou ressaltando que no capitalismo o valor de uso das mercadorias é irrelevante, de vez que se trata de um modo de produção fundado apenas no valor de troca. Segundo ele, na economia capitalista as relações se dão entre coisas, não entre pessoas, posto que tudo, inclusive o trabalho, é “reificado”, reduzido à mercadorias. A conclusão é que, no contexto analítico marxista, a precisão e a quantificação não são importantes, mas sim a revelação das leis globais da troca, as quais, “em última instância”, são regidas pela lei do valor. Essa réplica não convence. Apartar da análise o valor de uso, ou seja, as valorações subjetivas, é um absurdo. É extirpar o que há de humano nos homens e, aí sim, “reificá- los”. De resto, se no exame marxista nem o valor de troca nem a quantidade de trabalho servem para determinar com precisão os preços, então não servem para nada. É mera impostura travestida de ciência. A resposta de Hilferding, entretanto, bastou para satisfazer a sectária ortodoxia marxista de seu tempo e granjeou fama para o autor.

 Hilferding fez jus a essa notoriedade com sua obra-prima, o tratado sobre o capital financeiro Das Finanzkapital, de 1910. É com efeito um livro interessante, escrito com lucidez e sobriedade raras num autor dessa escola. Ele reitera o insight de Marx de que o sistema capitalista tende inexoravelmente para a superconcentração do capital, face aos vultosos recursos necessários para se fazer frente às despesas com uma produção cada vez mais dependente da alta tecnologia. As pequenas e médias empresas são varridas do mercado e absorvidas pela concorrência dos grandes conglomerados. Esse processo é acompanhado pelo crescimento do capital líquido controlado pelos bancos, o capital financeiro, que subjuga as indústrias escravas de suas necessidades insaciáveis de capital circulante. Ocorre então uma mutação na ideologia burguesa, do livre-comércio e livre-concorrência para os mercados fechados e estratificados em cartéis e oligopólios. Deflagram-se disputas entre as potências capitalistas avançadas pelos mercados globais, que resultam em guerras imperialistas. O autor não exclui a possibilidade de que toda a economia mundial termine englobada em um único e vasto supercartel.

 A interpretação de Hilferding, conquanto fundada numa descrição razoavelmente acurada dos fatos, está errada mercê das categorias analíticas equivocadas que utiliza. Na verdade, o que ocorria na época era um retorno ao mercantilismo sob nova capa socialista, graças ao fortalecimento do poder político e sua ascendência sobre a indústria e a finança. O próprio Hilferding reconheceu posteriormente, como veremos, que o poder político tem uma dinâmica própria que transcende e absorve o econômico. Nada impede que uma economia de mercado avançada global opere com base nos princípios do livre-comércio e da livre-concorrência. Monopólios só são efetivos, i.e., só conseguem impor preços de monopólio, quando o governo proíbe tout court a competição, ou a inviabiliza indiretamente, como no caso do protecionismo. Cartéis e oligopólios são combinações inerentemente instáveis e tendentes à dissolução, posto que os seus membros mais competitivos logo se cansam de carregar os menos eficientes nas costas e baixam seus preços. Novamente, apenas a coerção estatal confere estabilidade e durabilidade a tais combinações de produtores. O fato de existirem grandes empresas não anula a soberania dos consumidores. Tamanho não é documento. Se fracassar em sua tarefa de satisfazer seus clientes, a empresa, seja de que tamanho for, quebra ou é suplantada por outras mais ágeis. Estamos carecas de testemunhar casos assim. Por outro lado, uma economia mundial sujeita a um único supercartel é tão inviável quanto o socialismo global puro, uma vez que, como Ludwig von Mises provou, num e noutro caso inexistiriam preços para os fatores de produ&c cedil;ão, todos de propriedade de um único dono, de modo que o cálculo econômico racional seria impossível. Por fim, o que Hilferding descreve como transformação da ideologia burguesa é na realidade a ascensão da ideologia antiburguesa, socialista, que resultaria no comunismo e no nazi-fascismo.

 Com a cisão entre a social-democracia e o comunismo em 1917, Hilferding preferiu a primeira, tendo inclusive ocupado altos cargos ministeriais em governos de seu partido na Alemanha de Weimar. Jamais, porém, abjurou de sua filiação marxista, nem deixou de pensar segundo categorias estritamente marxistas. Comparado à ralé intelectual que seguiu os comunistas, Hilferding se destaca como um grande pensador. E foi como marxista que ele comparou e igualou comunismo e nazi-fascismo no citado artigo, escrito em 1940, que passamos a analisar. O austríaco ridiculariza ab initio a caracterização do comunismo soviético como “capitalismo de estado”. Se o governo é dono de todos os meios de produção, a economia capitalista está morta. A economia de mercado tem natureza mercantil, fundada no motivo do lucro e na propriedade privada, na concorrência e nos preços formados pela interação entre oferta e procura. Ora, a economia de estado “elimina a autonomia das leis econômicas”. A direção da produção deixa as mãos dos empresários, pois é uma “comissão planejadora que passa a determinar o que é produzido e como”. Os preços perdem sua função paramétrica para o processo econômico e se tornam simples decretos estatais arbitrários. Não existem mais mercadorias, porque as trocas foram suprimidas. A acumulação subsistente não é mais a mesma da lógica capitalista. Hilferding nega, ademais, que a burocracia seja uma “nova classe dirigente”, como queria Trotsky. A burocracia, na sua ótica, é um estamento rigidamente hierarquizado, um instrumento maleável nas mãos de quem realmente detém e exerce o poder: o autocrata supremo. É ele quem dá as ordens; cabe &a grave; bucracia obedecê-las e executá-las. A economia é subjugada pela política e suas leis deixam de ter validade. A oposição clássica entre burguesia e proletariado é superada e absorvida pelo Estado Totalitário, o qual opera de acordo com suas próprias leis e reduz a si toda a sociedade. “Apesar das grandes diferenças em seus pontos de partida, os sistemas econômicos dos Estados Totalitários estão se aproximando cada vez mais uns dos outros”, escreve o autor. Ele, porém, recusa-se a reconhecer o comunismo russo como materialização da doutrina marxista, visto que, segundo pensa, esta é inseparável da democracia. Para Hilferding é irrelevante a controvérsia sobre o caráter socialista ou capitalista da União Soviética. “Não é uma coisa nem outra. Ela representa uma economia de Estado Totalitário (grifo do autor), isto é, um sistema do qual os sistemas econômicos da Alemanha (nazista) e da Itália (fascista) estão se aproximando cada vez mais”.

 Por mais fascinante e honesta que seja essa opinião, não podemos endossá-la integralmente. As leis e regularidades econômicas jamais são revogadas, como pensava Hilferding. O Estado Totalitário não é onipotente, nem pode violar impunemente as regras da economia. Mais cedo ou mais tarde é o Estado Totalitário quem leva a pior e acaba se auto-destruindo, como a experiência soviética ilustra. Outro ponto a ser impugnado nas alegações do austríaco é a recusa de considerar socialista o que de fato era socialista. A supressão da propriedade privada, dogma do marxismo, só pode gerar um vácuo que fatalmente será preenchido pela propriedade coletiva concentrada no Estado. O Estado só pode se estruturar burocraticamente, não há outro meio. E uma sociedade reduzida ao Estado só pode engendrar uma ordem totalitária. O socialismo é, pois, intrinsecamente totalitário e incompatível com a democracia. Deve-se discordar da distinção que Hilferding traça entre os pontos de partida do nazismo, fascismo e comunismo. Todos foram essencialmente socialistas e violentos, e recorreram à métodos similares para alcançar e manter o poder. Quanto à burocracia, ela era realmente uma nova classe dominante. Trotsky estava certo nesse particular. É verdade que se tratava de um estamento sujeito aos caprichos de um autocrata. Mas como esse autocrata prevalecia em sua luta pelo poder contra outros candidatos à autocracia? A burocracia o escolhia e acatava. O terror do ditador contra os burocratas, embora comum, não durava para sempre. Ele acabava por se abrandar e a burocracia consolidava então o seu poder em uma miríade de feudos e alianças, em meio à frouxidão crescente da hierarquia. Pelo menos foi assim na URSS.

 Rudolf Hilferding foi capturado e executado pelos nazistas em 1941. Não teria tido sorte diferente nas mãos dos comunistas.

A certeza das incoerências

A Coerência das incertezas: símbolos e mitos na fenomenologia histórica luso-brasileira
Autor: Paulo Mercadante
Editora: É Realizações
Páginas: 352
Preço: R$ 50,00

Cláudio Lembo


Folha de São Paulo, sábado,16/03/2002

Em estilo sincopado, as histórias brasileira e portuguesa se desenvolvem com coerência e certezas. Esta é a convicção que surge da leitura de “A Coerência das Incertezas”. Ao iniciar a trajetória, o leitor sente alguma dificuldade. As trilhas parecem levar a lugar nenhum. Há um rompimento com o usual ou costumeiro na descrição dos acontecimentos históricos. Depois, adaptando-se ao estilo e passando a entender as veredas indicadas pelos símbolos construídos pelo autor, a partir de fatos reais, o envolvimento torna-se pleno e a ânsia por conhecer novos sinais e novas situações transforma-se em obsessão, muito mais a Freud que a Jung.

Aí, em rito obsessivo, avança-se e descobre-se que as histórias entrelaçadas de portugueses e brasileiros se encontram suportadas por símbolos nítidos. O domínio da “cruz” e a presença do “patrimonialismo” com “xenofobia” e “nepotismo” se encontram revelados desde os primórdios da nacionalidade luso-portuguesa.

Esses símbolos levam a outros. As “flechas” e as “armadilhas” são colocadas a todo tempo na caminhada das pessoas. Estas, cheias de cobiça, querem a “terra”, o “ouro”, a “madeira” e, em busca desses elementos, utilizam-se da “cruz”, das “flechas” e das “armadilhas”.

Neste enredo, o líder se utiliza dos símbolos, como em qualquer outras terras, mas, por aqui, busca, sem preocupação moral, o poder pessoal, utilizando-se de elementos vindos do exterior sem qualquer preocupação com os valores culturais locais. A prática é acentuada no período pombalino e permanece até nossos dias.

Ontem o francesismo, o anglicanismo ou o germanismo; hoje a globalização modelada pelos valores americanos. Assim, caminhamos sem a capacidade de gerar identidade própria.

Houve momento diferenciado. Este se deu quando Portugal, “cujo povo, de suprema intuição e inteligência, traçava seu projeto de unir e ligar no planeta diferentes povos e culturas”. Depois, findo o ciclo atlântico, chegam novos símbolos, que derrubam a “cruz”, os “nobres” e os “burocratas”. Implanta-se a corrupção e o autoritarismo, como herdeiros da Inquisição e das práticas religiosas deformadoras. Permanecem, contudo, os símbolos antigos: o “brasão” e o “ouro”. Os nobres desfilam “status”, “ainda que isso significasse apenas simulação”.

A partir da amarga legenda de d. Sebastião, paradoxalmente, nasce o “cadáver” como símbolo. João Pessoa, na Revolução de 1930, Jaime da Silva Telles e Demócrito de Souza Filho colocam fim ao Estado Novo e, em anos seguintes, Getúlio Vargas se transforma em cadáver e este em símbolo, após o seu suicídio. Esta deferência ao símbolo “cadáver” origina-se do “catecismo fanático”, que impõe o sofrimento para se atingir bem-aventuranças. Os jejuns prolongados e as agonias de fome levam a exaustão da vida e aparecem como caminho para se atingir o reino celeste, como apregoou Antônio Conselheiro, vítima de outro símbolo, o “bacamarte” empunhado pelo Estado.

Com a chegada da família real ao Brasil, um novo símbolo se revela àquela elite desorientada que aporta no país. Pela leitura do jornal parisiense “Monitor”, soube d. João 6º, antes mesmo da invasão francesa, que fora destronado. O veículo de comunicação apresentava o novo. Era jornal e este produz um símbolo que vem até nossos dias com insistência e presença, o “papiro”.

No “papiro”, encontraram os povos daqui e de além-mar o suporte para suas novas ficções, entre elas, a mais expressiva, o “constitucionalismo”. O “papiro” suporta todas as idealizações e, mistificando a realidade, a transforma em utopia jamais alcançável. Ao atingir a contemporaneidade, o autor não resiste e se transforma em crítico ácido e amargo de personagens e acontecimentos.

Jânio Quadros surge como idealizado pela plebe, como demagogo salvador, brandindo o símbolo da “vassoura”, como se fosse simulacro da lança templária. Tancredo Neves é indicado como salvador do sistema que sempre condenou. José Sarney sucedeu o morto antes de ser presidente e passa a ser “guiado por imprensa medíocre e por jornalismo alienado de inspiração esquerdista”. Ulisses Guimarães, o herói das diretas-já, é apontado como “declaradamente oportunista, revelou-se energúmeno político”.

O espaço maior é reservado à social democracia e a seus agentes brasileiros. São identificados como portadores da bagagem da Contra-Reforma. Apresentam-se como titulares do Saber da Salvação, montados no cavalo do atraso. E o atual governo?

Um punhado de burocratas socialistas, travestidos de liberais, egressos das universidades públicas, dirigido pelo corporativismo das estatais e por professores-banqueiros com fantasia de esquerda. No vértice, Fernando Henrique Cardoso, que, no governo, disfarçou a linguagem socialista, iludindo a opinião pública com o artifício da moeda estável, o real, graças a juros elevadíssimos pagos ao capital especulador.

A pergunta final do autor: que símbolos conduzem um país com potencialidades ao caos e ao risco de secessão? Ele responde de pronto. Estes símbolos são “cruzes”, “estandartes” e “brasões” transmudados em “passeatas”, “foices”, “martelos” e o “vermelho”. Cabe ao leitor, ao término da leitura, formular dois pedidos ao autor: a elaboração de um glossário para identificar tantos símbolos e tantas figuras e o acréscimo, na longa série produzida, de mais um símbolo: a “dinamite”, usada em muitos passos até atingir sua potência maior nos momentos derradeiros da obra.

CLÁUDIO LEMBO é professor de direito constitucional na Universidade Presbiteriana Mackenzie e autor de “O Futuro da Liberdade” e “A Opção Liberal”, entre outras obras.

As redes “nômades” e sua estratégia rumo ao caos

Tradução de Carlos Alberto Reis Lima


Libertad Digital, Madrid, 10 de março de 2002

Com uma estrutura descentralizada, uma organização “horizontal” e objetivos imediatos diversificados tenta se dar aparência de espontaneidade às manifestações contestatórias, inclusive àquelas marcadas pela violência.

No recente 2o. Foro Social Mundial de Porto Alegre (2o. FSM) se reconheceu que boa parte das agitações comuno-anárquicas e contestatórias efetuadas no mundo ao longo de 2001, germinaram durante o 1o Fórum Social Mundial de Porto Alegre (1º FSM), efetuado em janeiro de 2001.

Por exemplo, um documento do influente Conselho LatinoAmericano de Ciências Sociais (CLACSO), apresentado no 2o. FSM, afirma com todas as letras que “o notório incremento de ações coordenadas” de “protesto global” e de “conflito social” ocorridos na América Latina e nos principais países ocidentais em 2001 foi possível devido ao “espírito de Porto Alegre” (1o FSM). Uma prova disso, acrescenta o documento, com indissimulável satisfação, é que “em numerosos casos” os “atores desse conflito” foram movimentos sociais que haviam participado na dita “primavera de Porto Alegre”. De sua parte, Cristophe Aguitton, da organização internacional ATTAC, admitiu que durante o 1º FSM os participantes italianos fizeram as articulações e definiram “os detalhes para preparar a mobilização de Gênova”. Se tratou de uma contra-cúpula organizada por grupos de esquerda católicos e comuno-anarquistas, efetuada em julho de 2001 simultaneamente com a reunião dos chefes de Estado do Grupo dos 8, que derivou em atos de inusitada violência de rua.

Que fatos de similar natureza poderiam ocorrer em 2002, surgidos das entranhas do 2o. FSM? A julgar por un “calendário” de ações de “resistência” para os próximos meses -apresentado durante o fechamento do 2o. FSM e publicado pelo semanário “O São Paulo”, da arquidiocese de São Paulo, Brasil- a 1a série de “protestos” de caráter mundial não será pequena. “O Fórum Social Mundial não é simplesmente um lugar de debates, mas de organização da luta”, advertiu durante a sessão de fechamento do 2o. FSM Sergio Haddad, presidente da Associação Brasileira de ONGs e membro do comitê organizador do 2o. FSM. De sua parte, Maria Luisa Mendonça, do mesmo comitê organizador, disse que na verdade o 2o. FSM não pode ser visto como um “comando” das “lutas mundiais” que se aproximan, mas que constitui um espaço “de articulação” .

Essa precisão feita pela mencionada dirigente de nenhuma maneira torna menos preocupante a perspectiva de conflitos que se abrem com o 2o. FSM. Ao contrário, o sistema de “redes” adotado pelas ONGs da esquerda em geral, e pelas entidades que participaram no 2o. FSM em particular, torna possível estabelecer entre elas uma articulação “horizontal” e não “vertical”, uma nova estratégia organizativa que torna difícil a identificação dos responsáveis das ações de protesto e até de violência de rua, o qual os outorga, ao olhos da opinião pública, uma aparência de “espontaneidade”. Immanuel Wallerstein, um dos “ícones” da esquerda mundial presentes no 2o. FSM, explica que “Porto Alegre marca um ponto de inflexão, pois mostra que uma nova forma de estratégia pode existir: uma estrutura descentralizada de múltiplas organizações locais, nacionais e internacionais com incontáveis objetivos imediatos, trabalhando em conjunto rumo a um objetivo comum”. Se trata, acrescenta, da continuação de um movimento contestatório de “movimentos sociais”, de caráter universal, que tem como ponto de partida nada menos que a explosão anarquista de maio de 1968, em Paris.

Já por ocasião do 1º FSM, Christian de Brie, redator do Le Monde Diplomatique, em seu artigo “O retorno dos rebeldes”, havia explicado que “assistimos ao florescimento das associações de uma riqueza e uma variedade impressionantes, que participam na contestação à nova ordem mundial: desde os movimentos associativos locais, até as organizações não governamentais (ONGs) internacionais”, que “soman, no total, várias centenas de milhares, mobilizando a muitas centenas de milhões de militantes”. E conclui: “A todo momento, de uma ou outra forma, em algum lugar do mundo, o movimento social organiza resistências e lidera mobilizações que no caso que sejam apresentadas de forma correta pelos médios de comunicação – revelariam a todo o mundo a dimensão destas lutas”.

Durante o 2o. FSM, o jornalista brasileiro Roberto Nicolato cubriu o lançamento de numerosos livros, de diversos autores internacionais, sobre o “novo pensamento” de importantes setores de esquerda. Ele explica que os atuais teóricos revolucionários, resgatando “os ideais do anti-poder do movimento de maio de 68”, se baseiam em conceitos como o da “zona autônoma temporária”, com o qual se “combate o poder criando espaços (virtuais ou não) de liberdade, que surjam e desapareçam a todo momento, de acordo com as chamadas táticas nômades de luta”. São essas idéias que inspiram “muitas das táticas de rua” dos movimentos contestatórios em diversos países, acrescenta.

Também, os anti-princípios sustentados pelas chamadas teorias do caos, com seu desprezo pelas leis de causa e efecto – e a substituição destas por supostas leis de indeterminação e acaso- passam a ser aplicados às ciências sociais, assim como as estratégias de ação revolucionária, o que contribui para empurrar as nações contemporâneas rumo à anarquia. É  na perspectiva dessa relevante inflexão do pensamento e da estratégia de importantes setores revolucionários, que deve entender-se uma afirmação do socialista Jean-Luc Melenchon, ministro francês da Educação, durante o 2o. FSM, em um seminário onde se debateu o futuro do socialismo. Ali, sustentou que “não existe mais o determinismo histórico” pois  história “não é linear pois a natureza é incerta, casual”. Dessa maneira, fica aberto o caminho para o caos.

Com estas considerações, nosso objetivo foi ilustrar, com base no ocorrido no 2o. FSM e nas declarações de destacados participantes, a bifurcação teórica em curso dentro do pensamento revolucionário contemporâneo entre as correntes clássicas marxistas e as novas correntes de inspiração anarquista. Bifurcação teórica, mas não necessariamente prática, pois ambas vertentes têm sua força e seu estilo de organização própios, que confluem no objetivo de destruir os restos da civilização cristã (cfr. “Fórum Social Mundial e Fórum de São Paulo se dão as mãos”). De fato, a “heterogeneidade” e a “diversidade” são uma “característica saliente” dos atuais movimentos revolucionários, destaca o já citado documento de CLACSO, no qual não se contrapõem nem excluem “velhos” e “novos” movimentos, “mas que aparecem como elementos que podem complementar-se e potencializar-se na ação coletiva”. Ou seja, para conjugar e multiplicar o poder destruidor de ambas correntes, se trata de evitar o tipo de enfrentamento que ocorreu no século XX entre estalinistas, trotskistas e seguidores de Rosa Luxemburgo, segundo foi recordado nos debates durante o 2o. FSM.

Diante dessa gigantesca escalada anticristã em curso – que tem sido ilustrada ao longo de uma série de informes da agência CubDest sobre o 2o. FSM- a Divina Providência não abandonará aqueles que dentro do respeito às leis de Deus e dos homens, em um plano intelectual e publicitário, e ainda com recursos limitados, estão dispostos a apresentar resistência e oposição.

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