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O inimigo é um só

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 8 de janeiro de 2007

O marxismo não começou com Marx e não nasceu de nenhum estudo científico da economia. Tudo o que Karl Marx viria a pensar e dizer – com exceção do pretexto materialista-dialético e das estatísticas que ele falsificou dos célebres Blue Books do parlamento britânico – já estava nas doutrinas dos heresiarcas messiânicos desde o século XIV. Tudo: a luta de classes, a revolução, a socialização dos meios de produção, a ditadura do proletariado, a missão da vanguarda revolucionária. Até as idéias de Lênin e de Gramsci já estão ali claramente antecipadas.

John Knox, John Huss, Thomas Münzer e outros “profetas” das origens da modernidade não são apenas precursores do movimento revolucionário mundial: são seus criadores. As homenagens entre ambíguas e reticentes que lhes são prestadas de tempos em tempos por tal ou qual intelectual esquerdista só servem para inflar as contribuições da esquerda mais recente, diminuindo a daqueles pais fundadores mediante o artifício de jogá-los para trás numa série histórica supostamente ascendente em cujo topo se encontra sempre, é claro, o autor da homenagem.

A idéia central da revolução messiânica pode-se resumir em quatro pontos: (I) a humanidade pecadora não será salva por Nosso Senhor Jesus Cristo, mas por ela mesma; (II) o método para alcançar a redenção consiste em matar ou pelo menos subjugar todos os maus, isto é, os ricos; (III) os pobres são inocentes e puros, mas não entendem seu lugar no projeto da salvação e por isso têm de colocar-se sob as ordens de uma elite dirigente, os “santos”; (IV) o morticínio redentor gerará não somente a melhor distribuição das riquezas, mas a eliminação do mal e do pecado, o advento de uma nova humanidade.

Uma heresia não é “outra religião”: é, por definição, uma oposição interna, nascida de dentro do próprio cristianismo, em geral mediante algum enxerto exótico que distorce completamente a mensagem originária e lhe dá os sentidos mais estapafúrdios que se pode imaginar. (1) Não é de estranhar, pois, que a evolução subseqüente do movimento revolucionário fosse marcada por uma permanente tensão entre a fé herética e a negação de toda fé, entre o pseudocristianismo e o anticristianismo, entre a ambição de destruir o cristianismo e o desejo de conservar algo dele para poder parasitar a sua autoridade. Esse jogo dialético confunde o observador leigo, que iludido pelas diferenças aparentes perde de vista a unidade profunda do movimento revolucionário e acaba não raro servindo a uma das suas subcorrentes acreditando piamente servir a um propósito contra-revolucionário, conservador ou até mesmo cristão ou judaico no sentido estrito dos termos.

Extinta a epidemia das revoluções messiânicas, a segunda onda do movimento revolucionário assume a forma do anticristianismo e antijudaísmo explícitos. Os iluministas do século XVIII não só pregaram abertamente a eliminação dessas duas fés tradicionais, mas não hesitaram em inventar contra elas as mentiras mais aberrantes, achando isso lindo e divertindo-se a valer. As polêmicas anticristãs de hoje em dia parecem até primores de polidez quando comparadas à virulência da invencionice setecentista (2). Cada vez mais parece confirmar-se a tese do abade Antonin Barruel, exposta na sua Histoire du Jacobinisme (1798) , de um plano urdido entre Voltaire, d”Alembert, Diderot e o imperador Frederico II da Prússia para uma vasta campanha de difamação destinada a cobrir a Igreja de infâmia por todos os meios inescrupulosos disponíveis.

O caso de Diderot é particularmente ilustrativo. Em A Religiosa ele conta a história de uma pobre moça mantida num convento contra a vontade. A imagem abominável das freirinhas prisioneiras, posta em circulação por ele e por outros iluministas muito antes da publicação póstuma do livro em 1796, tornou-se um símbolo condensado de todos os crimes que o furor da propaganda anticristã atribuía à Igreja. Na voragem da Revolução de 1789, o símbolo transfigurou-se em crença literal. Muitos dos revolucionários que invadiam conventos, matando monges e freiras a granel, juravam piamente estar fazendo isso para libertar as virgens encarceradas que, segundo imaginavam, deviam superlotar os porões dos claustros. Quando oitenta abadias, monastérios e casas de religiosas de Paris já tinham sido invadidos e muito sangue derramado, a Assembléia Constituinte, perplexa, recebeu a notícia de que por toda parte as freiras e noviças tinham sido unânimes em proclamar a fidelidade ao seu estado, mesmo quando já iam subindo a escada da guilhotina. Tal era o espírito das “prisioneiras”.

Diderot, embora morresse cinco anos antes da Revolução, não pode no entanto ser facilmente desculpado pelos efeitos criminosos de um ódio que ele instigou conscientemente. Não o pode, sobretudo, porque ele sempre esteve informado de que não havia e não podia haver nenhuma prisioneira nos conventos, de que todas as freiras estavam ali por vontade própria, inclusive aquela em que ele se inspirou para escrever o romance, a irmã Delamarre, do convento de Longchamps. Foi tudo uma falsificação premeditada.

Durante muito tempo, o mundo inteiro acreditou na versão de Diderot, que afirmava ter em seu poder a documentação completa do caso Delamarre. De fato, o dossiê estava nas mãos dele, mas desapareceu logo depois de publicado o romance. Reencontrado em 1954 pelo pesquisador George May, sua leitura mostra que Diderot estava ciente dos seguintes fatos:

1) Em Paris havia quatro tribunais, eclesiásticos e civis, para julgar solicitações de dispensa da carreira monástica, e a regra geral era atender a todos os pedidos.

2) A seleção das monjas era rigorosíssima. O empenho da Igreja era livrar-se das falsas vocações, e não retê-las à força.

3) Exatamente ao contrário de uma prisioneira do convento, a irmã Delamarre era a porteira, tinha as chaves e podia entrar e sair quando quisesse.

4) O único processo aberto pela srta. Delamarre era uma pendência de espólio com uma parente. Para receber a herança, um título nobiliárquico, a freira tinha de deixar a ordem religiosa. Mas logo depois, tendo desistido de disputar o legado, ela voltou alegremente ao convento.

Diderot sabia de tudo isso, e a correspondência entre ele e seu amigo Jacob Grimm mostra que o romancista “estourava de rir” (sic), com a falsificação meticulosa que ia armando em torno da história. Divertia-se não só com a alegria feroz de caluniar, mas chegava ao requinte de uma crueldade mental muito mais direta. Ao marquês de Croismarre, cristão piedoso que entre lágrimas lhe escrevia preocupado com a sorte da moça, Diderot respondia com invencionices inquietantes, enfatizando os sofrimentos da infeliz no claustro e degustando até o fim o prazer de manter angustiado o pobre homem. Não espanta que Diderot fosse o escritor predileto de Karl Marx, outro sociopata sádico.

Outros documentos encontrados por Georges May, posteriores ao falecimento de Diderot, mostram que a irmã Delamarre morreu trinta anos depois do romancista, ainda como porteira do convento, após ter enfrentado bravamente, ao lado de suas irmãs, os comissários da Revolução. A única opressão que ela sofrera viera pelas mãos dos inimigos da Igreja. (3)

Se eu fosse enumerar e analisar todas as mentiras inventadas pelos iluministas contra os cristãos e os judeus, um ano inteiro de edições do Diário do Comércio não bastaria para comportá-las. Mas o fato é que essas mentiras atravessaram os séculos, impregnaram-se profundamente na imaginação popular, ressurgindo sob novas e variadas formas e servindo para legitimar o massacre dos cristãos na Rússia e dos judeus na Alemanha. Intelectuais e artistas de grande prestígio não hesitam em colaborar com esse crime hediondo. Tudo sobre o caso Delamarre já era arquiconhecido dos historiadores quando, em 1970, o filme de Jean-Luc Godard, La Religieuse, renovou o efeito do símbolo odioso inventado por Diderot.

Mas – voltando ao argumento central –, o advento dos jacobinos ao poder ocasionou a mudança de pólo da tensão dialética: da propaganda anticristã passou-se ao esforço aberto de criar um simulacro de cristianismo para consumo das multidões revolucionárias. A retórica do Terror imita de perto a dos pseudoprofetas messiânicos: a idéia do apocalipse terreno, a condenação radical do capitalismo, a purificação do universo pela matança dos ricos, a missão privilegiada dos “santos”, o retorno da humanidade a uma era de pureza originária – tudo aí ressurge, mas agora com o Contrato Social de Rousseau como texto sagrado em vez dos Evangelhos. Cada vez mais a imitação caricatural do ethos cristão adquire autonomia, desligando-se do sentido patente da mensagem de Cristo e parasitando sentimentos morais profundamente arraigados na população cristã para torná-los instrumentos de legitimação do terrorismo estatal, sob a inspiração – como escreveu Thomas Carlyle – “do quinto e novo evangelista, Jean Jacques, conclamando todos e cada um a que emendassem a existência pervertida do mundo”.

Luciano Pellicani, no seu estudo sobre Revolutionary Apocalypse. The Ideological Roots of Terrorism (London, Praeger, 2006), que pretendo comentar em detalhe numa das próximas colunas, observa: “Assim a elite revolucionária, agindo na base do diagnóstico-terapia dos males do mundo contido na ‘verdadeira filosofia’, vem a assumir o papel típico do Paracleto na tradição gnóstica: só ele sabe o que é bom para a cidade.” Fundada nessa autoridade onissapiente, a salvação tem de assumir a forma do morticínio redentor. Robespierre deixa isso bem claro: “O governo popular… é ao mesmo tempo Virtude e Terror. O Terror nada mais é que a justiça severa e inflexível. É portanto uma emanação da Virtude.” Pellicani conclui: “Esse conceito da redenção da humanidade exige uma sociedade organizada como se fosse um convento militarizado.” A fórmula ressurgirá nos padres-guerrilheiros da teologia da libertação e nos projetos mais recentes do “arcebispo” Hugo Chávez.

Mas, muito antes disso, o pêndulo da revolução oscilará uma vez mais para o outro lado. Findo o ciclo jacobino, com o advento do império napoleônico, da Restauração e da democracia burguesa, as novas fórmulas da ideologia revolucionária, com Marx e Bakunin, fazem um upgrade do anticristianismo, transfigurando-o em ateísmo militante. Karl Marx professa “odiar todos os deuses” e define o ateísmo como “a negação de Deus, por meio da qual se afirma a existência do homem”. Deus, para o marxismo, inspirado nesse ponto em Feuerbach, surge da auto-alienação dos poderes do homem projetados num céu metafísico – como se o homem tivesse criado o céu e a terra e depois se esquecido disso, transferindo as honras para uma entidade inexistente: teoria suficientemente idiota para parecer sedutora a milhões de intelectuais.

Com a ascensão do ateísmo, multiplicam-se as matanças de padres e crentes em medida jamais sonhada pelo próprio Robespíerre. Entre a guerra civil mexicana (1857) e o início da II Guerra Mundial (1939), não menos de vinte milhões de cristãos morreram em perseguições religiosas destinadas, segundo Lênin, a “varrer o cristianismo da face da terra”. E o massacre dos judeus nem havia começado ainda.

Mas talvez o ateísmo não seja o traço mais autêntico dessa etapa do movimento revolucionário. Tanto Marx quanto Bakunin tomaram parte, reconhecidamente, em rituais satânicos (leiam Richard Wurmbrand, Marx and Satan, Living Sacrifice Book Company, 1986, jamais contestado). E pelo menos na Itália a apologia de Satanás tornou-se explícita com o poeta Giosue Carducci, um dos maiores inspiradores do movimento revolucionário local:

Salute, o Satana

O ribellione

O forza vindice

De la ragione! (4)

Qualquer que seja o caso, o impacto das matanças acabou por incomodar os próprios revolucionários, que, nos anos 30, já estavam pensando em algum meio de contorná-la. Antonio Gramsci, nos “Cadernos do Cárcere”, ensina que a Igreja não deve ser combatida, mas esvaziada de seu conteúdo espiritual e usada como caixa de ressonância da propaganda comunista. O sucesso obtido posteriormente nesse empreendimento pode-se medir por dois fatos:

1) A influência avassaladora que os comunistas conseguiram exercer desde dentro e desde fora sobre o Concílio Vaticano II, dividindo a Igreja Católica e ocasionando a maior evasão de fiéis em dois milênios de catolicismo. (5)

2) O Conselho Mundial das Igrejas, a maior organização protestante do mundo, que congrega centenas de igrejas em todos os países, nominalmente para objetivos “ecumênicos”, é notoriamente uma entidade pró-comunista, que apóia e subsidia movimentos revolucionários terroristas. (6) Os vários Conselhos Nacionais das Igrejas são entidades independentes, mas pelo menos o dos EUA é ainda mais abertamente pró-comunista do que o Mundial. (7)

Paralelamente e em estreita associação informal com os esforços comunistas, veio-se desenvolvendo, desde os fins do século XIX, um movimento mundial destinado a criar a maior confusão religiosa possível através da propaganda ocultista em massa e da revivescência forçada do gnosticismo. Fenômenos como o surto de orientalismo pseudomístico da Nova Era, o culto das drogas como “via de iluminação interior”, a onda de experimentos psíquicos perigosos que partiu de Esalem (CA) e se espalhou pelo mundo, a proliferação de seitas empenhadas em escravizar seus discípulos através de práticas mentais destrutivas, podem ser apresentados ao público como uma convergência espontânea de tendências ou como uma fatalidade histórica impessoal ditada pelo “espírito do tempo”, mas basta pesquisar um pouco as fontes para descobrir que se trata de uma iniciativa unitária, organizada e bilionariamente financiada pelas mesmas forças auto-incumbidas de transformar a ONU em governo mundial até no máximo o fim da próxima década. (8)

A oscilação dialética e pendular do movimento revolucionário entre a anti-religião e a pseudo-religião, somada à multiplicidade alucinante das correntes que o alimentam, desorienta a quase totalidade do público. A ânsia de tomar posição, infindavelmente alimentada pela mídia e pelo sistema escolar, leva muita gente a apoiar movimentos e idéias cuja ligação com a corrente central não parece evidente à primeira vista. Quantos cristãos conservadores, querendo salvar a Igreja, não aderiram a idéias antijudaicas, por imaginar que a revolução era essencialmente obra de judeus? Quantos intelectuais judeus não se filiaram a partidos revolucionários, sem notar que com isso cavavam a sepultura do seu povo? Quantos protestantes, confundindo o catolicismo com a sua contrafação revolucionária, não acham que o melhor que têm a fazer é destruir a Igreja Católica? Quantos católicos, embriagados de pureza doutrinal não vêem o americanismo como um inimigo, movendo portanto guerra contra a única nação que criou uma síntese funcional de cultura cristã, economia próspera e democracia política? Quantos adeptos da democracia capitalista não se inspiram em idéias iluministas por lhes parecerem equilibradas e racionais, sem saber que, pelo seu conceito redutivista da razão, elas contêm em seu bojo a semente do irracionalismo revolucionário romântico, e sobretudo sem notar que o iluminismo, com toda a sua aparência elegante e educadinha, criou a primeira campanha de difamação anticristã organizada, pondo em circulação mentiras escabrosas que até hoje milhões de idiotas repetem como papagaios em todo o mundo? Quantos defensores das posições liberais em economia não acreditam poder conciliá-las com um ateísmo militante que, corroendo os fundamentos espirituais e morais do capitalismo, o convidam a transformar-se precisamente na “idolatria do mercado” que a propaganda comunista o acusa de ser, e assim ajudam a transferir aos revolucionários, bem como aos radicais islâmicos, o monopólio da autoridade moral? Escolhendo o inimigo conforme as feições mais salientes que se oponham às suas preferências subjetivas, todas essas pessoas não fazem senão botar lenha na fogueira da tensão dialética da qual o movimento revolucionário mundial se alimenta e se fortalece. Na verdade o inimigo é um só. Não se pode combatê-lo eficazmente sem apreender sua unidade por trás da variedade alucinante das suas versões, encarnações e aparências. Algumas décadas atrás, essa unidade era difícil de enxergar, pois não havia documentação suficiente para prová-la. Hoje suas provas são tão abundantes, que continuar a ignorá-la começa a se tornar uma espécie de cumplicidade criminosa. (9)

NOTAS

(1) O amor apaixonado que muitos intelectuais de hoje em dia têm por essas aberrações revela não somente seu ódio ao cristianismo, seu desejo de exterminá-lo por todos os meios possíveis, mas uma falta de inteligência que raia o monstruoso. Bart D. Ehrman, o badalado autor de The Lost Gospel of Judas Iscariot. A New Look at Betrayer and Betrayed (Oxford University Press, 2006), por exemplo, não é senão um fanático gnóstico travestido de erudito universitário, apto a realizar pesquisas filológicas em várias línguas antigas mas incapaz de atinar com as contradições mais pueris do seu próprio texto. Para esse tipo de estudioso, empenhado em impugnar os evangelhos originais com base em textos gnósticos escritos dois séculos depois deles, estão sempre abertas as cátedras universitárias, a NBC, o History Channel, o National Geographic e a mídia chique inteira, pela simples razão de que essas instituições são financiadas e dirigidas pelo mesmo núcleo de bilionários empenhados em fabricar uma religião biônica para substituir o cristianismo no terceiro milênio (v. nota 8).

(2) Vejam, sobre isso, Paul Hazard, La Pensée Européenne au XVIIIe. Siècle (Paris, Boivin, 1946), um clássico da história das idéias.

(3) Sobre o episódio, leiam Jean Dumont, La Révolution Française ou Les Prodiges du Sacrilège, Paris, Criterion, 1984.

(4) “Salve, ó Satanás, ó rebelião, ó força vingadora da Razão!” Da ode “A Satana”, que os conhecedores do italiano podem ler em http://digilander.libero.it/interactivearchive/carducci_satana.htm.

(5) V. Ricardo de la Cierva, Las Puertas del Infierno. La Historia de la Iglesia Jamás Contada, Madridejos (Toledo), Fénix, 1995, e La Hoz y la Cruz. Auge y Caída del Marxismo y la Teología de la Liberación, id., ibid., 1996.

(6) V. Bernard Smith, The Fraudulent Gospel. Politics and the World Council of Churches, London, The Foreign Affairs Publishing Co., 1977.

(7) Confira em C. Gregg Singer, Unholy Alliance. The Definitive History of the National Council of Churches and Its Leftist Policies – From 1908 to the Present, em http://www.freebooks.com/docs/39be_47e.htm.

(8) V. extensa documentação sobre isto em Lee Penn, False Dawn. The United Religions Initiative, Globalism and the Quest for a One-World Religion, Hillsdale, NY, Sophia Perennis, 2004.

(9) A questão do lugar ocupado pelo islamismo no processo aqui descrito requer um exame em separado, que será feito num dos próximos artigos.

Ouça o programa de Olavo de Carvalho, True Outspeak, hoje às 20h00 (hora de Brasília) em http://www.blogtalkradio.com/olavo .

A volta do doutor Segadas

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 4 de janeiro de 2007

No Brasil, o sujeito possuir uma erudição superior é considerado uma aberração, uma falha de caráter, uma doença. Cada um tem de ler apenas o pouco que seus colegas leram, nem uma linha a mais. Se passar disso, ofende e humilha a corporação, sendo automaticamente condenado por delito de “pedantismo”.

Para redimir-se, deve provar genuflexa humildade ante seus detratores, retribuindo a difamação com favores servis como Otto Maria Carpeaux retribuiu aos comunistas. Pode também compensar a indecente pletora de conhecimentos com demonstrações de modéstia populista, escrevendo sobre samba, futebol, comida ou sexo, para mostrar que erudito também é gente. Mas isso nem sempre funciona. José Guilherme Merquior jamais foi perdoado, pois não fez uma coisa nem a outra. Gilberto Freyre tentou a segunda, mas já era tarde: nenhum populismo, estético ou lúdico, poderia jamais absolver o pecado mortal da adesão ao movimento de 1964.

Qualquer que seja o caso, o excesso de leituras pode ser perdoado em vida, mas sempre restará uma nódoa póstuma. Comentando o segundo volume dos Ensaios Reunidos de Carpeaux (Topbooks), muitos resenhistas se mostram irritados com a erudição do genial ensaísta e historiador literário, só a desculpando quando encontram, com mal disfarçado alívio, algum defeito que a seus olhos o reduza a dimensões mais humanas. De passagem, observo: neste país é proibido escrever sobre os grandes homens com respeito genuíno e admiração humilde. Um ar de superioridade, pelo menos de intimidade desrespeitosa, é absolutamente necessário à boa auto-imagem do crítico, bem como à sua reputação.

Curiosamente, a erudição em detalhes irrelevantes de ordem folclórica, histórica ou filológica, não ofende a ninguém. É até um mérito. O que o sujeito não pode é mostrar um conhecimento extensivo das obras maiores, um obsceno domínio dos problemas essenciais em várias áreas do pensamento ou das ciências. Em qualquer discussão pública, a familiaridade com o status quaestionis é não somente desnecessária como inconveniente. Um bom sujeito consente em ignorar tudo o que seus colegas de universidade e mídia ignoram, de modo a não pegá-los jamais de surpresa. Se você diz algo que eles não sabem, isto prova que você é um ignorante, um amador enxerido. Ou então é um louco que anda vendo coisas.

Porém o mais grave de tudo, o absolutamente intolerável, é ser erudito sem o correspondente diploma. A recíproca não é verdadeira. Diploma sem conhecimento é normal e decente. Você pode até escrever Getúlio com LH e continuar chefe de departamento universitário. O que não pode é estudar muito sem ser bacharel ou doutor. Isso expõe você ao desprezo das pessoas de bem, como o doutor Segadas do Triste Fim de Policarpo Quaresma, indignado ao ver as estantes do vizinho carregadas de livros: “Se não era formado, para que? Pedantismo!” O romance de Lima Barreto saiu em 1916. Por volta dos anos 50, o Brasil parecia ter mudado. Meio século depois, milhares de Segadas estão de volta a seus postos, mais empombados do que nunca. É o pogréfo, como diria o sr. presidente.

O que vem por aí

Olavo de Carvalho


Digesto Econômico, janeiro/fevereiro de 2007

O Brasil que emergiu das últimas eleições pode ser resumido num conjunto de dilemas insolúveis que o novo governo, aliás velho, terá de empurrar com a barriga por mais quatro anos a não ser na hipótese remota de que um surto de genialidade se aposse dele e lhe inspire soluções.

O primeiro é o dilema geral do esquerdismo hoje em dia. Esvaziada de suas antigas propostas socio-econômicas, que nem seus líderes mais inflamados ousam ainda defender na versão originária, a esquerda mundial sobreviveu à queda da URSS e até se fortaleceu na base do puro ódio cultural (anti-ocidental, antijudaico, anticristão) e do anti-americanismo nu e cru. Esses dois item mesclam-se confusamente no slogan da “guerra contra o Império”. Mas, como reconheceu o próprio teórico esquerdista maior, Antonio Negri, o Império já não é americano. É supranacional. Os pilares em que se assenta são as megacorporações e os organismos internacionais de controle (ONU, OMC, Unesco, OMS etc.) com sua rede de ONGs espalhadas pelo mundo, subsidiadas por aquelas mesmas corporações. Esse macro-sistema de poder não somente não se identifica com a soberania nacional americana mas luta abertamente para dissolvê-la e absorvê-la numa espécie de governo mundial. É a teoria Garrison-Gorbachev do “império transitório” a ser imolado no altar do “império definitivo”. Na medida em que, por tradição ou automatismo, o movimento esquerdista nacional se volta contra os EUA, ele serve ao governo mundial em formação: a luta contra o “império transitório” se torna serviço prestado à construção do “império definitivo”. O fato aparentemente paradoxal de que praticamente toda a esquerda mundial seja subsidiada pelas grandes fundações bilionárias integradas no projeto do governo mundial encontra aí sua explicação. Os obstáculos mais sérios à consecução desse projeto são as soberanias nacionais dos EUA e de Israel. Um “anti-imperialismo” voltado contra esses dois pólos é tudo o que o Império precisa para consolidar-se às custas de milhões de idiotas úteis que imaginam combatê-lo.

De outro lado, a luta cultural anti-ocidental, incentivada e subsidiada pelos próprios condutores do processo de globalização imperial, não tem resultado em fortalecer o Estado leigo (supostamente destinado a constituir o modelo do Estado mundial), mas em debilitá-lo em proveito da invasão islâmica. Quanto mais as sociedades ocidentais se afastam dos princípios da civilização judaico-cristã, mais se tornam incapazes de defender sua identidade contra o assédio da “alteridade” islâmica. Não só as nações se enfraquecem, mas o próprio Estado mundial, erguendo-se sobre os escombros das identidades nacionais e tradições religiosas, já nasce desprovido de princípios e valores capazes de resistir à maré montante do Islam globalizado.

O dilema da esquerda mundial, que nem seus próceres mais destacados parecem ter enxergado claramente até o dia de hoje, consiste em que todos os seus esforços anti-americanos e anti-ocidentais refluem em benefício do projeto imperial global e, a mais longo prazo, da ascensão islâmica, que traz em seu bojo valores simetricamente opostos àqueles representados pela rebelião cultural esquerdista.

Nosso governo, sendo nada mais que um pseudópodo do movimento esquerdista internacional, vivencia esse dilema, aparentemente sem ter dele a menor consciência. Isto significa que, faça ele o que fizer, sua única função histórica terá sido a de servir a forças cujo alcance lhe escapa por completo. Um papel especialmente cômico, nessa farsa inconsciente, parece estar reservada aos “nacionalistas” das Forças Armadas, que, ansiosos para integrar-se na “guerra do povo inteiro” contra o fantasma do imperialismo americano, se tornarão cada vez mais idiotas úteis a serviço do “império definitivo”, a não ser na hipótese quase impensável de que parem de se auto-hipnotizar com slogans patrióticos deslocados da situação real, comecem a prestar atenção nas minhas análises e adquiram ao menos um vislumbre de qual é a guerra e qual é o inimigo.

O segundo dilema insolúvel que define a posição do nosso governo na ordem da realidade é o drama da violência nacional crescente que não pode de maneira alguma ser reprimida sem trazer danos a um dos mais queridos parceiros ideológicos do governo, a narcoguerrilha colombiana. Mas, se conseguimos sobreviver enquanto a taxa de homicídios no território nacional crescia para cinqüenta mil por ano, por que não poderemos, intoxicados de desconversas e evasivas, suportar mais cem mil ou duzentos mil? O brasileiro, afinal, parece ser mesmo o povo mais facilmente governável do universo.

O terceiro dilema é o das relações com os EUA. Esticando ao máximo a relativa independência de política econômica e poder político, o governo tem conseguido, até agora, conciliar as exigências do capitalismo internacional com as do comunismo continental. O primeiro sinal de que essa coincidentia oppositorum começa a fazer água veio na recusa oficial, polida mas firme, de realizar a mais linda esperança da diplomacia Bush, a de que o Brasil consentisse em servir de freio às ambições continentais de Hugo Chávez. Da minha parte, sempre disse e escrevi que isso era esperança utópica, que os compromissos de Lula com o Foro de São Paulo (e portanto com Hugo Chávez) eram mais profundos e sólidos do que a CIA podia ter soprado aos ouvidos do presidente Bush. O fracasso da missão Gonzales no Brasil, por mais disfarçada que esteja por trás de sorrisos e desconversas, foi um teste de realidade das idéias de George W. Bush sobre a América Latina, e elas não passaram no teste. Mas, se isso cria um problema para os EUA, cria outro maior para o governo brasileiro, cuja carapaça de hipocrisia acaba de ser furada a olhos vistos, embora os assessores de Bush façam de conta que não perceberam nada. Nossa melhor esperança de manter boas relações com os EUA reside em fazer alguma macumba para que o presidente Bush consinta em ingerir novas doses de anestésico diplomático e, redobrando sua imunidade aos fatos, continue sonhando que o Brasil é seu grande aliado contra Chávez. A sorte do Brasil, nesse ponto, depende de saber até onde Lula poderá continuar realizando prodígios de elasticidade entre o compromisso socialista e o compromisso capitalista.

Dilemas insolúveis são horríveis para quem os padece, mas, para o observador que deseja compreender a situação, são preciosos. Num jogo de xadrez, como é que você faz para saber qual o próximo lance de um jogador? Você começa por analisar onde é que as peças dele estão travadas pela posição das peças do adversário, isto é, você exclui as jogadas impossíveis. Em política é a mesma coisa. Exclua as jogadas impossíveis e saberá quais as possibilidades que restam. Mas há uma diferença: o enxadrista nunca estraga de propósito o próprio jogo. Os políticos, quando se vêem travados por todos os lados, às vezes não hesitam em arriscar as jogadas impossíveis, ou porque não sabem que são impossíveis, ou porque o suicídio nacional lhes parece o caminho da salvação. Se o presidente Lula ainda for sensato o bastante para evitar essa hipótese, tudo o que lhe restará serão quatro anos de desconversa, recheados de “programas sociais”, leis inócuas e muita propaganda. Ele terá falhado àquilo que considera sua “missão histórica”, mas, afinal, ele já não parece ligar muito para isso. A outra hipótese, a de uma iluminação súbita que lhe inspire soluções geniais e imprevistas para os quatro dilemas apontados, me parece bastante remota.

Se os liberais e conservadores não tivessem cuidado apenas de emascular-se ideologicamente e de reduzir-se ao estatuto de auxiliares da esquerda light, este seria o seu grande momento. Na luta contra um adversário preso numa rede de impossibilidades, eles teriam todas as chances. Mas para aproveitá-las precisariam antes tratar de existir como força ideológica definida, e isto eles parecem não querer de maneira alguma.

Quando olho para trás e vejo que desde 1993 tenho acertado em todas as minhas previsões políticas, quando nenhum outro analista nacional pode se gabar de feito idêntico, e por outro lado observo a relutância suspeitosa que tantos líderes da nossa “direita” opõem em seguir os meus conselhos, a única conclusão que posso tirar disso é que o seu futuro, como coletividade, não me parece muito brilhante. Resta apostar nas exceções individuais.

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