Leituras

Ignorância e poesia

Olavo de Carvalho

9 de abril de 2000

Minha amiga Graça Salgueiro chamou-me a atenção para as frases dos vestibulandos da UFRJ/1999 publicadas algum tempo atrás pelo Jornal do Brasil como exemplos de burrice juvenil. Pois fiquem sabendo que entre elas há verdadeiros achados – provando que nos abismos da ignorância podem ocultar-se tesouros de intuição poética. Sinceramente, algumas são tão boas que eu gostaria de tê-las escrito:

“O nervo ótico transmite idéias luminosas ao cérebro” parece saído diretamente de um livro de filosofia natural do século XVIII.

“O problema fundamental do terceiro mundo é a superabundância de necessidades” não ficaria nada mal num artigo de Roberto Campos.

“A igreja ultimamente vem perdendo muita clientela” é a expressão correta de um fato puro e simples, pelo menos para quem sabe no que a Igreja se transformou.

“O sol nos dá luz, calor e turistas” é lindo. Parece saído de uma crônica de Carlinhos Oliveira, ou mesmo de Rubem Braga.

“A harpa é uma asa que toca” é uma maravilha, um verso digno da Anthologia graeca. Ezra Pound daria pulos de entusiasmo.

“A insônia consiste em dormir ao contrario.” Stanislaw Ponte Preta daria um braço para produzir uma frase dessas.

“A fé é uma graça através da qual podemos ver o que não vemos” é talvez a mais exata definição da fé, aliás bem próxima de uma de S. Paulo Apóstolo.

“A Previdência Social assegura o direito à enfermidade coletiva” é José Osvaldo de Meira Penna no seu melhor estilo.

Eu daria um 10 a todos esses meninos e os aprovaria no curso de Letras. No mínimo, eles escrevem melhor do que os repórteres do JB.

O. de C.

Vilém Flusser e a dúvida cartesiana

Olavo de Carvalho

9 de abril de 2000

Agradeço a meu amigo Fernando Klabin ter-me chamado a atenção para o recém-publicado A Dúvida, de Vilém Flusser, filósofo judeu tcheco que viveu trinta anos no Brasil e escreveu em português vários livros de primeira ordem. Flusser, porque era um filósofo de verdade, permaneceu sempre um marginal em relação ao establishment uspiano e preferiu aproximar-se do grupo de Miguel Reale e Vicente Ferreira da Silva no Instituto Brasileiro de Filosofia. Não me espanta, e aliás muito me reconforta, que esse espírito superior tivesse me antecedido na linha de investigações que adotei ante o cartesianismo (v. 
Descartes e a Psicologia da Dúvida, nesta homepage). O livro A Dúvida, onde ele realiza esse exame fundamental, tinha permanecido inédito até agora. Ainda não o li e não sei como Flusser encaminha a investigação. Pelo que leio na excelente resenha de Gustavo Bernardo, parece que a diferença específica reside no fato de que ele propõe e intenta o “duvidar da dúvida” como uma meta ideal, como um capítulo seguinte na linha que vai de Descartes a Husserl, ao passo que eu asseguro que a dúvida da dúvida é simplesmente um fatopsicológico, que a estrutura mesma do ato de duvidar pressupõe duvidar da dúvida, algo que não foi percebido nem por Descartes nem por Husserl e cuja descoberta, até certo ponto ao menos, torna inviável o uso da dúvida sistemática como método filosófico. Flusser seria assim uma sentinela avançada da tradição cartesiana, enquanto eu me coloco decididamente fora dela e retorno ao método anamnético de Sto. Agostinho, no qual o cogito não surge como fundamento epistemológico, mas como simples momento no processo destinado a revelar o fundamento divino da autoconsciência humana. De outro lado, ele enfatiza a crença como ponto de partida da dúvida, ao passo que eu assinalo a presença de uma multidão de crenças afirmativas no próprio tecido interno do processo dubitativo. Parece que é isso, mas não sei. Vamos ler. O caso é apaixonante. E tudo o que Flusser disse merece ser ouvido com a maior atenção. – O. de C.

Resenha de A Dúvida por Gustavo Bernardo

O Globo, 28 de março de 2000

A Dúvida, de Vilém Flusser. Relume-Dumará 104 pgs. R$ 15.

‘Vilém Flusser foi um pensador vigoroso, denso e incisivo. Para ele, o pensar filosófico era uma urgência vital”. Assim Celso Lafer, no prefácio de “A dúvida”, define obra e personalidade do filósofo tcheco-brasileiro que escrevia em quatro línguas e pensava sempre como imigrante ou estrangeiro, permitindo-se perspectiva absolutamente original sobre textos, imagens e acontecimentos.

Flusser nasceu em 1920, em Praga, e morreu em 1991, em Praga; aos 20 anos fugiu dos nazistas para o Brasil, onde viveu 30 anos, para depois morar na França. Publicou mais de 30 livros – a maioria em alemão embora os tenha escrito também em português como “Língua e realidade” (1963), “A história do diabo” (1965), “Ficções filosóficas” (1998) e este “A dúvida”, inédito em qualquer língua e que é a síntese de sua obra.

Assim define Flusser seu mais espinhoso tema: “A dúvida é um estado de espírito polivalente. Pode significar o fim de uma fé, ou pode significar o começo de uma outra. Pode ainda, se levada ao extremo, instituir-se como ‘ceticismo’, isto é, como uma espécie de fé invertida. Em dose moderada estimula o pensamento, mas em dose excessiva paralisa toda atividade mental”.

Para haver a dúvida, é preciso haver pelo menos duas perspectivas, isto é, alguma dualidade. Antecedendo às duas perspectivas, é preciso que antes tenha havido “uma fé”. Logo, o ponto de partida da dúvida é sempre uma fé. Ora, o estado primordial do espírito é e tem de ser a crença, não a dúvida. A dúvida desfaz a ingenuidade e, embora possa produzir uma fé nova e melhor, esta não pode mais ser vivenciada como “boa”. As certezas originais, abaladas pela dúvida, são substituídas por novas certezas, mais refinadas e sofisticadas, porém não mais originais, exibindo a marca da dúvida que lhes serviu de parteira.

O último passo do método cartesiano, que nem Descartes nem Husserl se atreveram a dar, implica duvidar da dúvida. Flusser arrisca esse passo. Descartes, e com ele todo o pensamento moderno, aceita a dúvida como indubitável, e por isso não pode dar o último passo. A última certeza cartesiana, que o popularizou – “penso, logo, existo” – deve ser lida como: “duvido, logo, existo”. A certeza cartesiana é, para Flusser, a última certeza autêntica do pensamento ocidental, gerando as principais hermenêuticas da modernidade, não por acaso hermenêuticas da suspeita: marxismo e psicanálise.

A dúvida da dúvida é um estado fugaz do espírito e, também, um passo de Sísifo. Embora possa ser experimentado, ele não pode ser sustentado (como a pedra nas costas). Negando a si mesmo, vibra, indeciso, entre extremos opostos: ora o ceticismo absoluto, ora o positivismo ingênuo, do qual também só pode duvidar por princípio. A dúvida da dúvida impede qualquer descanso.

O caminho de Sísifo redemoinha-se se perseguimos a questão: por que duvido? Ora, porque sou. Então, duvido de que sou. Logo, duvido de que duvido, em última análise (abissal). Parece um jogo fútil de palavras, mas o pensamento contemporâneo reconhece vivencialmente esse dilema.

O retorno dos físicos a Deus e o apoio dos cientistas sociais em conceito tão vago como pós-modernidade indicam a beira do mesmo abismo. A problematização e o esvaziamento do conceito “realidade” acompanham o progresso, nessa medida perigoso, da dúvida. Nossa civilização construiu-se a partir da dúvida cartesiana, ou seja, dúvida limitada pelo cogito e, é claro, por Deus. Ultrapassar esses limites é experimentar o niilismo.

Confirmam o absurdo as reações desesperadas contra o absurdo. No campo da filosofia pululam os “neos”. Na ciência tentam-se reformular premissas em bases mais modestas. Na razão prática multiplicam-se seitas religiosas. Nas ciências sociais apela-se para o “pós-pós”. Na política ressurgem inautenticamente conceitos esvaziados.

É muito fácil ler nas palavras de Flusser ceticismo e apocaliptismo, para permitir oposição igualmente fácil com otimismos baratos e logicismos vazios. No entanto, o seu pensamento não cabe nessas chaves porque não finge que não sente ou não enxerga o limite da dúvida.

A procura da verdade em si mesma indica saúde mental e existencial; o que se acha através dessa procura revela muitas vezes, porém, doença e absurdo. Logo, a procura não deve perder de vista o momento fundador, a saber, o movimento mesmo de procurar. Nesse momento não somos nem apocalípticos nem integrados, nem pessimistas nem otimistas, mas sim conseqüentes.

GUSTAVO BERNARDO é professor de Teoria da Literatura na UERJ.

O bem e o mal segundo Olívio Dutra

Olavo de Carvalho

7 de abril de 2000

Um empresário é um sujeito que ganha a vida organizando a atividade econômica. Ele acumula um capital, investe, ganha, paga suas dívidas para com os fornecedores, os empregados e o Estado, e no fim, se todo dá certo, tem um lucro. A quase totalidade do lucro é reinvestida no mesmo ou em outros negócios. Uma parte ínfima ele pode gastar em benefício próprio e da família. Se seu negócio é muito, muito próspero, mesmo essa parte ínfima basta para que ele compre mansões, iates, jatinhos e jatões, carros de luxo, cavalos de raça, e tenha, se é do seu gosto, múltiplas amantes. Em geral ele se contenta com muito menos.

Um político de esquerda é um sujeito que ganha a vida tentando jogar os empregados contra os empregadores. Ele mostra aos operários os aviões, os cavalos de raça e os carros de luxo do patrão e grita: “É roubo!” No começo ele faz isso de graça. É um investimento. Assim como o empresário investe dinheiro, ele investe insultos, gestos, caretas de indignação, apelos à guilhotina. Em troca, dão-lhe dinheiro. Ele vive disso. Quando alcança o sucesso, pode dispor de mansões, iates, jatinhos e jatões, carros de luxo, cavalos de raça e amantes em quantidade não inferior às do mais próspero capitalista.

Tanto a atividade do empresário quanto a do político de esquerda pode ser exercida de maneira honesta ou desonesta. O empresário pode dar golpes em seus fornecedores, vender produtos fraudados, sonegar o pagamento devido aos operários, ou então pode pagar tudo direitinho e vender produtos bons. Do mesmo modo, o político de esquerda pode desviar dinheiro público, utilizar-se indevidamente de imóveis do Estado, possuir sob ameaça aterrorizadas empregadinhas domésticas como o fazia Mao-tsé-tung. Ou então pode fazer tudo dentro da lei que ele próprio instaurou e ser incorruptível como Robespierre.

A diferença é a seguinte: da atividade do empresário, mesmo o mais desonesto, resultam sempre uma ativação da economia, uma elevação da produtividade, a expansão dos empregos. Esses resultados podem vir em quantidade grande ou pequena, mas têm de vir necessariamente, pela simples razão de que “empresa” consiste em produzi-los e em nada mais.

Da atividade do político de esquerda, mesmo o mais honesto, resultam sempre um aumento do ódio entre as classes, o crescimento do aparato estatal que terá de ser sustentado pelos padrões com dinheiro extraído aos empregados e consumidores, a politização geral da linguagem que transformará todos os debates em confrontos de força e, em última instância, desembocará num morticínio redentor. Esses resultados também podem vir em quantidades grandes ou pequenas, mas virão necessariamente, pois “política de esquerda” consiste em produzi-los e em nada mais.

Um empresário, honesto ou desonesto, está no auge do sucesso quando pode, sem prejuízo de seus investimentos, comprar mansões, iates, carros de luxo, jatinhos, jatões etc. Ele alcança isso quando se torna um mega-empresário. Para chegar a esse ponto, ele tem de deixar em seu rastro fábricas, bancos, plantações, jornais, canais de TV e mil e um outros negócios dos quais vivem e prosperam milhares de pessoas.

Em político de esquerda, honesto ou desonesto, está no auge do sucesso quando destruiu toda oposição às suas idéias e comanda uma sociedade fielmente disposta a realizá-las. Ele alcança isso quando se torna o chefe de uma revolução vitoriosa. Para chegar a esse ponto, ele tem de deixar em seu rastro milhares ou milhões de cadáveres, edifícios destruídos, plantações queimadas, órfãos e viúvas vagando pelas ruas, fome, miséria e desespero.

O governador Olívio Dutra acha que é imoral ser empresário e que é lindo ser um político de esquerda.

Ele não tem maturidade intelectual suficiente para perceber que o sucesso final de um empresário, mesmo desonesto, traz sempre mais bem do que mal, e que o sucesso final de um político de esquerda, mesmo inflexivelmente honesto como ele, produz uma quantidade de mal acima do que qualquer bem poderá jamais reparar.

O governador Olívio Dutra, como qualquer outro político de esquerda, tem uma consciência moral deformada por um uso falso da linguagem. Ele ouviu dizer na infância: “Lucro egoísta”, “justiça social”, e impregnou-se de tal modo desses símbolos verbais do mal e do bem, que pôs sua vida a serviço do que lhe parece uma nobre causa: combater as coisas que têm nomes feios e louvar as que têm nomes bonitos. Uma coisa que criou as nações mais prósperas e livres da Terra deve ser muito má, pois tem o nome hediondo de “lucro egoísta”. Uma coisa que matou cem milhões de bodes expiatórios e reduziu à escravidão e à miséria um bilhão e meio de outros inocentes deve ser ótima, pois leva o belo nome de “justiça social”.

Romper a unidade mágica de nomes e coisas é uma operação dolorosa. Custa vergonhas e humilhações à mente altiva. Mas é o preço da maturidade. No julgamento são do homem maduro – o “spoudaios” –, via Aristóteles a única esperança de um governo justo, do predomínio, ainda que relativo e precário, do bem sobre o mal. Não existe bem onde não existe amor à verdade, e não existe amor à verdade onde uma mente obstinada se apega ao instinto pueril de julgar as coisas pelos nomes que ostentam.

O problema do governador Olívio Dutra, assim como de milhares que pensam como ele, já foi diagnosticado por Jesus Cristo dois milênios atrás: “Na verdade, amais o que devíeis odiar e odiais o que devíeis amar.” Eles pecaram contra o Espírito, protegendo-se por trás da belas palavras contra a visão das realidades feias, e receberam como castigo exatamente aquilo que pediam: a cegueira forçada tornou-se espontânea, e hoje a sua moralidade invertida lhes parece a atitude mais natural do mundo, a única maneira possível de julgar as coisas — o caminho do bem, fora do qual tudo é perdição e “lucro egoísta”.

Não creio sequer que valha a pena rezar para que despertem. Eles não despertarão enquanto não enviarem milhões de seres humanos para o sono eterno.

 

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