Olavo de Carvalho

O Globo, 6 de julho de 2002

O mais notável fenômeno psicológico da última década foi o “upgrade” mundial do discurso comunista, que, por meio da pura alquimia verbal, transmutou o fracasso sangrento de um regime campeão de genocídio em argumento plausível para elevar ao sétimo céu o prestígio e a autoridade moral da causa esquerdista.

Foi o maior “non sequitur” de todos os tempos. Para realizá-lo, os meios empregados foram espantosamente simples:

Primeiro: declarar o comunismo episódio encerrado, de modo a inibir a tentação de estudá-lo, portanto a aptidão de reconhecê-lo no seu estado presente e a vontade de combatê-lo.

Segundo: trocar a palavra “comunismo” por qualquer de seus equivalentes eufemísticos tradicionais (“forças democráticas”, etc.), que, na atmosfera de esquecimento geral assim criada, poderiam sem dificuldade passar por novos.

Terceiro: continuar imperturbavelmente a usar as mesmas categorias de pensamento e os mesmos meios de ação do marxismo tradicional, com a perfeita segurança de que ninguém na platéia os reconheceria. (Assim, por exemplo, a lei de quotas raciais é simples aplicação de um velho preceito de Stálin, mas quem lê Stálin hoje em dia?)

Quarto: instigar a hostilidade muçulmana contra Israel e os EUA, de modo a disfarçar a guerra anticapitalista sob o manto de um conflito entre dois conservadorismos, o islâmico e o judaico-cristão. (Para dar credibilidade ao disfarce, bastava apagar certos detalhes do quadro, como por exemplo o fato — omitido em quase toda a grande mídia mundial — de que a gigantesca manifestação anti-israelense e anti-americana de 20 de abril em Nova York não foi organizada por nenhum muçulmano, mas por Brian Becker, comunista linha-dura e colaborador de Fidel Castro.)

Pronto. Com esses poucos truques, a esquerda consegue fazer hoje a opinião pública aceitar as teses marxistas da luta de classes e da supressão completa da oposição conservadora como sinais de moderação e tolerância democrática. O mundo fica assim dividido em duas categorias de pessoas: as saudáveis, tolerantes e equilibradas, adeptas do comunismo sob qualquer nome que seja, e as radicais, insanas, fanáticas e autoritárias, adeptas de tudo o mais. O lugar das primeiras é na mídia; o das segundas, na cadeia ou no hospício.

Nunca ninguém apostou tanto na estupidez humana — e ganhou com tamanha facilidade.

Tantos são os livros, os artigos, os filmes, os programas de TV empenhados nessa aposta, que a listagem não teria mais fim.

À guisa de amostra nacional, aponto a esmo a recém-publicada tese do prof. Rodrigo Patto Sá Motta, “Em Guarda Contra o ‘Perigo Vermelho’: o Anticomunismo no Brasil 1917-1964”. Há muito o que observar nela, tal a profusão dos meios a que o autor recorre para fazer a difamação vitriólica do anticomunismo parecer a coisa mais isenta e científica do mundo. Não sobra espaço para comentar a obra aqui, ficando pois o assunto para um artigo vindouro. Para os curiosos, adianto apenas o seguinte: Patto, sobrenome do autor, escreve-se com dois “tt”. Pato, com um “t” só, é o leitor.

***

Anos atrás escrevi que o dr. Nelson Jobim, sonhando em proteger os cidadãos contra a violência criminal mediante a supressão de seus meios de legítima defesa, não me parecia homem esperto o bastante para captar a diferença do grau de periculosidade de um revólver quando visto pelo lado do cabo e pelo lado do cano. Agora, noto, sem surpresa, que o fleumático jurista não enxergou nas acusações ao senador José Dirceu nenhum motivo para querer saber mais a respeito. Pena que tão sobranceira incuriosidade não tenha predominado em outras ocasiões, quando qualquer zunzum na mídia bastou para legitimar tantos inquéritos espetaculares, que, se nada de substancial fizeram contra a corrupção, destruiram virtualmente todos os obstáculos à ascensão da esquerda nacional. Pena que a indiferença a fofocas tenha entrado em cena tão tarde, em tempo de proteger contra denúncias histéricas tão-somente aquele que foi, sob muitos títulos, o pai do denuncismo histérico no Brasil.

Em 1993, a CPI do Orçamento não julgou indignas de investigação as intrigas anônimas que o senador José Dirceu alegava para incriminar uma certa construtora. Ninguém censurou a afoiteza do senador quando, baseado nuns papéis suspeitos que encontrara, ele já ia apontando Roberto Campos à execração pública antes de averiguar que o cidadão ali mencionado era apenas um homônimo do então colunista do Globo. Ninguém o acusou de invencionice quando ele identificou como peça-chave da corrupção na Câmara Federal um inexistente funcionário de prefeitura do interior. Ninguém o rotulou de cara-de-pau quando ele, notoriamente oficial aposentado do serviço secreto cubano, denunciou a existência de um “Estado paralelo” em sinistra conspiração contra os direitos políticos dele mesmo e de seus similares. E ninguém pôs em dúvida sua credibilidade quando ele atribuiu o assassinato do prefeito de Santo André a “organizações terroristas de direita”.

Pena que não tivesse prevalecido, nessas ocasiões, o olímpico desprezo jobiniano a hipóteses e conjeturas. Mas não é mesmo uma linda coincidência que o balde de água fria só tenha chegado em tempo de salvar do incêndio o maior dos incendiários?

***

Tão insensível quanto o dr. Nelson Jobim, a mídia nacional continua ignorando solenemente o manifesto redigido pelo filósofo Denis Rosenfield — e assinado por todos os deputados estaduais gaúchos, menos os do PT, é claro — contra a perseguição incansável movida pelo governo Olívio Dutra aos jornalistas que ousem criticá-lo.

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