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Equilíbrio simulado

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 22 de maio de 2003

O noticiário sobre a dupla manifestação de sábado passado, contra e a favor das execuções de prisioneiros em Cuba, mostra que a nossa mídia chegou ao nível de cinismo da Enciclopédia Soviética, que trocava as cabeças dos personagens nas fotos para ajustar a História à propaganda oficial.

A simulação de equilíbrio, ao descrever as duas manifestações como fenômenos da mesma espécie, foi programada deliberadamente para ocultar o essencial.

O essencial é que as 75 velas acesas em frente ao consulado cubano em São Paulo, em protesto contra a prisão de idêntico número de pessoas, foram iniciativa pessoal de um exilado, o físico Juan José Lopes Linares, sem nenhum apoio de partidos ou entidades quaisquer, enquanto a contramanifestação, calculada para abafar a voz solitária de um oprimido, foi respaldada por algumas das mais ricas e poderosas organizações militantes deste país. Essas organizações têm interesse político e econômico no regime cubano, ao passo que o único interesse de Linares é trazer ao Brasil seu filho Juan Paolo, menor de idade, que continua retido na ilha pela polícia política de Fidel Castro.

As duas manifestações não são equiparáveis. Linares não é um político, não é um militante, não luta pelo poder, não tem uma receita ideológica para vender ao país. É apenas uma vítima do regime cubano, um pai desesperado que quer seu filho de volta e que sente piedade de seus companheiros de infortúnio. As pessoas que compareceram ao seu ato público foram lá porque quiseram, porque ouviram falar do acontecimento casualmente, porque leram a nota que publiquei na imprensa carioca. Não há entre elas o mínimo vínculo de militância, a mínima disciplina comum, a mínima unidade ideológica, a mínima obediência a um comando nacional ou internacional.

Os do outro lado, agitadores profissionais com carros de som e tropa de choque organizada, foram convocados por seus comandos partidários e sindicais, em obediência à rotina disciplinar da militância, como iriam, sem pestanejar, aonde quer que fossem chamados.

Nivelar as duas manifestações, apresentá-las como confronto de facções ideológicas, é falsear propositadamente a descrição dos fatos, para dar a impressão de que no Brasil existe concorrência democrática entre grupos de opinião, coisa que está completamente banida deste país pelo menos desde 2002, quando uma festinha de partidos de esquerda, pré-combinada no Foro de São Paulo, foi consagrada pela totalidade da mídia cúmplice como “a eleição mais transparente de toda a nossa história”.

A única concorrência que se admite hoje neste país é entre socialistas e comunistas, ou esquerdistas moderados e radicais. A defesa explícita do livre mercado, da democracia liberal e da ética tradicional judaico-cristã está fora do repertório dos partidos existentes, está fora da vida pública: refugiou-se na intimidade dos lares, no gueto eletrônico dos blogs, nas rodas de amigos, no protesto pessoal de vozes isoladas.

Quem quer que tente dar a esses protestos pessoais o sentido de ações políticas organizadas, equiparando-as, para simular democracia, às de partidos milionários, é um farsante, um agente de desinformação a serviço da opressão esquerdista que vende como “pluralismo” a completa ocupação do espaço político nacional pelos seus próprios debates internos, o bom e velho “centralismo democrático” leninista.

Tudo vem sendo feito para tornar inviável qualquer oposição “de direita” ao governo petista, para reduzir o quadro político nacional a uma discussão em família entre a esquerda e a esquerda da esquerda. Todos colaboraram para isso: o empresariado e a mídia, os intelectuais, os partidos políticos, cada um disposto a vender sua dignidade em troca de uma vil sobrevivência de escravo e bajulador.

Também não são equiparáveis, a título nenhum, a situação dos 75 encarcerados e a dos cinco cubanos presos nos EUA, a que a contramanifestação biônica quis dar ares de vítimas inocentes. Estes não foram acusados de roubar um ferry boat, de fugir em busca de um futuro melhor para suas famílias. Foram acusados de espionagem. E não foram condenados a toque de caixa, no prazo de três dias, sem direito de defesa, por um tribunal secreto, num simulacro kafkiano de julgamento.

Os intelectuais

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 18 de maio de 2003

Que se entende por “intelectual” no Brasil de hoje? É, em essência um sujeito bom de bico empenhado em ludibriar a massa de estudantes semi-analfabetos e as pessoas de origem humilde, a quem impressiona com promessas de uma vida melhor sob o tal do socialismo, um regime maravilhoso cuja principal virtude consistirá em não ser nada daquilo que existe nos países socialistas.

Quem quer que se dedique a isso com uma certa regularidade ao longo dos anos está habilitado a uma cátedra universitária, a subsídios estatais para a publicação de seus discursos gravados, a bolsas e fellowships de mil e uma ONGs milionárias com direito a viagens pelo Exterior.

That´s all.

Nada mais se exige, nada mais se pergunta, nada mais se cobra do pretendente a homem de letras. Se for negro, índio, gay ou mulher, isso ajuda um pouco, mas não é indispensável. O dr. Emir Sader nunca foi nada disso, mas reconhecem-lhe os méritos de quem fosse todas essas coisas ao mesmo tempo.

Há, é claro, intelectuais que ficam temporariamente à margem da oratória popular e só se dedicam a conversar uns com os outros sobre os assuntos da moda entre seus congêneres parisienses. Mas a qualquer momento podem ser convocados para assinar manifestos, gritar em passeatas, mostrar indignação ante as câmeras de TV ou desempenhar qualquer das outras ações verdadeiramente substantivas do seu ofício.

As conversações internas do grêmio, a que se dedicam nos intervalos desses momentos culminantes, podem parecer extremamente complexas à população que apreende pedaços delas por meio de suplementos culturais ou publicações similares, mas, quando examinadas de perto, mostram referir-se sempre ao estrito repertório dos assuntos de interesse dessa comunidade, os quais, sob uma impressionante variedade de formas e camuflagens, são três e apenas três: sexo, dinheiro e poder. Não há uma só tese universitária, alocução de cátedra, ensaio filosófico, artigo de jornal ou declaração televisiva dessas pessoas que, de maneira mais direta ou mais indireta, não verse sobre alguma dessas três coisas, sobre as três juntas ou sobre a falta de alguma delas. Nada mais.

Daí o interesse que suas palavras despertam numa população onde cada um está convicto de jamais ter tanto prazer sexual quanto lhe convém, tanto dinheiro quanto merece ou tanto poder quanto lhe falta para resolver todos os problemas nacionais e alguns internacionais.

Não há uma só dessas criaturas que não viva, em essência, do dinheiro dos impostos, ao qual se acrescenta a contribuição de entidades imperialistas como as Fundações Ford, Rockefeller e McArthur, dinheiro que ao ser dado a essas pessoas se limpa de todo ranço reacionário ou antipatriótico e se torna uma força viva a serviço do bem.

Não há também entre elas uma só que passe necessidades, sofra desemprego e privações ou fique desprovido por um só instante da solidariedade multitudinária dos seus pares.

Em qualquer lugar do mundo em que se encontre, o sujeito tem hospedagem e emprego garantidos e uma rede de contatos que o farão sentir-se em casa — respaldo humanitário indispensável, porque não há nada mais triste para um autêntico intelectual brasileiro do que estar longe de Garanhuns ou de Catolé do Rocha, perdido no deserto cultural e humano de Nova York, de Londres ou de Paris.

Entre os Cacás e os Gushikens

Olavo de Carvalho

O Globo, 17 de maio de 2003

O primeiro passo para a maturidade intelectual é habituar-se a buscar as realidades e os conceitos por trás das palavras, em vez de deixar-se impressionar pelas associações emocionais que a linguagem corrente foi depositando nelas.

Guardadas no fundo da memória afetiva, essas associações podem ser evocadas por simples reflexo condicionado. Daí o poder hipnótico das palavras e frases feitas cuja menção desperta reações imediatas de agrado ou desagrado, aprovação ou desaprovação, independentemente da referência a fatos ou coisas identificáveis.

Fatos e coisas, ao contrário, nem sempre podem ser evocados por mera estimulação reflexa, exigindo antes um esforço de reconstituição consciente e crítico. E conceitos são construções ideais com conteúdo fixo repetível, que permitem à mente retornar aos “mesmos” pontos da experiência para compará-los, associá-los, distingui-los, inseri-los em estruturas lógicas maiores.

Entre o homem que pensa por esforço consciente e aquele que se deixa arrastar pelo automatismo da memória afetiva, a diferença é quase tão grande quanto a que existe entre um adulto e um bebê de colo. O segundo, quando opina, literalmente não sabe do que fala: expressa apenas seu estado de alma, passando a léguas do objeto do qual imagina estar discorrendo. Excetuada uma estreita faixa de conversação pragmática, é assim que pensa a maior parte das pessoas. Suas opiniões traduzem anseios, cismas, temores: quase nada da realidade em que vivem.

O problema que daí resulta para as democracias é temível. De um lado, as noções de direito, liberdade, debate aberto, etc., pressupõem no cidadão a força de superar intelectualmente seu círculo de impressões subjetivas e de comunicação pragmática. De outro lado, a propaganda ideológica aposta tudo nas reações automatizadas, programáveis através de símbolos, chavões e slogans. O cidadão é convidado a exercer capacidades intelectuais superiores que, ao mesmo tempo, são reprimidas e massacradas em favor de uma lógica pediátrica na qual o rótulo vale pela substância e a proximidade de duas palavras é identidade de coisas.

Para desfazer o feitiço das palavras, é preciso descompactá-las, separando os vários significados e intenções que subentendem, e depois montá-los de novo segundo um conhecimento de experiência traduzido em conceitos claros.

Mas o que a razão se esforça em distinguir e ordenar é justamente aquilo que a propaganda busca mesclar indissoluvelmente numa grudenta pasta semântica de enorme força sugestiva e significado objetivo nenhum.

Desvencilhar-se dessa pasta exige uma concentração de espírito, uma amplitude de informação e um repertório verbal que estão infinitamente acima do que se pode esperar, no Brasil de hoje, não só da população humilde mas também de gente universitária.

Daí que essas pessoas tomem como realidade qualquer associação de palavras que se torne suficientemente usual para não suscitar estranheza.

A expressão “sociedade injusta”, por exemplo, é de uso tão freqüente que não parece conter nenhuma intenção maligna, apenas a descrição de um estado de coisas que todos admitem como real. Mas o que a experiência mostra é apenas uma sociedade pobre, mal organizada, encrencada, sofredora. Nessa sociedade há seguramente injustiças, mas chamar “injusta” à sociedade enquanto tal subentende que haja um tribunal superior a ela, capaz de julgá-la como um todo. E nenhum tribunal como esse pode existir, exceto no Dia do Juízo, fora do tempo histórico. Os homens de religião, quando muito santos, são às vezes admitidos como porta-vozes virtuais dessa justiça supratemporal, com a condição de que exerçam esse papel com modéstia e prudência, limitando-se a dar conselhos sem querer impor suas decisões à comunidade. Mas, a partir do momento em que o símbolo “sociedade injusta” adquire foros de realidade na imaginação das multidões, qualquer partido ou grupo que lance constantes acusações à “sociedade” acaba sendo aceito como porta-voz daquela instância judiciária absoluta, superior a todas as jurisdições humanas. Se a sociedade é injusta, ela não pode fazer justiça. Aquele que prometa fazê-la em seu lugar torna-se pois juiz da sociedade inteira: torna-se autoridade moral ou religiosa, mas sem o freio da abstinência política que limitava a esfera de ação dos religiosos tradicionais. Tem as chaves dos dois reinos: poder terrestre e autoridade celeste, César e o Papa fundidos na onipotência de uma elite militante. Antonio Gramsci recomendava explicitamente que a autoridade do Partido se elevasse ao estatuto de um “imperativo categórico”, de um “mandamento divino” (sic) que moldasse e dirigisse todas as discussões desde alturas invisíveis à massa dos cidadãos, que seriam então facilmente conduzidos como bois de carro pela elite partidária no instante mesmo em que acreditassem desfrutar de plena liberdade.

Somente uma força poderia opor-se a essa estratégia: a educação, a preparação dos cidadãos para o uso maduro e refletido da linguagem. Mas, se as instituições educacionais se tornaram caixas de ressonância do discurso ideológico, está tudo perdido: a análise dos símbolos é condenada como propaganda, enquanto a propaganda é aceita como traslado literal de realidades inegáveis.

Quando se chega a esse estado de coisas, a derrocada total da inteligência se segue inexoravelmente, reduzindo a cultura à propaganda. Então só resta decidir se a propaganda seguirá à risca as normas da burocracia ou, mais gramscianamente, se deixará enfeitar pelas fantasias vaidosas de artistas colaboracionistas — um debate que, por essas mesmas razões, só interessa a colaboracionistas e burocratas, ou Cacás e Gushikens.

***

Hoje à tarde, o físico exilado Juan Lopez Linares, cujo filho pequeno está retido em Havana, acenderá 75 velas em frente ao consulado de Cuba em São Paulo para reivindicar a libertação dos prisioneiros políticos cubanos. Espera-se que Fidel Castro não veja nisso o risco iminente de deflagração de uma guerra mundial.

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