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Medindo as palavras

Olavo de Carvalho

Época, 5 de maio de 2001

O maior criminoso do Brasil está preso, mas ninguém ousa falar mal dele

Vocês já repararam no tratamento discreto, macio, quase gentil que as classes falantes têm dado a Fernandinho Beira-Mar desde que foi preso? Imprensa, políticos, intelectuais – ninguém parece ter um pingo de raiva desse homem responsável por tantas mortes, por tanto sofrimento, por tanta iniqüidade. Ninguém o chama de assassino, de genocida, de monstro, de nenhum daqueles nomes que tão facilmente vêm à boca de todos quando se referem a desarmados vigaristas de colarinho branco ou até mesmo à pessoa do presidente da República. Nenhuma multidão em fúria, convocada pelos autodesignados porta-vozes dos sentimentos populares, se reúne na porta da delegacia para xingá-lo como se xingou Luiz Estevão. Nenhum moralista, com lágrimas de indignação nos olhos, condena como insulto à memória de inumeráveis vítimas os cuidados paternais que o traficante recebe na cadeia, como tantos julgaram um acinte a prisão especial que, em obediência à lei, as autoridades deram ao juiz Lalau, malandro septuagenário incapaz de matar uma galinha.

Não obstante, o homem que distribui drogas a crianças nas escolas e mata quem tenta impedi-lo é, obviamente, um assassino, um genocida, um sociopata amoral e cínico. Aplicados a suspeitos de crimes incruentos, esses termos são figuras de expressão, hipérboles descomunais, flores de plástico de uma retórica postiça. Usados para definir Luiz Fernando da Costa, são termos exatos, precisos, quase científicos. A liberalidade tropical no emprego das hipérboles para falar de quem rouba contrasta singularmente com a inibição de usar as palavras em seu sentido literal para falar de quem mata.

De onde vem essa assustadora inversão das cotações de palavras, homens e crimes na linguagem brasileira? De modo geral, ela reflete, inequivocamente, a influência da “revolução cultural” gramsciana que, há 40 anos, com a obstinação sutil das bactérias e dos vírus, contamina de antivalores comunistas – sem esse nome, é claro – os sentimentos e as reações de nossa opinião pública.

Mas, no caso presente, há algo mais que isso – algo de infinitamente mais sinistro. Há o temor instintivo de revelar a uma luz muito direta e crua a feiúra de um sócio das Farc. Pois essa luz ameaçaria refletir-se sobre a imagem da guerrilha e, portanto, de todos os seus amigos e apologistas: Fidel Castro, o presidente Chávez, Lula, o governador Olívio Dutra, o MST, a esquerda quase inteira.

Falar de Fernandinho Beira-Mar com uma linguagem proporcional à gravidade de seus crimes seria – para usar a expressão consagrada do jargão militante – “dar munição ao inimigo”. Naquilo que dentro de uma cabeça esquerdista faz as vezes de consciência moral, não há pecado maior. Portanto, moderação nas palavras! Abandonado há tempos em nome da “ética”, da “participação” e do “dever de denunciar”, o estilo noticioso frio, factual, sem comentários, é de repente retirado da gaveta e mostra toda a sua inesperada serventia: num ambiente de furor moralista e indignação oratória, o relato neutro, asséptico, soa quase como um elogio.

E não pensem que, para pôr em ação esses anticorpos verbais, tenha sido necessário emitir uma palavra de ordem, distribuir avisos de algum comitê central, mover alguma complexa cadeia de comando. Nada disso. A reação já se produz sozinha, por automatismo, quase inconscientemente. Todos mentem em uníssono – e ninguém tem culpa porque ninguém mandou ninguém fazer nada.

É precisamente esse domínio tácito sobre as consciências, essa redução coletiva dos formadores de opinião ao estado sonambúlico de inocentes úteis, que Antonio Gramsci denominava “hegemonia” – o prelúdio psicológico à tomada do poder. A hegemonia já está, portanto, conquistada. Se definitivamente ou não, isso depende. Depende de que ninguém diga o que está acontecendo. E é por isto mesmo que insisto em dizê-lo.

A vaca louca da história nacional

Olavo de Carvalho


O Globo, 28 de abril de 2001

A mente humana não tem nenhum meio de testar uma hipótese senão concedendo iguais chances de credibilidade à hipótese contrária. Mas às vezes isso não fica bem, e em tais circunstâncias os esgares de indignação no rosto do advogado da primeira hipótese devem ser aceitos como cabal demonstração científica da falsidade da segunda. Ora, ninguém sabe mostrar-se indignado com a veemência, com o pathos de um militante de esquerda, apologista dos crimes de tortura e genocídio cometidos pelo governo de Cuba, quando aponta atrocidades análogas, mas de escala muito menor, praticadas no Brasil. Por isso, denúncias de crimes atribuídos ao regime militar não devem ser averiguadas. Têm de ser aceitas prima facie , alardeadas por todos os meios de comunicação, estampadas nos livros escolares, fixadas em letras eternas na memória nacional antes que algum aventureiro ouse amortecer o fervor da certeza por meio de um gélido ponto de interrogação.

Na verdade, não é só que essas denúncias não devam ser averiguadas. Elas nem mesmo podem sê-lo, na prática, pois, com exceção dos arquivos militares, os depósitos de documentos daquele período estão, em geral, entregues à guarda de militantes de esquerda. Dominando as fontes de informação, a esquerda tem ainda o monopólio dos meios de investigação, instalada como está na chefia dos departamentos de História de todas as universidades públicas, assim como na dos órgãos distribuidores de verbas de pesquisas, às quais se acrescentam os generosos subsídios de empresas e fundações estrangeiras, empenhadas em impor aos países do Terceiro Mundo uma ideologia politicamente correta que inclui, como um de seus itens essenciais, a desmoralização sistemática das Forças Armadas.

Acrescentem a isso o predomínio esquerdista nos meios de comunicação e a completa devoção do MEC a seu papel de preparador ideológico das crianças brasileiras para a luta de classes, e terão uma idéia de quanto a imagem do passado histórico forjada no molde da propaganda ideológica se tornou mais difícil de contestar do que um decreto de César na Roma imperial.

Tão vasto poder de controle sobre a visão do passado é fenômeno inédito nas democracias. Somente os regimes totalitários lograram conquistar tão sólida autoridade monopolística sobre a fabricação do relato histórico, fazendo dele um dos pilares de sua dominação ideológica sobre a vida presente.

Mas, por uma atroz coincidência, foi justamente um grande historiador, Lorde Acton, quem disse que o poder absoluto corrompe absolutamente. Os donos do passado, afeitos às delícias do monólogo incontestado, acabam relaxando as precauções mais elementares e caindo na sua própria armadilha: acabam acreditando tão piamente em si mesmos que já não verificam nem as contradições mais gritantes das histórias que alardeiam.

Um caso recente ilustrará isso da maneira mais escandalosa. João Antônio dos Santos Abi-Eçab e sua esposa Catarina Helena, terroristas oficialmente dados como mortos numa colisão entre o Volks em que viajavam e a traseira de um caminhão perto de Vassouras, RJ, teriam, na verdade, sido presos no bairro do Maracanã e mortos a tiros, sepultados em S. João de Meriti e mais tarde desenterrados, vestidos e colocados no automóvel, por gente do Exército, para simular o acidente rodoviário em 8 de novembro de 1968.

A denúncia é do “Jornal Nacional”. Baseia-se no depoimento do ex-soldado Waldemar Martins de Oliveira, que, segundo declarou ao repórter Caco Barcelos, na época atuava no serviço de informações do Exército na área de Marília, SP, e teria presenciado a execução. Contra essa acusação, divulgada em tom de certeza inabalável, restam os seguintes fatos:

Quanto à testemunha:

1. Waldemar diz que desertou do Exército em 1970, cansado de participar de malvadezas governamentais. Ele mente. A folha de alterações do recruta Waldemar no 27 . Batalhão de Infantaria Pára-quedista, da qual obtive cópia com os oficiais que mantêm o “site” http://www.ternuma.com.br, mostra que ele desapareceu do quartel no começo de setembro de 1968, sendo dado como desertor a partir do dia 11 desse mês e não podendo, portanto, estar a serviço do Exército dois meses depois.

2. Waldemar sentou praça em janeiro de 1968. Ele pretende ter realizado inúmeras “operações secretas” entre esse dia e a morte do casal. Mas qual Exército do mundo designaria para operações de inteligência um recruta que nem terminou o período regulamentar de um ano de treinamento? Simplesmente não havia recrutas, mesmo treinados, na área de Operação de Informações do Exército, que só empregava oficiais e graduados com Curso de Especialização. Para piorar ainda mais as coisas, Waldemar, lotado no então I Exército, não poderia atuar em Marília, SP, que era área do II Exército.

Quanto às vítimas:

1. Abi-Eçab e sua esposa não poderiam ter morrido em 8 de novembro, pois no dia 13 do mesmo mês participaram do assalto ao carro pagador do Ipeg (Instituto de Previdência do Estado da Guanabara), segundo depoimento do líder comunista Jacob Gorender na quinta edição, revista e corrigida, de seu livro de memórias “Combate nas Trevas” (São Paulo, Ática, p. 109), confirmado por Luís Mir em “A Revolução impossível. A esquerda e a luta armada no Brasil” (São Paulo, Best-Seller, 1994, p. 337).

2. Mesmo na hipótese de que tivessem morrido no próprio dia 13, seria impossível prendê-los, matá-los, sepultá-los em S. João de Meriti, desenterrá-los, limpá-los, vesti-los e levá-los para Vassouras para simular o acidente, tudo no mesmo dia.

3. Nas fotos exibidas pelo “Jornal Nacional” havia na estrada nítidas marcas de frenagem do Volks até a um metro de distância do caminhão. Um dos dois falecidos teria ressuscitado para frear o carro? Ou este foi freado por algum poderoso recruta Waldemar que, sentado sobre o cadáver, ainda teve tempo de sair voando pela janela um metro antes de que o veículo se espatifasse de encontro à rabeira do caminhão?

Há muitos outros absurdos no depoimento de Waldemar, que não tenho espaço para expor aqui. Mas um desertor que mente sobre a data de sua deserção, mortos que praticam um assalto cinco dias depois de falecidos, um cadáver que acorda e freia um carro que vai bater já não são loucura bastante? A coisa toda é tão imensuravelmente estúpida que, dez anos atrás, ninguém lhe prestaria atenção, exceto psiquiátrica.

Mas, no ambiente de carnavalesco triunfalismo Anti-Anos-de-Chumbo, até um repórter geralmente criterioso como Caco Barcelos se embriaga de loucura denuncista e, no meio das requintadas averiguações médico-legais que não deixou de fazer — o que muito o honra como profissional –, se esquece da primeira lição que os repórteres tarimbados ensinam aos novatos: conferir nomes e datas. O vírus da infalibilidade dos donos da memória nacional tornou-se a vaca louca do jornalismo brasileiro: contaminados, mesmo os mais fortes dentre nós endoidam.

Despertando da hipnose

Olavo de Carvalho

Época, 28 de abril de 2001

Pela primeira vez um homem de esquerda percebe que no Brasil não existe direita

Quem imagina que a imprensa se alimenta de novidades não tem a menor idéia do que se passa na cabeça de jornalistas. Eles gostam mesmo é da novidade-padrão, indefinidamente requentável com pequenas variações. O motivo é simples: ela é fácil de escrever e de efeito garantido. Denúncias de corrupção, fofocas do beautiful people, taxas de desemprego, brigas de políticos infundem no redator aquela segurança do mágico que vai brilhar com o mesmo truque, pela milésima vez, ante uma platéia que já o esqueceu 999 vezes. Quando você tem pressa e o trabalho é muito – duas condições que jamais falham nas redações –, a melhor notícia é aquela que já vem escrita.

A novidade autêntica, inédita, sem nome no catálogo, é um problema, um abacaxi: o sujeito não sabe nem por onde começar. Faltam-lhe os esquemas verbais, os lugares-comuns, os argumentos de apelo automático sem os quais mesmo o redator mais talentoso fica desamparado como uma tartaruga sem casca. O inédito, o esquisito, o incatalogável requer meios de expressão também inéditos. Exige algo mais que técnica jornalística: exige uma inventividade literária que raramente consente em dar o ar de sua graça no alvoroço do “fechamento”. Por falta de meios de expressão, às vezes aquilo que é mais interessante, mais urgente, mais útil vai para a lata de lixo, inapelavelmente condenado pela fatalidade da regra wittgensteiniana: “O que não se pode falar, deve-se calar”. E, quando casos desse tipo se acumulam, a imprensa deixa de cumprir seu papel de abrir para o leitor as janelas do mundo. Torna-se um repressivo “guardião do portal”, incumbido de lacrar os horizontes e manter a imaginação popular presa do repetitivo e do convencional.

Por isso mesmo é uma alegria ler o que li na coluna de Zuenir Ventura da semana passada. Pela primeira vez um jornalista reconhecidamente “de esquerda” dá uma espiada no mundo e, ao voltar, repara que desembarcou num país anormal – num país onde não existe direita. Normalmente, seria preciso ser direitista para notar isso, mas no Brasil nem os direitistas são direitistas o bastante para chegar a tamanho atrevimento de percepção. Em geral admitem o uso consagrado que faz do direitismo uma modalidade de crime hediondo e dizem que são “de centro”, sentindo-se mais ou menos como as prostitutas quando dizem que são massagistas.

Mas a criminalização da direita não se produziu sozinha. Ela é o resultado de meio século de “revolução cultural” – a ocupação esquerdista de todos os espaços, que inclui, como área privilegiada, o espaço verbal. E isso vai muito além do domínio sobre a linguagem dos jornais e das escolas. Os mestres soviéticos de desinformação recomendavam especial empenho na redação de dicionários. A partir dos anos 50, os principais dicionários em circulação no Brasil são verdadeiros receituários de semântica esquerdista, a qual assim se integra no uso corrente como se fosse a coisa mais normal e apolítica do mundo, rejeitando para o limbo do indizível, portanto impensável, tudo o que escape da ortodoxia consagrada. Passadas duas gerações, a anormalidade da situação transfigurou-se em normalidade postiça, e aí, mesmo quando o sujeito viaja, não lhe ocorre reparar numa diferença como aquela que Zuenir assinalou: pois o indizível e impensável se torna também imperceptível, mesmo quando nos posa diante dos olhos da cara com a sutileza de um hipopótamo.

É preciso ser muito inteligente e muito sincero para romper o cerco da repetição dessensibilizante e, num relance, perceber algo que está fora da pauta mental admitida. Quando os homens dormem, dizia Heráclito, eles se fecham cada qual em seu mundo; quando acordam, voltam todos ao mesmo mundo. Não fica bem a gente criticar ou elogiar, nas páginas de uma revista, os colegas de redação. Mas Zuenir ajudou o leitor a emergir da hipnose brasileira para voltar ao mundo de todos os homens. Que mais se pode exigir de um jornalista?

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