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Passado e futuro

Olavo de Carvalho


Época, 2 de dezembro de 2000

O primeiro está desfigurado pela falsificação histórica; o segundo, por anúncios de vingança

Em 1964, uma revolução comunista estava em marcha no Brasil, sob orientação direta do governo soviético, recebida no começo do ano por Luís Carlos Prestes em Moscou. Os arquivos da KGB confirmam isso de maneira irrespondível. A revolução foi detida por um movimento militar apoiado na maior mobilização popular de toda a nossa História (800 mil pessoas nas ruas, duas décadas antes das Diretas Já). Total de mortos na operação: dois.

Os vencidos, inconformados, buscaram apoio na ditadura cubana, que lhes deu dinheiro e treinamento para a ação armada, e desencadearam uma campanha de terror, matando a tiros e bombas vários colaboradores grandes e pequenos do novo regime e pelo menos um de seus próprios militantes, executado à simples suspeita de “fraquejar”.

O governo reagiu instalando um regime policial que, além de fazer vítimas em combate, consentiu na tortura e na morte de prisioneiros, à imitação dos terroristas que chegaram a assassinar a coronhadas um homem amarrado. No placar final, os comunistas mataram aproximadamente 200 pessoas; os militares, 300. A diferença não é tão grande que justifique tratar os primeiros como anjos, os segundos como demônios.

Em favor dos militares, resta um fato. Não há, na História do mundo, outro exemplo de revolução armada, num país de cerca de 100 milhões de habitantes, que fosse abortada com menos derramamento de sangue. Desafio qualquer pessoa a impugnar, com números e provas, essa afirmação. Em Cuba, com população dez vezes menor, a simples repressão a opositores desarmados levou à morte 17 mil dissidentes. Ditadura é ditadura, mas nivelar a brasileira e a cubana é mais que demagogia: é empulhação.

Não obstante, a violência do extinto regime repercute na mídia até hoje, em ondas cada vez mais volumosas à medida que o tempo passa, com periódicas efusões de tinta e lágrimas em louvor dos comunistas mortos, enquanto as 200 vítimas que eles mataram têm de repousar quietas e esquecidas na lata de lixo da História, o lugar reservado aos que se opõem aos desígnios da Providência revolucionária. Nos 15 anos que se seguiram ao fim da ditadura, elas jamais foram manchete, enquanto seus algozes o são pelo menos de três em três meses, sob variados pretextos, incansavelmente, sem contar filmes, programas de TV e menções chorosas nos livros didáticos.

Mas, se na imprensa qualquer referência àquelas vítimas tem sido em geral excluída das páginas noticiosas, só timidamente vazando através de colunas de opinião, cochichá-la na internet não é menos proibido. Um único e modesto site devotado a documentar os crimes cometidos pelos comunistas no Brasil, www.ternuma.com.br, tão logo apareceu foi imediatamente submetido a um bombardeio de ameaças dissuasórias, das quais cito duas por falta de espaço para mais. A primeira anuncia: “Vocês não perdem por esperar. Os novos tempos da revolução… virão à tona, fazendo com que paguem com a vida… A rebelião começará nos quartéis e os comandantes cairão diante da ira do povo”. Sublinhando a promessa de rebelião militar, a segunda assegura: “Como prova o grande camarada Lamarca, muitos militares estão a nosso lado… A Ditadura do Proletariado lhes (sic) espera!” Eis no que deu ajudar os comunistas a esconder seu passado: agora eles querem suprimir nosso futuro.

O futuro da boçalidade

Olavo de Carvalho


O Globo, 2 de dezembro de 2000

Um topos, ou “lugar-comum”, é um trecho da memória coletiva onde estão guardados certos argumentos estereotipados, de credibilidade garantida por mera associação de idéias, independentemente do exame do assunto. Muitos lugares-comuns formam-se espontaneamente, pela experiência social acumulada. Outros são criados propositadamente pela repetição de slogans, que se tornam lugares-comuns quando, esquecida a sua origem artificial, se impregnam na mentalidade geral como verdades auto-evidentes.

Os lugares-comuns não são um simples amontoado, mas organizam-se num sistema, que pode ser analisado e descrito mais ou menos como se faz com um complexo em psicanálise, e cujo conhecimento permite prever com razoável margem de acerto as reações do público a determinadas idéias ou palavras. Contando com essas respostas padronizadas, o argumentador pode fazer aceitar ou rejeitar certas opiniões sem o mínimo exame, de modo que, à simples menção das palavras pertinentes, a catalogação mental se faz automaticamente e o julgamento vem pronto como fast food. A impressão de certeza inabalável é então inversamente proporcional ao conhecimento do assunto, e o sentimento de estar opinando com plena liberdade é diretamente proporcional à quota de obediente automatismo com que um idiota repete o que lhe ditaram.

É claro que para isso é preciso começar o adestramento bem cedo. Daí a insistência de Antônio Gramsci na importância da escola primária. Também é preciso que algumas crenças sejam inoculadas sem palavras, através de imagens ou gestos, de modo que não possam ser examinadas pela inteligência reflexiva sem um penoso esforço de concentração que poucas pessoas se dispõem a fazer. Assim é possível consolidar reações tão padronizadas e repetitivas que, em certas circunstâncias, um simples muxoxo ou sorriso irônico funciona como se fosse a mais probante das demonstrações matemáticas.

Se as pessoas soubessem a que ponto se humilham e se rebaixam no instante mesmo em que orgulhosamente crêem exercer sua liberdade, elas não atenderiam com tanta presteza ao convite de dizer o que pensam, ou o que pensam pensar. É por amor a esse tipo de liberdade barata que os jovens, sobretudo, se dispõem a servir aos revolucionários que os lisonjeiam.

Para desgraçar de vez este país, a esquerda triunfante não precisa nem instaurar aqui um regime cubano. Basta-lhe fazer o que já fez: reduzir milhões de jovens brasileiros a uma apatetada boçalidade, a um analfabetismo funcional no qual as palavras que lêem repercutem em seus cérebros como estimulações pavlovianas, despertando reações emocionais à sua simples audição, de modo direto e sem passar pela referência à realidade externa.

Há quatro décadas a tropa de choque acantonada nas escolas programa esses meninos para ler e raciocinar como cães que salivam ou rosnam ante meros signos, pela repercussão imediata dos sons na memória afetiva, sem a menor capacidade ou interesse de saber se correspondem a alguma coisa no mundo.

Um deles ouve, por exemplo, a palavra “virtude”. Pouco importa o contexto. Instantaneamente produz-se em sua rede neuronal a cadeia associativa: virtude-moral-catolicismo-conservadorismo-repressão-ditadura-racismo-genocídio. E o bicho já sai gritando: É a direita! Mata! Esfola! “Al paredón!”

De maneira oposta e complementar, se ouve a palavra “social”, começa a salivar de gozo, arrastado pelo atrativo mágico das imagens: social-socialismo-justiça-igualdade-liberdade-sexo-e-cocaína-de-graça-oba!

Não estou exagerando em nada. É exatamente assim, por blocos e engramas consolidados, que uma juventude estupidificada lê e pensa. Essa gente nem precisa do socialismo: já vive nele, já se deixou reduzir à escravidão mental mais abjeta, já reage com horror e asco ante a mais leve tentativa de reconduzi-la à razão, repelindo-a como a uma ameaça de estupro. Tal é a obra educacional daqueles que, trinta anos atrás, posavam como a encarnação das luzes ante o obscurantismo cujo monopólio atribuíam ao governo militar.

Milhares de seitas pseudomísticas, armadas de técnicas de programação neurolingüistica e lavagem cerebral, não obtiveram esse resultado. Ele foi obra de educadores pagos pelo Ministério da Educação, imbuídos da convicção sublime de serem libertadores e civilizadores. O mal que isso fez ao país já é irreparável. Supondo-se que todos esses adestradores de papagaios fossem demitidos hoje mesmo, e se inaugurasse um programa nacional de resgate das inteligências, trinta ou quarenta anos se passariam antes que uma média razoável de compreensão verbal pudesse ser restaurada. Duas gerações ficariam pelo caminho, intelectualmente inutilizadas para todo o sempre.

É em parte por estar conscientes disso que esses mesmos educadores são os primeiros a advogar a liberação das drogas. Eles sabem que o lindo Estado assistencial com que sonham necessitará largar na ociosidade uma boa parcela da população, danificada, incapacitada, sonsa. Para que não interfira na máquina produtiva, será preciso tirá-la do espaço social, removê-la para os mundos lúdicos e fictícios onde o preço do ingresso é um grama de pó. Na sociedade futura, a recompensa daqueles que consentiram em ser idiotizados para fazer número na militância já está garantida: cafungadas e picos de graça, sob os auspícios do governo, e liberdade para transar nas vias públicas, sob a proteção da polícia, ante um público tão indiferente quanto à visão banal de uma orgia de cães em torno de um poste.

Mas não é precisamente isso o que desejam? Não é essa a essência do ideal socialista que anima seus corações?

O direito de investigar

Olavo de Carvalho


Época, 25 de novembro de 2000

Enfraquecer a Abin é dar ao PT o monopólio da espionagem

Já que tanto se fala de “arapongas”, vale a pena lembrar que o termo, extraído de uma novela cômica da Globo, entrou em circulação na política, uns anos atrás, para designar não os agentes secretos do governo, mas os de um serviço de espionagem privado, ilegal, mantido pelo PT sob a direção de um técnico treinado em Cuba, o deputado José Dirceu.
Naquele tempo, as denúncias do governador Esperidião Amin contra a pequena KGB foram rapidamente abafadas, e os arapongas petistas puderam continuar até hoje seu trabalho, tranqüilamente surrupiando documentos e bisbilhotando a vida de meio mundo sem ser jamais incomodados ou investigados. Os agentes da Abin não desfrutam igual privilégio. Ao menor abuso, são submetidos àquele “controle externo” do qual a espionagem petista, by special appointment, está completamente isenta.

No entanto, se a Abin cometeu algum abuso, a existência mesma de seu rival petista é mais que abuso: é crime. A gritaria geral contra o abuso, já que acompanhada de não menos geral silêncio no que diz respeito ao crime, tem por óbvia finalidade amarrar as mãos da autoridade constituída e conferir ao serviço secreto ilegal o monopólio dos meios de investigar. Se o governo aceitar esse jogo, acabará transformando a Agência Brasileira de Inteligência em Agência Brasileira de Burrice. Não é nada impossível que as informações reservadíssimas veiculadas pela imprensa na semana passada tenham sido, elas próprias, obtidas por agentes petistas, numa operação montada para consolidar a superioridade da espionagem ilegal sobre o serviço secreto oficial – um avanço formidável na montagem do poder paralelo preconizado por Lênin, que, segundo demonstrou José Giusti Tavares no estudo Totalitarismo Tardio: o Caso do PT (Porto Alegre, Mercado Aberto, 2000), é a quintessência da estratégia petista.

Mas, além disso, é simplesmente obsceno aceitar como pressuposto indiscutível a afirmação de que houve abuso por parte da Abin. Qualquer brasileiro que seja persona grata aos altos escalões do governo cubano é suspeito de envolvimento numa estratégia revolucionária continental associada aos narcotraficantes colombianos e deve, no mínimo, ser observado.

Um governo que, sabendo da existência de uma revolução em marcha nas fronteiras, se abstivesse de investigar os possíveis colaboradores internos da operação estaria simplesmente entregando o país aos revolucionários. E o que muita gente está exigindo do governo é que ele não apenas abdique de investigar os agressores, mas consinta docilmente em ser investigado por eles.

No entanto, se nosso presidente, depois de tantas concessões degradantes, fizer mais essa, não haverá nisso nada de estranho. Há sérios indícios de que, seguindo estritamente a sugestão que recebeu do cientista político Alain Touraine, ele prepara para o ano que vem uma guinada à esquerda, de modo a tornar-se o virtual chefe da transição brasileira para o socialismo. Que mais poderia ele querer dizer com “a grande virada” que anuncia para 2001? Eleito com o apoio suicida de liberais iludidos com a cantilena do “fim do comunismo”, ele parece não ter mesmo outro sonho na vida senão o de se tornar o Kerenski que deu certo.

PS.: Um leitor acusa-me de ser avesso ao debate e para prová-lo alega que respondi aos argumentos do doutor Borroni-Biancastelli. Mudou o conceito de debate ou mudei eu?

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