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O ovo e o pinto

Olavo de Carvalho

Folha de São Paulo, 3 de agosto de 2014

          

Meu artigo anterior suscitou uma pergunta interessante na área de comentários: se há tanta gente nas altas esferas colaborando com o comunismo, como é que ele ainda não dominou o mundo?

A primeira e mais óbvia resposta é que “o comunismo” como regime, como sistema de propriedade, é uma coisa, e o “movimento comunista” enquanto rede de organizações é outra. O primeiro é totalmente inviável, mas por isso mesmo o segundo pode crescer indefinidamente sem jamais ser obrigado a realizá-lo, limitando-se, em vez disso, a colher os lucros do que vai roubando, usurpando, prostituindo e destruindo pelo caminho.

São duas faixas de realidade completamente distintas, que se mesclam numa confusão desnorteante sob a denominação de “comunismo”.

Uma analogia tornará as coisas mais claras. Nenhum ser humano pode levar uma vida razoável com base numa loucura, mas, por isso mesmo, nada o impede de ficar cada vez mais louco: ele se estrepa, mas a loucura progride. A força da loucura consiste precisamente em furtar-se ao teste de realidade. Os comunistas não podem realizar a economia comunista. Se têm uma imensa facilidade em arrebanhar pessoas para que lutem por esse fim irrealizável, é precisamente porque ele é irrealizável, o que é o mesmo que dizer: inacessível a toda avaliação objetiva de resultados.

Jamais existirá uma economia comunista da qual seus criadores digam: “Eis aqui o comunismo realizado. Podem julgar-nos e dizer se cumprimos ou não as nossas promessas.” É da natureza mais íntima do ideal comunista ser uma promessa indefinidamente autoadiável, imune, por isso, a todo julgamento humano. Seu prestígio quase religioso vem exatamente disso: o comunismo traz o Juízo Final do céu para a Terra, mas também sem data marcada.

Daí o aparente paradoxo de um movimento que, quanto mais cresce e mais poderoso se torna, mais se afasta dos seus fins proclamados. A esse paradoxo acrescenta-se um segundo: quanto mais se afasta desses fins, mais o movimento está livre para alegar que foi traído e que tem direito a uma nova oportunidade, com meios mais “puros”. Mas o paradoxo dos paradoxos reside numa faixa ainda mais profunda.

Se alguém diz que vai fazer o impossível, com certeza não fará nada ou fará outra coisa. Se fizer, poderá ao mesmo tempo dar a essa coisa o nome daquilo que pretendia e alegar que ela ainda não é, ou que não é de maneira alguma, aquilo que pretendia. Daí a ambiguidade permanente do discurso comunista, que pode sempre se alardear um movimento poderoso destinado a uma vitória inevitável, e ao mesmo tempo minimizar ou negar a sua própria existência, jurando que ela não passa de uma “teoria da conspiração”, de uma invencionice de lacaios do capital.

É alucinante, mas é o que acontece todos os dias. Definitivamente, a mente comunista não funciona segundo os cânones da psicologia usual, mas segue uma lógica própria, onde se misturam, em doses indistinguíveis, a habilidade dialética, o autoengano histérico e a mendacidade psicopática.

Por isso mesmo é que o crescimento vertiginoso do movimento comunista acompanha, “pari passu”, não a decadência do capitalismo, mas a escalada do seu sucesso. O comunismo como regime, como sistema econômico, não existe nem existirá nunca. O comunismo só pode existir como movimento político que vive de parasitar o capitalismo e, por isso mesmo, cresce com ele.

Mas, por mais que sobreviva e se fortaleça, o corpo parasitado não sai ileso da parasitagem: limitado cada vez mais à função de fornecedor de recursos e pretextos para o parasita, ele vai perdendo todos os valores morais, religiosos e culturais que originalmente o inspiraram e reduzindo-se à mecanicidade do puro jogo econômico, cada vez mais fácil de criticar, enquanto o parasita se adorna de todo o prestígio da moral e da cultura.

O modus operandi dessa parasitagem é duplo: de um lado, as economias comunistas só sobrevivem graças à ajuda capitalista vinda do exterior. De outro, em cada nação, o crescimento da economia capitalista alimenta cada vez mais a cultura comunista.

Na mesma medida em que a mais absoluta inviabilidade impede a construção da economia comunista, o comunismo militante alcança vitória atrás de vitória no seu empenho de transformar o capitalismo numa geringonça infernal e sem sentido. Toda a lógica do comunismo, em última análise, deriva da idéia hegeliana do “trabalho do negativo”, ou destruição criativa.

Mas “destruição criativa” é apenas uma figura de linguagem, uma metonímia. A destruição de uma coisa só pode dar lugar ao crescimento de outra se esta for movida desde dentro por uma força criativa própria, que nada deve à destruição. Esperar que a destruição, por si, crie alguma coisa, é como querer que nasça um pinto de um ovo frito.

Guerra fria ou guerra assimétrica?

Olavo de Carvalho

Folha de São Paulo, 27 de julho de 2014

          

Aceita ainda no Brasil, como dogma inquestionável, a visão popular da Guerra Fria como uma luta sorrateira e implacável entre duas potências que se odiavam pode hoje ser atirada à lata de lixo como um estereótipo enganoso, história da carochinha inventada para dar aos cérebros preguiçosos a ilusão de que entendiam o que se passava.

Nos últimos decênios, tantos foram os fatos trazidos à luz pela decifração dos códigos Venona (as comunicações em código entre a embaixada da União Soviética em Washington e o governo de Moscou) e pela pletora de documentos desencavados dos arquivos soviéticos, que praticamente nada da opinião chique dominante na época permanece de pé.

Na verdade, a ocupação principal do governo e da mídia soviéticos no período foi mentir contra os Estados Unidos, enquanto seus equivalentes americanos se dedicavam, com igual empenho, a mentir a favor da URSS. Não só mentir: acobertar seus crimes, proteger seus agentes, favorecer seus interesses acima dos de nações amigas e, não raro, da própria nação americana.

Em lugar do equilíbrio de forças que, secundado ou não por um obsceno equivalentismo moral, ainda aparece na mídia vulgar e nas Wikipédias da vida como retrato histórico fiel, o que se vê hoje é que o conflito EUA-URSS foi aquilo que mais tarde se chamaria “guerra assimétrica”, em que um lado combate o outro e o outro combate a si mesmo.

Não que não houvesse, da parte americana, um decidido e vigoroso anticomunismo, disposto a tudo para deter o avanço soviético na Europa, na Ásia, na África e na América Latina. Tantas foram as personalidades que se destacaram nesse combate –jornalistas, escritores, artistas, políticos, militares, agentes dos serviços de inteligência – e tão gigantescos foram os seus esforços, que daí deriva o que possa haver de legítimo na visão dos EUA como o inimigo por excelência do movimento comunista. Basta citar os nomes de George S. Patton, Douglas MacArthur, Robert Taft, Whittaker Chambers, Joseph McCarthy, Eugene Lyons, Sidney Hook, Fulton Sheen, Edgar J. Hoover, James Jesus Angleton, Robert Conquest, Barry Goldwater, para entender por que o anticomunismo se projetou como uma imagem típica da América, não só no exterior como perante os próprios americanos.

Porém, examinado caso por caso, o que se verifica é que em cada um deles a força inspiradora foi a iniciativa pessoal e não uma política de governo; e que, praticamente sem exceção, todos os que se destacaram nessa luta foram boicotados, manietados pelas autoridades de Washington (mesmo quando eles próprios faziam parte do governo) e achincalhados pela mídia, pelo sistema de ensino e pelo show business, em vida ou pelo menos postumamente. Não raro, sabotados e perseguidos pelos seus próprios pares republicanos e conservadores, temerosos de parecer mais anticomunistas do que o anti-anticomunismo vigente no mundo chique permitia.

Em suma: enquanto a sociedade americana fervilhava de anticomunismo, a política oficial, de Roosevelt em diante, e com a exceção notável da gestão Ronald Reagan, foi sistematicamente a do colaboracionismo nem sempre bem disfarçado.

O que explica isso é que os agentes soviéticos infiltrados no governo e na grande mídia não eram cinquenta e poucos, como pensava o infeliz Joe McCarthy, o qual pagou por esse cálculo modestíssimo o preço de tornar-se o senador americano mais odiado de todos os tempos. Eram – sabe-se hoje – mais de mil, muitos deles colocados em postos elevados da hierarquia, onde às vezes fizeram muito mais do que “influenciar”: chegaram a determinar o curso da política externa americana, sempre, é claro, num sentido favorável à URSS. O exemplo mais clássico foi a deterioração das relações entre EUA e Japão, que culminou no ataque a Pearl Harbor – um plano engenhosíssimo concebido em Moscou para livrar a URSS do perigo de uma guerra em duas frentes, jogando contra os americanos a fúria nipônica mediante um jogo bem articulado entre a “Orquestra Vermelha” de Richard Sorge em Tóquio e o conselheiro presidencial Harry Hopkins em Washington.

Mas os capítulos da saga colaboracionista se acumulam numa profusão alucinante até a gestão Clinton, quando o estímulo governamental a investimentos maciços na China fez de um país falido uma potência inimiga ameaçadora.

Não creio que essa história – talvez a mais bem documentada do século XX – tenha sido jamais contada no Brasil. Mesmo nos EUA ela circula apenas entre intelectuais e historiadores de ofício, enquanto o povão ainda segue a lenda oficial. É uma história demasiado vasta e complexa para que eu pretenda resumi-la aqui.

O que posso fazer é sugerir alguns livros que darão ao leitor uma visão do estado das pesquisas hoje em dia:

Diana West, American Betrayal. The Secret Assault on Our Nation’s Character(St. Martin’s, 2013).

Herbert Rommerstein and Eric Breindel: The Venona Secrets. Exposing Soviet Espionage and America’s Traitors (Regnery, 2000).

John Earl Haynes and Harvey Klehr: Venona. Decoding Soviet Espionage in America (Yale University Press, 1999).

Allen Weinstein and Alexander Vassiliev: The Haunted Wood. Soviet Espionage in America. The Stalin Era (Random House, 1999).

Paul Kengor: Dupes. How America’s Adversaries Have Manipulated Progressives for a Century (ISI Books, 2010).

Arthur Hermann, Joseph McCarthy: Reexamining the Life and Legacy of America’s Most Hated Senator (Free Press, 2000).

M. Stanton Evans: Blacklisted by History. The Untold Story of Senator Joe McCarthy (Crown Forum, 2007).

Robert K. Willcox: Target: Patton. The Plot to Assassinate General George S. Patton (Regnery, 2008).

A destruição da inteligência

Olavo de Carvalho

Digesto Econômico, 14 de julho de 2014

Aprender, imitar e introjetar o vocabulário, os tiques e trejeitos mentais e verbais da escola de pensamento dominante na sua faculdade é, para o jovem estudante, um desafio colossal e o cartão de ingresso na comunidade dos seus maiores, os tão admirados professores.

A aquisição dessa linguagem é tão dificultosa, apelando aos recursos mais sutis da memória, da imaginação, da habilidade cênica e da autopersuasão, que seria tolo concebê-la como uma simples conquista intelectual. Ela é, na verdade, um rito de passagem, uma transformação psicológica, a criação de um novo “personagem”, apoiado no qual o estudante se despirá dos últimos resíduos da sentimentalidade doméstica e ingressará no mundo adulto da participação social ativa.

É quase impossível que essa identificação profunda com o personagem aprendido não seja interpretada subjetivamente como uma concordância intelectual, ao ponto de que, no instante mesmo em que repete fielmente o discurso decorado, ou no máximo faz variações em torno dele, o neófito jure estar “pensando com a própria cabeça” e “exercendo o pensamento crítico”.

A imitação é, com certeza, o começo de todo aprendizado, mas ela só funciona porque você imita uma coisa, depois outra, depois uma infinidade delas, e com a soma dos truques imitados compõe no fim a sua própria maneira de sentir, pensar e dizer.

No aprendizado da arte literária isso é mais do que patente. O simples esforço de assimilar auditivamente a maneira, o tom, o ritmo, o estilo de um grande escritor já é uma imitação mental, uma reprodução interior daquilo que você está lendo. A imitação torna-se ainda mais visível quando você decora e declama poemas, discursos, sermões ou capítulos de uma narrativa. Porém nas suas primeiras investidas na arte da escrita é impossível que você não copie, adaptando-os às suas necessidades expressivas, os giros de linguagem que aprendeu em Machado de Assis, Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, Balzac, Stendhal e não sei mais quantos. Esse exercício, se você é um escritor sério, continua pela vida a fora. Quando conheci Herberto Sales – que Otto Maria Carpeaux julgava o escritor dotado de mais consciência artística já nascido neste país –, ele estava sentado no saguão do Hotel Glória com um volume de Proust e um caderninho onde anotava cada solução expressiva encontrada pelo romancista, para usá-la a seu modo quando precisasse. Já era um homem de setenta e tantos anos, e ainda estava praticando as lições do velho Antoine Albalat.[1] É assim, por acumulação e diversificação dos recursos aprendidos, que se forma, pari passu com a evolução natural da personalidade, o estilo pessoal que singulariza um escritor entre todos. T. S. Eliot ensinava que um escritor só é verdadeiramente grande quando nos seus escritos transparece, como em filigrana, toda a história da arte literária.

Em outros tipos de aprendizado, a imitação é ainda mais decisiva. Nas artes marciais e na ginástica, quantas vezes você não tem de repetir o gesto do seu instrutor até aprender a produzi-lo por si próprio! Na música, quantas performances magistrais o pianista não aprende de cor até produzir a sua própria!

Nas ciências e na tecnologia, o manejo de equipamentos complexos nunca se aprende só em manuais de instrução: o aluno tem de ver e imitar o técnico mais experiente, num processo de assimilação sutil que engloba, em doses consideráveis, a transmissão não-verbal. [2]

Por que seria diferente na filosofia? Compreender uma filosofia não se resume nunca em ler as obras de um filósofo e julgá-las segundo uma reação imediata ou as opiniões de um professor. É impregnar-se de um modo de ver e pensar como se ele fosse o seu próprio, é olhar o mundo com os olhos do filósofo, com ampla simpatia e sem medo de contaminar-se dos seus possíveis erros. Se desde o início você já lê com olhos críticos, buscando erros e limitações, o que você está fazendo é reduzir o filósofo à escala das suas próprias impressões, em vez de ampliar-se até abranger o “universo” dele. Erros e limitações não devem ser buscados, devem surgir naturalmente à medida que você assimila novos e novos autores, novos e novos estilos de pensar, pesando cada um na balança da tradição filosófica e não da sua incultura de principiante. Não seria errado dizer que, entre outros critérios, um professor de filosofia deve ser julgado, sobretudo, pelo número e variedade dos autores, das escolas de pensamento, das vias de conhecimento que abriu em leque para que seus estudantes as percorressem.[3]

Não é preciso mais exemplos. Em todos esses casos, a imitação é o gatilho que põe em movimento o aprendizado, e em todos esses casos ela não se congela em repetição servil porque o aprendiz passa de modelo a modelo, incorporando uma diversidade de percepções e estilos que acabarão espontaneamente se condensando numa fórmula pessoal, irredutível a qualquer dos seus componentes aprendidos.

Mas o que acontece se, em vez disso, o aluno é submetido, por anos a fio, à influência monopolística de um estilo de pensamento dominante, aliás muito limitado no seu escopo e na sua esfera de interesses, e adestrado para desinteressar-se de tudo o mais sob a desculpa de que “não é referência universitária”?

Se durante quatro, cinco ou seis anos você é obrigado a imitar sempre a mesma coisa, e ainda temendo que o fracasso em adaptar-se a ela marque o fim da sua carreira universitária, a imitação deixa de ser um exercício temporário e se torna o seu modo permanente de ser – um “hábito”, no sentido aristotélico.

É como um ator que, forçado a representar sempre um só personagem, não só no palco mas na vida diária, acabasse incapaz de se distinguir dele e de representar qualquer outro personagem, inclusive o seu próprio. Pirandello explorou magistralmente essa situação absurda na peça Henrique IV, onde um milionário louco, imaginando ser o rei, obriga os empregados a comportar-se como funcionários da côrte, até que eles acabam se convencendo de que são mesmo isso.

Toda imitação depende de uma abertura da alma, de uma impregnação empática, de uma suspension of disbelief em que o outro deixa de ser o outro e se torna uma parte de nós mesmos, sentindo com o nosso coração e falando com a nossa voz. Se praticamos isso com muitos modelos diversos, sem medo das contradições e perplexidades, nossa mente se enriquece ao ponto do nihil humanum a me alienum, daquela universalidade de perspectivas que nos liberta do ambiente mental imediato e nos torna juízes melhores de tudo quanto chega ao nosso conhecimento. Não é errado dizer que o julgamento honesto e objetivo depende inteiramente da variedade dos pontos de vista, contraditórios inclusive, que podemos adotar como “nossos” no trato de qualquer questão.

Em contrapartida, o enrijecimento da alma num papel fixo abusa da capacidade de imitação até corrompê-la e extingui-la por completo, bloqueando toda possibilidade de abertura empática a novos personagens, a novos estilos, a novos sentimentos e modos de ver.

Habituado a tomar como referência única o conjunto de livros e autores que compõe o universo mental da esquerda militante, e a olhar com temerosa desconfiança tudo o mais, o estudante não só se fecha num provincianismo que se imagina o centro do mundo, mas perde realmente a capacidade de aprendizado, tornando-se um repetidor de tiques e chavões, caquético antes do tempo.

Quem não sabe que, no meio acadêmico brasileiro, a receita uniforme, há mais de meio século, é Marx-Nietzsche-Sartre-Foucault-Lacan-Derrida, não se admitindo outros acréscimos senão os que pareçam estender de algum modo essa tradição, como Slavoj Zizek, Istvan Meszaros ou os arremedos de pensamento que levam, nos EUA, o nome de “estudos culturais”?

Daí a reação de horror sacrossanto, de ódio irracional, não raro de repugnância física, com que tantos estudantes das nossas universidades reagem a toda opinião ou atitude que lhes pareça antagônica ao que aprenderam de seus professores. Não que estejam realmente persuadidos, intelectualmente, daquilo que estes lhes ensinaram. Se o estivessem, reagiriam com o intelecto, não com o estômago. O que os move não é uma convicção profunda, séria, refletida: é apenas a impossibilidade psicológica de desligar-se, mesmo por um momento, do “eu” artificial aprendido, cuja construção lhes custou tanto esforço, tanto investimento emocional.

Justamente, a convicção intelectual genuína só pode nascer da experiência, do longo demorado com os aspectos contraditórios de uma questão, o que é impossível sem uma longa resignação ao estado de dúvida e perplexidade. A intensidade passional que se expressa em gritos de horror, em insultos, em afetações de superioridade ilusória, marca, na verdade, a fragilidade ou ausência completa de uma convicção intelectual. A construção em bloco de um personagem amoldado às exigências sociais e psicológicas de um ambiente ideologicamente carregado e intelectualmente pobre fecha o caminho da experiência, portanto de todo aprendizado subseqüente.

A irracionalidade da situação é ainda mais enfatizada porque o discurso desse personagem o adorna com o prestígio de um rebelde, de um espírito independente em luta contra todos os conformismos. Poucas coisas são tão grotescas quanto a coexistência pacífica, insensível, inconsciente e satisfeita de si, da afetação de inconformismo com a subserviência completa à autoridade de um corpo docente.

No auge da alienação, o garoto que passou cinco anos intoxicando-se de retórica marxista-feminista-multiculturalista-gayzista nas salas de aula, que reage com quatro pedras na mão ante qualquer palavra que antagonize a opinião de seus professores esquerdistas, jura, depois de ler uns parágrafos de Bourdieu para a prova, que a universidade é o “aparato de reprodução da ideologia burguesa”. Aí já não se trata nem mesmo de “paralaxe cognitiva”, mas de um completo e definitivo divórcio entre a mente e a realidade, entre a máquina de falar e a experiência viva.

Se, conforme se observou em pesquisa recente, cinqüenta por cento dos nossos estudantes universitários são analfabetos funcionais[4] – não havendo razão plausível para supor que a quota seja menor entre seus professores mais jovens –,  isso não se deve somente a uma genérica e abstrata “má qualidade do ensino”, mas a um fechamento de perspectivas que é buscado e imposto como um objetivo desejável.

Não que a presente geração de professores que dá o tom nas universidades brasileiras tenha buscado, de maneira consciente e deliberada, a estupidificação de seus alunos. Apenas, iludidos pelo slogan que os qualificava desde os anos 60 do século XX como “a parcela mais esclarecida da população”, tomaram-se a si próprios como modelos de toda vida intelectual superior e acharam que, impondo esses modelos a seus alunos, estavam criando uma plêiade de gênios. Medindo-se na escala de uma grandeza ilusória, incapazes de enxergar acima de suas próprias cabeças, tornaram-se portadores endêmicos da síndrome de Dunning-Kruger[5] e a transmitiram às novas gerações. Os cinqüenta por cento de analfabetos funcionais que eles produziram são a imagem exata da sua síntese de incompetência e presunção.

 


Notas:

[1] V. Antoine Albalat, La Formation du Style par l’Assimilation des Auteurs (Paris, Alcan, 1901).

[2] V. sobre isso as considerações de Theodore M. Porter em Trust in Numbers. The Pursuit of Objectivity in Science and Public Life,  Princeton University Press, 1995, pp. 12-17.

[3] Digo isso com a consciência tranqüila de haver cumprido esse dever. Ao longo dos anos, introduzi no espaço mental brasileiro mais livros e autores essenciais  do que todos os corpos docentes de faculdades de filosofia neste país, somados aos “formadores de opinião” da mídia popular. Em vez de me agradecer, ou de pelo menos ter a sua curiosidade despertada pela súbita abertura de perspectivas, estudantes e professores, com freqüência, me acusaram de “citar autores desconhecidos” – dando por pressuposto que tudo o que é ignorado no seu ambiente imediato é desconhecido do resto do mundo e não tem a mais mínima importância.

[4] V. http://www.folhapolitica.org/2014/02/pesquisador-conclui-que-mais-da-metade.html.

[5] Efeito Dunning-Kruger: incapacidade de comparar objetivamente as próprias habilidades com as dos outros. “Quanto menos você sabe sobre um assunto, menos coisas acredita que há para saber.” V. David McRaney, You Are Not So Smart, London, Oneworld Publications, 2012, pp. 78-81.

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