Leituras

Enfim uma cartilha católica

Por Percival Puggina

8 de julho de 2002

A cada dois anos, com a proximidade das eleições, surgem cartilhas eleitorais voltadas ao público católico. Elas são anunciadas como oriundas da CNBB, embora provenham de algumas de suas pastorais sociais ou do departamento da referida instituição a que essas pastorais estão vinculadas. Seus redatores olham para o jogo político em desenvolvimento, escolhem o lado em que devem jogar, e, por pura coincidência, escolhem sempre o mesmo lado.

É evidente que tais cartilhas não proclamam de maneira explícita a natureza de sua opção pois isso acabaria por as desacreditar. Estrategicamente, incorporam a linguagem e a mensagem do grupamento político pelo qual optaram e que se beneficia de uma dupla mistificação: de um lado a que cuida de confundir as pastorais com a CNBB, a CNBB com o conjunto do episcopado, e, por extensão, com a própria Igreja; de outro, a fingida neutralidade que reproduz tudo o que um lado do quadrante político diz e silencia sobre tudo o que ele deve ouvir.

Assim, um grupo de militantes, aos quais se junta, às vezes, um bispo de referência, passa a ser “a” Igreja. E aquilo que é feito para pôr mais tinta no pincel de determinada cor política, se apresenta alvo como asa de anjo. Não raro, para tornar mais insinuante a mensagem e mais útil o trabalho, essas cartilhas incorporam esquemas de reunião política com jeito de novena enquanto respingam verdades absolutas sobre opiniões totalmente relativas e pessoais.

Finalmente, surge, neste ano, uma cartilha eleitoral realmente católica. O arcebispo metropolitano de Porto Alegre, D. Dadeus Grings, profundo conhecedor da Doutrina Social da Igreja, produziu um texto em que todos os temas são abordados numa perspectiva doutrinária e apenas doutrinária.

Escapa, com isso, ao lugar comum daquelas com que nos habituamos. Não interessa ao arcebispo outra coisa senão enunciar princípios, apontar condutas moralmente reprováveis e afirmar valores perenes, aplicáveis a uma análise consistente da realidade nacional, que pode ser aproveitada por qualquer facção política. Não deixa de ser curioso que o simples fato de ser assim foi suficiente para gerar protestos daqueles que se aproveitavam da dissimulada propaganda eleitoral que caracterizava as cartilhas anteriores. E isso é mais uma evidência de que D. Dadeus está absolutamente correto.

Percival Puggina é arquiteto e preside a Fundação Tarso Dutra de Estudos Políticos e Administração Pública.

Discutindo o capitalismo

Por José Nivaldo Cordeiro

7 de julho de 2002

“Quem é fiel nas coisas mínimas, é fiel também no muito. Portanto, se não fostes fiéis quanto ao Dinheiro iníquo, quem vos confiará o verdadeiro bem? Se não fostes fiéis em relação ao bem alheio, quem vos dará o vosso?” (Lucas, 16,10-12, tradução da Bíblia de Jerusalém)

Não é fácil discutir a o termo capitalismo. Parece que todas as pessoas sabem tudo sobre o assunto e não têm qualquer dúvida. A palavra está tão desgastada pelo uso político que, para certas correntes de pensamento, virou quase um palavrão. Acusar alguém de capitalista é quase uma condenação ao fogo dos infernos. Não obstante, é preciso discernir a realidade que se apresenta ao mundo de hoje enquanto capitalista (Ocidente) e a sua negação (China, países socialistas), supostamente a sua superação, segundo o credo marxista. Algumas áreas são ainda consideradas pré-capitalistas, especialmente na África e no Oriente.

Malgrado o uso político que se faz do termo, importa tentar aqui analisar o seu significado na literatura relevante. Ninguém discordaria de que por capitalismo entende-se a organização social assentada na livre iniciativa, na qual impera a igualdade jurídica de todos os cidadãos e a propriedade privada, existindo a relativa separação entre o poder econômico e o poder político, tendo como característica uma radical divisão social do trabalho, razão pela qual os seus membros, para sobreviverem, precisam participar do processo de trocas. Essa forma de organização social mostrou-se a mais produtiva e eficiente quando comparada a qualquer outra, permitindo que as pessoas, mesmo as mais pobres, tenham um elevado padrão de vida relativamente a outras formas de organizações sociais. Só no capitalismo o Homem escapou de muitos dos determinismos naturais, como fome, doenças e cataclismos diversos que o perseguiram desde a Noite Original.

As interpretações correntes do termo capitalismo são tão abundantes quanto insatisfatórias, não obstante a sua definição ser quase banal. Como tive alguns dias para descansar, decidi reler o clássico de Max Weber “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” (Ed. Pioneira, 2001) e aproveitei para reler a resenha desse livro feita por Alain Peyrefitte em “A Sociedade da Confiança” (Ed. Topbooks, 1999). Não satisfeito, procurei na Internet a referências e citações sobre o assunto e aparecerem centenas delas. Lamentavelmente, à exceção do artigo do professor Meira Penna publicado no Estadão sobre a citada obra de Peyrefitte e uma introdução a essa obra feita pelo filósofo Olavo de Carvalho, todo o resto se resume a um duelo laudatório entre os seguidores de Weber e os seguidores de Marx.

Esse três autores são as referências para a compreensão dessa forma de organização social. Peyrefitte, como veremos abaixo, é muito superior aos outros dois, mas lamentavelmente é pouco divulgado no Brasil.

A idéia de Marx, de que a infra-estrutura determina a superestrutura e que as relações de produção são determinadas pelo desenvolvimento das forças produtivas, tenta explicar o processo pelo resultado. Não define as causas determinantes das transformações nas formas de organizações sociais. Seria o mesmo que dizer que é dia porque o Sol brilha. Não explica nada.

O fundamental é que ocorre precisamente o contrário da primeira assertiva – a de que a infra-estrutura determina a superestrutura. Não é casual que o capitalismo é gestado no Ocidente judeu-cristão e isso Marx não poderia ter colocado em evidência, tão prisioneiro que estava em seus esquemas mentais de ódio a tudo que fosse religioso. Preferiu imaginar um pueril processo mecânico como força determinante da História, que não resiste à análise de alguém mais atento.

O ponto fundamental é que o Cristianismo, ao abraçar a máxima do “ama o próximo como a ti mesmo”, plantou no Ocidente as condições para que pudesse existir a igualdade jurídica entre as pessoas – numa palavra, a liberdade – fundamento último de todo o sistema jurídico, político e econômico construído ao longo dos últimos dois mil anos. O Apóstolo Paulo já bradava ao quatro ventos que “Deus não faz acepção das pessoas” e isso é realmente a grande novidade na História do ponto de vista sociológico. Sem a mensagem salvadora de Cristo ainda estaríamos vivendo formas imperiais e/ou tribais de organização social.

Não passa de avaliação de intelectual alienado a idéia de que as relações de produção são determinadas pelo desenvolvimento da forças produtivas. Sem a força salvadora da mensagem cristã a escravidão e a servidão estariam ainda a vigorar, impossibilitando a explosão da produtividade do trabalho verificada nos dois milênios que passaram, com ênfase nos últimos quinhentos anos.

A tradição cristã é também herdeira do racionalismo clássico greco-romano. A combinação da ética cristã com a filosofia é que permitiu o que Weber enfatiza como o racionalismo empregado no processo produtivo, ou seja, o conhecimento científico aproveitado como técnicas aplicadas à produção.

O capitalismo não pode ser definido como um mero processo de trocas e produção para o mercado, algo que, em maior ou menor proporção, sempre foi feito ao longo da História. A novidade é que na sociedade moderna essa forma de produzir se torna preponderante, combinando liberdade de iniciativa e a busca de técnicas mais eficientes para produção. Muito menos lhe dá especificidade o fato de ser uma produção voltada para o lucro. O lucro nas outras formas de organizações sociais existe e é freqüentemente, e com razão, identificado como uma forma de logro ou roubo, vez que nasce muitas vezes da violência do monopólio e da coerção sobre o consumidor. Na ordem capitalista, ao contrário, o lucro nasce no processo de agregação de valor, validado unicamente pelo mercado – pelo consumidor, no livre exercício de sua escolha, no usufruto da sua liberdade – tornando-se o oposto do logro. Há a troca de equivalentes no mercado, condição para que a liberdade efetivamente impere. O consumidor passa a ser o centro de interesse do processo produtivo e o árbitro a determinar quais os produtores devem sobreviver e quais aqueles que devem desaparecer. A competição no mercado pelo consumidor é a chave do processo.

A análise de Weber é insuficiente por muitos motivos. Em primeiro lugar – e o seu maior erro – é associar a eclosão do capitalismo com o protestantismo, quando na verdade ele está relacionado com o Cristianismo enquanto tal. Talvez essa limitação advenha de dois fatos que lhes impediram um melhor discernimento. Um, a sua condição de protestante. É como se por sua pena as disputas teológicas e religiosas de últimos três séculos (seu livro foi publicado em 1904) ainda continuassem. Há claramente uma visão depreciativa do catolicismo, ao qual ele associa diretamente o atraso, sem qualificar corretamente a sua origem. O outro fato é que Weber esqueceu que durante a Idade Média houve uma explosão da produtividade agrícola pelo talento dos monges católicos, que inovaram em técnicas de produção e na organização do trabalho, tornando-se o pré-requisito para a expansão econômica dos tempos modernos (Ver Paul Johson “História do Cristianismo”, Ed. Imago, 2001).

Em segundo lugar, ele esqueceu que o catolicismo foi o herdeiro direto do Império Romano e era essa herança imperial maldita que impedia o desenvolvimento econômico na velocidade em que se deu nos países protestantes. Para piorar, o próprio movimento de Contra-Reforma foi um instrumento de restauração imperial, impondo o centralismo e a desconfiança – como bem assinalou Peyrefitte.

Em terceiro lugar, ao contrário do que Weber diz (“a conduta ascética significou um planejamento racional de toda vida do indivíduo”. Página 109), foi a herança clássica que permitiu a racionalização dos meios de produção. Não podemos jamais esquecer que o Renascimento é precisamente a redescoberta dos filósofos e poetas da Antiguidade.

Escapou a Weber que o fator decisivo é que o Cristianismo reformado livrou-se das peias do centralismo imperial. Nas áreas “liberadas”, como EUA, Inglaterra e Holanda, cujos governos foram reduzidos e a descentralização administrativa realizada – em suma, reduziu-se o Estado e implantou-se o livre mercado – o capitalismo decolou primeiro. O fator explicativo não é, pois, o protestantismo, mas sim, o Cristianismo livre das amarras imperiais, que tolhiam as áreas católicas. Nos EUA ocorreu a máxima liberação das energias produtivas, vez que desde o início a vigilância dos indivíduos contra o gigantismo estatal foi a tônica.

Longe de mim está a intenção de minimizar a monumental obra de Max Weber, alguém cuja erudição não pode ser questionada e cuja seriedade científica não pode ser posta em dúvida. Mas é preciso questionar a sua principal conclusão, que a meu ver está errada, pelas razões acima. Ele, todavia, teve o mérito de retirar os determinantes econômicos para explicar esse fato histórico da maior relevância. Isso não é pouca coisa em um mundo acadêmico dominado pelo equívoco do marxismo.

A notável contribuição de Peyrefitte é deslocar a discussão da Economia para a Etologia na definição do determinante para a decolagem do processo de desenvolvimento. O fundamental é a criação de um ambiente de confiança na relação entre os indivíduos e o Estado e entre os próprios indivíduos. Ele aponta a grande contradição que há entre a lógica do império, que centraliza e desconfia das pessoas, e a lógica dos Estados liberais, em que acontece o inverso.

Para ele, a livre iniciativa não combina com um ambiente hierarquizado, próprio das relações imperiais. Onde essa relação foi substituída pela confiança, aconteceu a decolagem do desenvolvimento. É preciso ler atentamente a obra de Peyrefitte para uma correta compreensão dos fatos históricos.

Os Estados socialistas nada mais fizeram do que restaurar a ordem centralizada do Império, matando qualquer elemento de confiança que pudesse ser a semente da prosperidade dos seus povos. Da mesma forma, o Brasil e, de resto, a América Latina, parecem estar ainda vivendo a Contra-Reforma e o ideal mercantilista. Pior, alguns já querem implantar de um golpe a ordem imperial socialista. Como, então, prosperar? O desenvolvimento não pode ser construído fora da ordem liberal, que é sinônimo de livre iniciativa e da relação de confiança. É essa a lição ensinada por Peyrefitte e nós lamentavelmente ainda não a aprendemos.

No mais sereno dos mundos

Por Percival Puggina

6 de julho de 2002

O ideal teria sido ocultar o fato. Ignorar a destruição do monumento. Considerar que o relógio nunca existiu. Retirar dos calendários brasileiros o dia 22 de abril, tanto no ano de 2000 quanto no de 1500. Não ouvir o governador sobre coisa alguma a menos que ele queira e, por fim, considerar perfeito tudo que sua excelência diz e faz. Bastaria essa polida e conivente atitude para vivermos no mais sereno dos mundos. Não precisaríamos sequer de jornalistas, nesse paraíso oficial. Seríamos informados por publicitários do próprio governo, assistiríamos a TVE, evitaríamos a circulação de jornais de outros estados e seríamos tão felizes quanto nos dissessem que éramos. Em Cuba é assim e o pessoal só se lança ao mar porque gosta de esporte náutico.

Há uma outra possibilidade, também utilizada na ilha do doutor Castro: ver e agir como se não tivesse visto; ouvir e proceder como quem não ouviu. As pessoas que fazem assim se dão muito bem; não são perseguidas, nem processadas, nem condenadas. E quando aparece, no rebanho, alguma ovelha desgarrada, disposta a balir de modo impertinente, desabam sobre ela as hostilidades institucionais. Todo cubano sabe que a tranqüilidade é fruto do silêncio.

Sei que tudo isso pode parecer estranho ao leitor que aprecie os sonoros acordes da democracia. Mas convenhamos: eles não costumam soar muito harmônicos a certos detentores de poder. Para estes, a liberdade de opinião, como o próprio nome parece sugerir, é um atributo da opinião e não da pessoa. E tudo resulta muito desconfortável e complicado quando cada um – jornalistas em especial – resolve exercer um suposto direito, tão burguês quanto esse de dizer o que pensa.

No mais sereno dos mundos, as coisas funcionam exatamente assim: você pode explodir um monumento, desde que a explosão seja feita por companheiros, com supervisão de autoridades do Estado; você pode impedir a realização de um congresso jurídico desde que nele se tratem de assuntos que desagradem o partido do governo; você tem toda segurança pública à sua disposição, desde que o evento seja de esquerda; você pode bloquear uma rua ou estrada, desde que o protesto seja contra o governo federal; você, servidor público, tem dispensa de ponto para viajar, desde que seja para protestar contra o FMI e o FHC; e você, jornalista, tem todas as informações que desejar desde que leve uma estrelinha no peito. E se você não pode criticar o governador, tem todo o direito de se vingar criticando o presidente da República. Ele deixa.

Surpreendente? Não! Surpreendente é que ainda tenha gente, por aí, que não entendeu o espírito da coisa.

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