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Lembrete de Natal

Olavo de Carvalho


O Globo, 23 de dezembro de 2000

A coincidência do Natal e do Eid-al-Fitr (fim do jejum) muçulmano é uma ocasião para lembrar que os pontos de contato entre as religiões cristã e islâmica – e também a judaica – vão muito além do que as fórmulas de bom-mocismo ecumênico podem sugerir.

Se há uma lição definitiva a tirar do estudo das religiões comparadas é que elas são incomparáveis: não são espécies do mesmo gênero, que possam ser avaliadas uma pela outra. São manifestações irredutíveis – e irredutivelmente diversas – de uma luz intelectual supra-humana que, derramando-se sobre objetos diferentes, produz diferentes refrações. A comparação, aí, só pode tomar duas direções: ou o confronto estéril do inconfrontável, ou a simples inspiração que nos leva a erguer os olhos para a fonte comum, quer a imaginemos como motor imóvel ou como a fonte eternamente silenciosa de todo Verbo.

Por isso o estudo comparativo das religiões, quando toma a forma do confronto de doutrinas prontas, desemboca na disputa dos teólogos – e esse tipo de discussão, dizia o profeta Maomé, leva indiscutivelmente ao inferno. Muito mais frutífera é a aproximação dos símbolos, que dizem a mesma coisa em linguagens diversas, mas de tal modo que a mente, ao apreender a comunidade de sentido entre elas, não pode traduzi-la numa terceira. Compreendida como disciplina contemplativa, a ciência dos símbolos sacros é uma introdução à clareza do indizível.

Talvez ainda mais significativa que a coincidência do Natal com o Eid-al-Fitr seria a aproximação dele com a Laylat-al-Qadr, a noite em que o Corão “desce” dos céus ao coração do profeta. Maomé é o analfabeto que, no silêncio da noite, recebe em ditado angélico o mais belo livro da língua árabe, livro que transcende as propriedades do idioma ao ponto de sua recitação em voz alta afetar os animais, que se detêm para ouvi-la. É também à noite que a Virgem, fecundada pelo Espírito, dá à luz a mais nobre das criaturas humanas, indistinguível do Criador mesmo. A analogia entre esses dois sublimes paradoxos é evidente. E, enquanto os teólogos disputam nas trevas, cotejando Cristo a Maomé, a narrativa, em si, é “luz sobre luz”: Maomé não corresponde a Cristo, mas a Maria, o portador humano do Verbo divino; Cristo não é Maomé, é o Verbo divino, o Logos, Kalimat’ullah.

O espírito sopra onde quer, da forma que quer. Como diz o Corão, “há nisto um sinal, para os que entendem”. Isso não quer dizer que o Papa esteja errado ao afirmar que o cristianismo é a única via de salvação. Como poderia estar errado, se o conceito mesmo de “via de salvação” não se aplica ao Islã ou ao judaísmo? O judaísmo é a lei, a constituição divino-histórica do povo eleito, não a via de salvação para as almas individuais, para os pecadores errantes e ovelhas desgarradas. E a palavra mesma “religião” não corresponde ao árabe din, que assim se traduz erroneamente. Din é o modo natural e primordial do ser social humano, a constituição civil da sociedade sacra – algo sem correspondência no evangelho, onde Deus fala às almas individuais, alheio e indiferente ao que é de César.

Como, pois, comparar essas dimensões diferentes, achatando-as no confronto doutrinal do certo e do errado?

As religiões, simplesmente, não falam da mesma coisa. É preciso ter compreendido isto para atinar que é a mesma Voz que fala por meio de todas elas. Os conflitos correm por conta da incompreensão humana, angustiada pelos seus esforços vãos de reduzir à unidade doutrinal algo que não é doutrina, mas que é a Presença mesma. O próprio Corão ensina-nos o limite dessas especulações, e adverte judeus, cristãos e muçulmanos: “Concorrei na prática do bem, que no juízo final Nós dirimiremos as vossas divergências.”

Reale ante os medíocres

 

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 21 de dezembro de 2000

Ao longo dos últimos anos, Miguel Reale raramente foi mencionado nos jornais ou na tevê sem que viesse à baila, de novo e de novo, obsessivamente, sua ligação de juventude com o integralismo. Recentemente, nas comemorações de seus 90 anos, o grande jurista e filósofo foi submetido mais algumas vezes a esse ritual humilhante e insensato.

O integralismo foi um fascismo abrandado e inofensivo, um ultranacionalismo sem racismo, que celebrava a glória de índios, negros e caboclos. Entre os líderes do movimento havia, é verdade, um anti-semita declarado, o excêntrico historiador e cronista Gustavo Barroso, maluco não desprovido de talento, várias vezes presidente da Academia Brasileira. Mas, quando começou para valer a perseguição aos judeus na Alemanha e todos os bem-pensantes do mundo fizeram vistas grossas, foi do chefe supremo do integralismo, Plínio Salgado, que partiu uma das primeiras mensagens de protesto que chegaram à mesa do Führer (e na certa foi direto para o lixo). Se os educadores deste país tivessem vergonha na cara, esse feito quixotesco seria alardeado com orgulho em todas as escolas – não por seus efeitos políticos, que foram nulos, mas como símbolo do espírito de um povo que nunca deixou seus melhores sentimentos serem sacrificados no altar de fanatismos ideológicos.

Em vez disso, tratamos de escondê-lo, para dar a criaturas inocentes e honradas o ar sinistro de cúmplices de Hitler. Fazemos isso sob a inspiração de educadores e intelectuais comunistas, que precisam mentir e caluniar o tempo todo para disfarçar a co-autoria comunista de muitos dos crimes do nazismo entre 1933 e 1941.

Os escritos de Plínio hoje nos parecem melosos e de um hiperbolismo delirante. Politicamente, seu único pecado é a completa tolice. Moralmente, são inatacáveis. Ademais, o integralismo era católico – e sob o nazismo os católicos, convém não esquecer, eram o terceiro grupo na lista dos candidatos ao campo de concentração, depois dos judeus e dos politicamente inconvenientes (v. Robert Royal, Catholic Martyrs of the XXth Century, New York, Crossroad, 2000).

Que vergonha existe em ter seguido esse líder? Nenhuma, evidentemente.

Porém, se um homem é induzido a explicar isso de novo e de novo e de novo, como um suspeito num interrogatório policial, ele acabará sempre dando a impressão de que está escondendo alguma coisa. E é essa impressão que nossos solícitos repórteres esquerdistas buscam criar em torno de Miguel Reale.

Ninguém no mundo merece esse tratamento. Mas quando a intelectualidade bem-pensante se reúne para aplicá-lo a um sábio nonagenário a quem a Nação deve algumas de suas maiores conquistas no campo das ciências humanas, então é de suspeitar que estamos diante da velha conspiração dos medíocres que enxergam no gênio alheio a mais intolerável das afrontas.

No entanto, como a loucura de Hamlet, essa mediocridade tem método. A malícia, a perversidade e a baixeza do seu ardil, cujo uso se tornou institucional ao ponto de a breve militância integralista ser mais destacada na imagem pública de Miguel Reale do que as seis décadas e meia de formidáveis realizações intelectuais que se lhe seguiram, mostram a que ponto não só as idéias comunistas, mas até os hábitos e reflexos da mente comunista se impregnaram no modo de ser dos nossos jornalistas e da nossa classe letrada em geral.

Mesmo pessoas que já não aprovam conscientemente o marxismo são presas desses hábitos. Após 40 anos seguidos de “trabalho de base” nas redações, sem encontrar a menor resistência, os comunistas conseguiram impor seus critérios ideológicos como se fossem a única norma existente, a única norma possível do bom jornalismo. Se nossa imprensa não sabe falar de Miguel Reale sem uma genuflexão prévia ante o altar dos preconceitos esquerdistas, é simplesmente porque, nisso como em tudo o mais, ela simplesmente se habituou à troca rotineira da informação pela desinformação. Hoje em dia, milhares de jornalistas que de comunistas não têm nada subscreveriam com a maior tranqüilidade a seguinte declaração: “A missão da imprensa é minar, pela crítica, as instituições vigentes” – sem saber que a frase é de Karl Marx e que ela não é uma receita de jornalismo e sim de revolução comunista. Por isso, quando pensam estar fazendo jornalismo, estão apenas ajudando o comunismo a sair do túmulo e a colocar em seu lugar, no jazigo vazio, o Brasil.

Por ter escapado a esse cacoete vulgar, atendo-se a discutir a obra do filósofo no plano que lhe corresponde autenticamente, o caderno especial do JT consagrado a Miguel Reale, semanas atrás, se destacou como um momento especialmente nobre na história do nosso jornalismo, à altura, pelo menos, da nobreza do homenageado.

Consciência reprimida: duas notas

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 17 de dezembro de 2000

1. — A vitória obtida pelo jornalista Gilberto Simões Pires no processo absurdo e insolente que lhe moveu a secretária da Educação do Rio Grande do Sul é um marco memorável na história da liberdade de imprensa neste país. No dia 13 de dezembro de 2000, a 5a. Câmara Criminal de Justiça de Porto Alegre, julgando o pedido de “habeas corpus” impetrado pelo advogado Paulo Couto e Silva, decidiu que não é crime dizer que as pessoas que usam crianças para a propaganda de ideologias violentas estão fazendo exatamente isso. Amparado nessa decisão, abdico da vaidade jornalística de anunciar novidades e repito apenas o que disse o brilhante comentarista: o governador do Rio Grande do Sul e sua secretária da Educação se aproveitam de escolares do Rio Grande do Sul como instrumentos para a propagação da mais violenta, criminosa e anticristã das ideologias. E não apenas fazem isso: não suportam que se noticie que fazem. Mas, por intolerável que nos pareça sua tentativa de obstar a denúncia de seus atos, ela tem algo de bom: ela prova que, no fundo, essas pessoas têm consciência moral e sabem que estão do lado errado. Nesse secreto pudor, nessa  reprimida consciência do bem e do mal, reside toda a esperança de que um dia não só o governador ou sua secretária da Educação, mas todos os esquerdistas rompam os laços que ainda os prendem a um passado histórico deplorável, pelo qual pessoalmente não têm culpa alguma, mas de cuja tristeza e desonra se fazem retroativamente, por um gratuito e inexplicável masoquismo, os emblemas e monumentos viventes.

É horrível observar que um partido nascido da classe operária, inspirado naquele saudável reformismo pacífico que Lênin condenava como vício redibitório do proletariado quando não guiado pela elite revolucionária, acabou por se contaminar do radicalismo maquiavélico da “intelligentzia” até o ponto de flertar com os narcoguerrilheiros da Colômbia. É deprimente notar que o grande líder trabalhista que ainda ontem se solidarizava com a luta dos sindicalistas cristãos da Polônia contra o jugo soviético já não se vexa de, transmutada completamente sua identidade ideológica e talvez até pessoal, proclamar como superior exemplo de conduta ética um tirano repelente que começou sua carreira oferecendo seus préstimos de pistoleiro para matar em troca de favores.

Mas nem tudo está perdido: o governador do Rio Grande e sua secretária da Educação, quando usam crianças para a propaganda comunista, têm vergonha de que Gilberto Simões Pires conte que eles estão fazendo isso. E quem tem vergonha de mostrar, é porque, no fundo, tem vergonha de fazer. Não é insensato, pois, esperar que um dia esse fundo saudável venha à tona, rompendo, na sua ascensão irresistível, a carapaça de falsas virtudes de um partido que, esquecido de si mesmo, trocou a nobre humildade da luta sindical pelas glórias baratas do leninismo disfarçado em “ética”.

2. — O movimento socialista tem-se mostrado tão incapaz de refrear seu apetite de sangue quanto de aceitar ser julgado pelos mesmos padrões morais com que condena seu adversário. Sua duplicidade de pesos e medidas acabou por levá-lo à completa perda do senso das proporções. Reprimindo sistematicamente a consciência de seus próprios crimes, ele buscou sempre um alívio postiço na criação obsessiva de lendas e mitos para dar ao rosto do inimigo feições pelo menos tão monstruosas quanto as suas. Já mencionei aqui uma dessas lendas, o caso Sacco e Vanzetti, uma fraude em toda a linha. Outro mito do mesmo gênero é a “era McCarthy”. A propaganda comunista fez do espalhafatoso senador de Wisconsin algo como uma reencarnação de Torquemada ou uma cópia invertida de Beria, um monstro de suspicácia e impiedade, a enviar para o cárcere, a tortura e a morte suspeitos de meros delitos de opinião, entre os quais notáveis intelectuais e artistas.

Pois bem, o famoso Comitê para a Investigação de Atividades Anti-Americanas, que McCarthy dirigiu durante dois anos, jamais interrogou um único figurão das letras ou das artes. Suas investigações limitaram-se a funcionários do governo e cada um deles foi interrogado legalmente, com assistência de advogados e amplo respaldo na imprensa, quase toda ela hostil ao Comitê.

À medida que avançam as pesquisas históricas nos arquivos da URSS, algumas das acusações mais loucas lançadas pelo senador se revelam hoje brandas e comedidas em comparação com a verdade. A cumplicidade da elite do Partido Democrático com a espionagem soviética já não pode mais ser razoavelmente negada.

Mas, de todos os interrogados por McCarthy, só dois foram, após o devido processo, condenados à morte: o casal Rosenberg, que transmitira à URSS o segredo da bomba de hidrogênio, pondo em risco a vida de milhões de americanos. Após a abertura dos arquivos soviéticos, a dúvida quanto à culpabilidade dos Rosenbergs se tornou indefensável. Durante o período exato de atuação de McCarthy, enquanto dois espiões genuínos eram condenados nos EUA, nada menos de 3.500.000 dissidentes eram executados na URSS, sem defesa, longe dos olhos da imprensa. Qualquer tentativa de sugerir mesmo uma vaga equivalência moral entre mccarthysmo e comunismo é, pois, pura sem-vergonhice ou majestosa ignorância. Para saber mais, leiam “Joseph McCarthy. Reexamining The Life and Legacy of America’s Most Hated Senator”, do consagrado historiador Arthur Herman (New York, The Free Press, 2000), um livro que voltarei a comentar.

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