Olavo de Carvalho
O Globo, 11 de agosto de 2001
Malgrado as dificuldades e limitações que terá de enfrentar, o julgamento dos guerrilheiros do Khmer Vermelho, que o governo do Camboja e as Nações Unidas anunciam para este ano, pode ser o primeiro passo para uma tomada universal de consciência de que os colaboradores de regimes comunistas são culpados de crimes contra a humanidade, exatamente no sentido e na medida que o foram os nazistas condenados pelo Tribunal de Nuremberg.
Um quarto de século atrás, poucas semanas antes da queda de Saigon, o grupo liderado por Pol Pot tomava o poder no vizinho Camboja e, em nome da nova cultura socialista, iniciava o massacre dos recalcitrantes e desajustados, chegando em poucos anos à cifra de dois milhões de mortos.
Esses crimes, cometidos por cambojanos contra seus próprios compatriotas desarmados, em tempo de paz, suscitaram imensuravelmente menos revolta e gritaria internacional do que os bombardeios americanos no Vietnã ou do que as mortes de três mil esquerdistas chilenos ocorridas em ambiente de guerra civil.
Um dos obstáculos temíveis que o julgamento do clã Pol Pot encontrará pela frente é, sem dúvida, a má vontade da mídia internacional cúmplice. Desde que, no começo dos anos 90, o dissidente Vladimir Bukovski trouxe dos Arquivos de Moscou as provas de que praticamente toda a imprensa social-democrática européia tinha sido financiada pela KGB na década anterior — suscitando imediatamente a eclosão da Operação Mãos Limpas, com que uma organizada elite de juízes comunistas desviou a atenção do público para casos de corrupção doméstica — ninguém mais tem o direito de imaginar que prestigiosos jornais de centro-esquerda, na Itália, na França ou na Alemanha, são fontes fidedignas de informação. A participação ativa de um deles naquele grotesco ritual de beatificação das Farcs que foi o Fórum Social Mundial de Porto Alegre assinala toda a diferença que existe entre jornalismo e propaganda.
A desproporção monstruosa entre a espetacular campanha mundial anti-Pinochet e o modestíssimo destaque que se vem dando ao julgamento do Khmer Vermelho não é coincidência: é, no mínimo, um esforço consciente para varrer para baixo do tapete as culpas dos colaboradores europeus do genocídio cambojano.
Nada está mais longe da mentalidade atual dos remanescentes esquerdistas no mundo do que a hipótese de assumirem, mesmo em pensamento, a mais mínima parcela de culpa por todo o mal que ajudaram a fazer. Mesmo quando reconhecem o horror da ditadura socialista construída na URSS, na China, em Cuba, não se sentem culpados, mas vítimas. A desilusão que tiveram com seus sonhos de juventude lhes parece um sofrimento incomparavelmente mais digno de piedade do que aquele que, em nome desses sonhos, eles e seus cúmplices impuseram a um quarto da população do globo terrestre. Que são, de fato, cem milhões de mortos e muitas centenas de milhões de pessoas reduzidas ao trabalho escravo, perto da humilhação de alguns grupos de intelectuaizinhos obrigados a reconhecer, se tanto, pequenos erros de estratégia na realização de seus lindos projetos sociais?
Quando digo que há algo de anormal, de doente, de sociopático na mentalidade de comunistas, socialistas e esquerdistas em geral, é a isso que me refiro: é a essa incapacidade radical que cada um deles tem de julgar-se a si próprio pelos mesmos padrões com que julga os outros. É a essa completa e profunda falta do senso de igualdade nos apóstolos da igualdade. É a esse total e soberano desprezo pelo Segundo Mandamento.
Graças à universalidade desse fenômeno, o julgamento do Khmer Vermelho não somente se arrisca a ser bastante amortecido pela mídia mundial, mas ainda a ter de contentar-se com enviar ao banco dos réus apenas uma parte dos líderes conhecidos desse movimento criminoso, pois vários remanescentes dele ocupam posições de destaque na sociedade cambojana atual, e dificilmente as autoridades judiciárias terão a coragem ou os meios de mexer com eles — sobretudo com Ieng Sary, cunhado do falecido Pol Pot e ex-ministro das Relações Exteriores. Para que o tivessem, seria preciso muito mais apoio internacional do que aquele com que poderão contar.
Em todo caso, o julgamento é um começo. Antes punir somente alguns culpados do que premiar a todos. Qualquer passo, mesmo modesto, que se dê no sentido de estabelecer a equiparação legal de todos os crimes de genocídio serve para aproximar a humanidade da cura da esquizofrenia moral que a acometeu desde que, com a aliança entre Roosevelt e Stalin, socialistas e comunistas adquiriram o direito de ser nazistas com boa consciência.
Recentemente, na Romênia, o ex-ministro das Relações Exteriores, o filósofo e meu querido amigo Andrei Pleshu, descobriu um fato que o atirou ao fundo da maior depressão: o mais respeitado líder democrático do país e ex-grão-mestre da Maçonaria, o senador Dan Lazarescu, tinha sido, em segredo, colaborador da polícia secreta comunista; seus relatórios haviam enviado à prisão não somente vários de seus companheiros maçons (a Maçonaria romena era inimiga declarada do regime), mas também diversos membros de outras facções dissidentes.
Cortando na própria carne — pois Lazarescu era pessoa de sua estima e admiração — Pleshu divulgou a descoberta. Lazarescu foi expulso do Senado e da Maçonaria, aos oitenta e tantos anos. A Romênia estava mortalmente triste mas muito mais saudável. Há muitos outros parceiros do ditador Ceaucescu espalhados na alta sociedade romena. Mas o desmascaramento de um só dentre eles ajuda, pelo menos, a impedir que a força do esquecimento transforme, por decurso de prazo, a injustiça em justiça.