Yearly archive for 2007

Apagando o passado

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 8 de fevereiro de 2007

“Cometeríamos a pior das infidelidades à memória de nossos mortos se consentíssemos em pagar, pelas boas relações com os militares de hoje, o preço do esquecimento dos crimes cometidos pela ditadura”, adverte o ideólogo comunista João Carlos Kfouri Quartim de Moraes.

A recíproca não é verdadeira. Para tornar-se queridinhos da revolução bolivariana, o general Andrade Nery, o brigadeiro Ferolla e outros oficiais inflados de ódio anti-americano consentem em jamais estragar a festa com menções constrangedoras às vítimas do terrorismo. Nos conclaves esquerdistas de que participam, nas publicações comunistas em que brilham, eles se derramam em sorrisos e afagos ao esquema revolucionário continental, o mesmo que ainda ontem se esmerava em matar soldados brasileiros. E nem uma recordação amarga brota do fundo de suas almas.

A soberba inflexibilidade de Quartim de Moraes não me surpreende. Ele está especialmente qualificado para humilhar seus velhos inimigos, de vez que ele próprio matou um deles. Mandante do assassinato do capitão americano Charles Chandler — alvo escolhido a esmo como símbolo do execrado “imperialismo ianque” –, o orgulhoso professor da Unicamp sabe que, na falta de realizações intelectuais, o homicídio político é uma glória curricular mais que suficiente pelos atuais critérios do establishment universitário brasileiro, os mesmos que o embaixador Roberto Abdenur denuncia como vigentes no Itamaraty.

Mas Quartim não é um caso singular. Nada mais característico dos apóstolos da igualdade do que a desigual distribuição da dignidade humana: para os “seus” mortos, honra e glória; para os do outro lado, esquecimento e desprezo, quando não o tapa na cara, o insulto dos miseráveis trezentos reais mensais oferecidos pelo governo à família do sargento Mário Kozel Filho depois de trinta anos de espera e humilhações.

Para os comunistas, essa desigualdade é natural, justa e de direito divino. Os cem milhões de vítimas do comunismo são um detalhe irrisório no majestoso percurso da História. Os trezentos terroristas mortos pela ditadura brasileira são monumentos imperecíveis na memória dos tempos. Norman Cohn já assinalava, entre os traços inconfundíveis da mentalidade revolucionária, a autobeatificação delirante que redime e embeleza a priori todos os seus crimes enquanto torna os do outro lado eternamente imperdoáveis.

A mídia chique ajuda a consolidar a diferença, alardeando os pecados da ditadura e apagando do registro histórico os crimes dos terroristas, isto quando não os debita também na conta das vítimas, a título de reações compreensíveis e até meritórias do idealismo juvenil a uma situação desagradável.

A novidade é a afoiteza obscena com que certos militares brasileiros, em nome das boas relações com os assassinos de seus colegas de farda, se curvam docilmente a essa dupla moral, calando o que deveriam berrar desde cima dos telhados.

***

PS – Errei ao dizer que ninguém na imprensa brasileira escreveu sobre o livro do rabino David C. Dalin. Hugo Estenssoro publicou uma excelente resenha na falecida Primeira Leitura.

O destino dos homens de farda

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 6 de fevereiro de 2007

Os militares que, segundo expliquei no meu artigo de segunda-feira, esperam livrar as Forças Armadas da máquina de difamação esquerdista fazendo delas colaboradoras voluntárias e servis do movimento revolucionário chavista, podem tirar o cavalo da chuva. Um dos mais respeitados luminares do esquerdismo nacional, João Quartim de Moraes, já avisou em entrevista ao site www.vermelho.org que “perante a memória histórica do povo brasileiro, cometeríamos a pior das infidelidades à memória de nossos mortos se consentíssemos em pagar, pelas boas relações com os militares de hoje, o preço do esquecimento dos crimes cometidos pela ditadura”. A mensagem é clara: puxem o saco vermelho o quanto queiram, os homens de farda continuarão sendo chamados de torturadores fascistas, servos do imperialismo e filhotes da ditadura, ou pelo menos serão obrigados, para demonstrar fidelidade a seus novos patrões, a designar por esses nomes os seus colegas de farda que não se mirarem nos exemplos edificantes do coronel Andrade Nery e do brigadeiro Ferolla, talvez os primeirões na fila à espera de uma oportunidade de servir sob o comando do general Hugo Chávez na grande guerra patriótica contra o imperialismo ianque.

Quartim, professor da Unicamp, é o pai espiritual e fundador do tal “Núcleo de Estudos Marxistas”, ao qual não se pode negar o mérito de ter elevado essa universidade ao nível acadêmico de uma escolinha do MST. Na ocasião em que se inventou essa geringonça, desafiei a reitoria da Unicamp a abrir, ao lado dela, um “Núcleo de Estudos Antimarxistas”, provando as intenções altamente científicas e supra-ideológicas que a instituição alegava, e que teria ademais a vantagem de poder estudar os maiores pensadores do século XX – Edmund Husserl, Karl Jaspers, Max Scheler, Xavier Zubiri, Ludwig von Mises, Eric Voegelin, Bernard Lonergan, Leszek Kolakowski e outros – em vez de ter de cingir-se a microcéfalos como Poulantzas, Régis Débray, Caio Prado Júnior, Che Guevara, Nelson Werneck Sodré, Istvan Meszaros e outros a quem os comunistas, por fidelidade partidária, consideram o nec plus ultra da inteligência humana, mesmo porque jamais estudaram nada além desses autores (mentira: na USP e talvez até na própria Unicamp os carinhas sãoo cultos que até leram na íntegra as vinte páginas de “A política como vocaçãode Max Weber, citando-as regularmente em solenidades acadêmicas, discursos presidenciais e festinhas de aniversário). A Unicamp, na época, tratou a minha sugestão com o maior desprezo, mostrando que não aceita provocações direitistas nem muito menos quer discussões de espécie alguma, exceto entre pessoas de comprovada filiação marxista. Não pude deixar de cumprimentá-la por essa demonstração de pureza ideológica, que confere a seus professores a honra insigne de continuar parecendo cultíssimos na ausência de qualquer desafio intelectual mais ameaçador.

O prof. Quartim, por exemplo, é bastante espertinho, o que constitui nos círculos marxistas o equivalente superior da inteligência humana. Ao afirmar que, “nos países sul-americanos submetidos ao terrorismo de Estado, só no Brasil os torturadores não somente permanecem totalmente impunes, mas também continuam a receber elogios”, ele teve o cuidado de se referir somente à América do Sul e não à America Latina em geral, o que o colocaria na dolorosa contingência de ter de abrir exceção para Cuba, recordista continental absoluta de torturadores e terroristas de Estado per capita, todos eles – exceto os falecidos — ainda em seus postos e carregados de honrarias.

O prof. Quartim é um exemplo da idoneidade intelectual das elites mandantes comunistas sob cujas ordens e cusparadas alguns dos nossos militares estão ansiosos para servir.

 

A apoteose da burrice nacional

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 5 de fevereiro de 2007

Estão internacionalizando a Amazônia. Não dá para entender como um processo desses ocorre no governo do PT”, exclama o senador Pedro Simon, diante do projeto governamental que permite à União conceder à iniciativa privada a administração e exploração econômica das florestas nacionais. Ora, se o senador lesse os meus artigos ou assistisse às minhas conferências, não estaria tão surpreso diante do óbvio. Desde pelo menos dez anos antes da eleição do sr. Luís Inácio para a Presidência da República eu advertia: “Se vocês querem saber o que é entreguismo, esperem o PT chegar ao poder.”

Por que eu dizia isso? Dizia-o pelo mesmo motivo que me levou a publicar, no Jornal do Brasil do dia 1º., a seguinte notinha:

Elogiado em San Salvador pela sua fidelidade inflexível ao movimento comunista, homenageado na mesma semana em Davos pela sua conversão ao capitalismo, o presidente Luís Inácio Lula da Silva parece ser o maior enigma ideológico de todos os tempos. Porém ainda mais admirável é a recusa geral da mídia em notar o paradoxo e pedir explicações ao personagem. O cérebro nacional tornou-se tão lerdo e apático que já aceita sem reagir as informações mais desencontradas, a tudo aquiescendo com indiferença bovina e uma reconfortante sensação de normalidade.

A solução do enigma Lula é, ao mesmo tempo, a resposta à perplexidade do senador Simon. Tudo isso seria claro como um diamante, se não estivéssemos num país onde não entender nada é um dever patriótico. Já expliquei mil vezes, mas vou começar tudo de novo:

Enquanto os nacionalistas brasileiros, burros e intoxicados de esquerdismo, continuam bradando contra o bom e velho “imperialismo ianque” dos anos 40 e vendo nos conservadores americanos a encarnação máxima desse fantasma glutão inventado por Stálin, muita coisa sucedeu nos EUA que escapa totalmente ao seu acanhado horizonte de visão. A principal é que um grupo de milionários, senhores quase absolutos da grande mídia e do establishment universitário, embarcou com todas as suas armas e bagagens na aventura utópica do governo mundial destinado a transcender e suprimir a república norte-americana. Não, não se trata de nenhuma trama secreta. Está tudo publicado, explicado, oficializado. Revolucionários desse porte não apostam no seu próprio segredo, mas na estupidez das massas que não enxergam o que está diante do seu nariz.

Muitas vezes mencionei aqui a comissão parlamentar de inquérito (Reese), que já nos anos 50 havia provado o empenho de várias fundações bilionárias no sentido de minar a identidade nacional, a cultura e a capacidade de defesa da nação americana, de modo a criar um centro de poder transnacional independente, sustentado na tripla base da economia globalizada, dos organismos internacionais e do controle sobre a rede de movimentos subversivos e revolucionários espalhados pelo mundo. Desde então esse projeto deu passos enormes no sentido da sua realização.

Em 1994, no “Relatório sobre o Desenvolvimento Humano”, a ONU já declarava abertamente:

Os problemas da humanidade já não podem ser resolvidos pelos governos nacionais. O que é preciso é um Governo Mundial. A melhor maneira de realizá-lo é fortalecendo as Nações Unidas.” (V. mais explicações em http://www.olavodecarvalho.org/semana/040103globo.htm.)

No ano seguinte, a resolução aparecia sob a forma de um plano detalhado, “Our Global Neighborhood,” publicado pela Comissão de Governança Global, que pregava “a subordinação da soberania nacional ao transnacionalismo democrático”. As etapas necessárias para a consecução do objetivo incluíam: 1. Imposto mundial. 2. Exército mundial sob o comando do secretário-geral da ONU. 3. Legislações uniformes sobre direitos humanos, imigração, armas, drogas etc. (sendo previsível a proibição dos cigarros e a liberação das drogas pesadas). 4. Tribunal Penal Internacional, com jurisdição sobre os governos de todos os países. 5. Assembléia mundial, eleita por voto direto, passando por cima de todos os Estados Nacionais. 6. Código penal cultural, punindo as culturas nacionais que não se enquadrem na uniformidade planetária “politicamente correta”. (V. http://www.sovereignty.net/p/gov/gganalysis.htm e  http://www.olavodecarvalho.org/semana/030524globo.htm.)

O Tribunal Penal Internacional já é uma realidade desde 1998. O código penal cultural já estava informalmente em vigor antes dessa data (expliquei isso na palestra que fiz em 8 de julho de 1997 na Casa de América Latina, em Bucareste, Romênia, depois reproduzida em O Futuro do Pensamento Brasileiro, Rio, Faculdade da Cidade Editora, 1997; os intelectuais romenos entenderam imediatamente a importância do recado, que proliferou em convites para debates nas semanas seguintes; os brasileiros continuam imunes e sonsos.)  As legislações uniformes já são uma realidade patente, especialmente nos campos dos direitos humanos, saúde e educação – com resultados uniformemente desastrosos nas três áreas. Faltam o imposto mundial, a assembléia global e o exército único. Passos importantes na direção deste último vêm sendo dados diariamente, com a ajuda da grande mídia mundial, no sentido de negar o direito de defesa às nações atacadas (principalmente quando essas nações são os EUA e Israel) e de atribuir à ONU o monopólio da atividade guerreira legítima.

De acordo com Jim Garrison, presidente do State of the World Forum (que ele fundou em parceria com Mikhail Gorbachev) e talvez o principal teórico da transmutação globalista hoje em dia, a função dos EUA resume-se à de um “império transitório” destinado a dar à luz o governo mundial e dissolver-se nele, desaparecendo como unidade identificável (v. http://www.wie.org/j24/garrison.asp).

O projeto globalista abrange ainda uma reforma radical da mentalidade humana em escala planetária, mediante a imposição de novos critérios morais, como o casamento gay, o abortismo, o feminismo, a eutanásia, sempre de maneira rápida e inquestionada, reprimindo-se por meio do combate publicitário e judicial qualquer resistência possível. O objetivo final é a supressão da tradição religiosa judaico-cristã e sua substituição por uma religião biônica mundialista, com fortes tonalidades ocultistas e ecológicas. Graças à ação intensiva da ONU e da rede de ONGs associadas, essa parte do programa está em fase avançada de implementação. Só para dar um exemplo entre milhares: em inúmeras escolas públicas dos EUA e da Europa as crianças são obrigadas a participar de rituais consagrados à “Mãe Terra”, de inspiração nitidamente teosófica, ao passo que as orações cristãs em público são proibidas e o simples ato de carregar uma Bíblia é motivo de punição. A repressão legal ao cristianismo espalha-se rapidamente por todos os Estados americanos, enquanto as entidades religiosas tradicionais se vêem repentinamente privadas do acesso a verbas públicas concedidas generosamente a organizações gays, comunistas, islâmicas etc.

Garrison é cínico o bastante para proclamar que a liderança americana tem de ceder ante o projeto global porque, “para alcançar a grandeza, um império necessita de uma visão transcendental que possa unir os elementos dispersos num propósito abrangente. Ele tem de ser fundamentalmente construtivo e não destrutivo”.

Ora, uma coisa é um corpo de valores e princípios capaz de orientar a humanidade na direção de instituições políticas mais racionais e mais humanas. Outra coisa é um projeto de dominação abrangente. Quem quer que, no mundo, fale em liberdade, democracia, direitos humanos, garantias constitucionais, aprendeu isso com o exemplo vivo da nação americana e com ninguém mais. Esses valores, como já assinalava Alexis de Tocqueville, surgem da síntese tipicamente americana das exigências políticas do iluminismo inglês (muito diferente do iluminismo revolucionário da Europa continental) com as tradições cristãs trazidas ao Novo Mundo no bojo do Mayflower. Milhões de americanos morreram nos campos de batalha da Europa e da Ásia, não para escravizar e explorar os vencidos como o fizeram a Alemanha nazista e a URSS, mas para criar democracias independentes, pujantes, capazes de concorrer com a própria economia americana e de oferecer resistência aos EUA na arena da diplomacia mundial.

Em comparação, que valores e princípios nos oferece a elite globalista? O abortismo, a eutanásia, o ateísmo militante, a destruição das identidades e tradições nacionais, a tirania dos regulamentos econômicos uniformes que subjugam e estrangulam povos inteiros, a imposição de normas culturais aberrantes e fúteis inspiradas no lixo teosófico de Madame Blavatski, Alice Bailey e Aleister Crowley. (V., além do já abundantemente citado False Dawn, de Lee Penn, Under the Spell of Mother Earth, de Berit Kjos, Wheaton, Illinois,  Victor Books, 1992, e The Hidden Dangers of the Rainbow. The New Age Movement and Our Coming Age of Barbarism, Shreveport, Louisiana, Huntigton House, 1983.)

Nos EUA, a linha divisória da disputa política é entre os adeptos da soberania nacional (conservadores) e os da submissão à estratégia globalista (“liberals”, no sentido americano do termo, e esquerdistas em geral). A posição do presidente Bush é ambígua, na medida em que por um lado busca afirmar o poderio americano no Iraque mas por outro lado está comprometido até à medula com o projeto globalista da “North American Commonwealth”, a dissolução dos EUA numa unidade multinacional com o México e o Canadá. Bush, por mais conservador que se pretenda em questões de moral, é no fim das contas um membro do CRF, Council on Foreign Relations, o mais poderoso think tank pró-ONU, diretamente responsável pela concepção da Commonwealth. Falar em projeto, no caso, é eufemismo, pois Bush já assinou um protocolo de intenções com o presidente do México e o primeiro-ministro do Canadá, dois anos atrás, comprometendo-se a realizar a fusão. O documento permaneceu secreto até que um cidadão desconfiado apelou ao Freedom of Information Act (uma das maravilhas da democracia americana) e obrigou o governo a revelar seu conteúdo. Quem quiser informação atualizada a respeito, leia o número de janeiro da revista Whistleblower (www.wnd.com).

Tudo isso é a substância do debate político diário nos EUA. Não há um só cidadão americano maior de idade que ignore que essas questões abrangentes, muito mais do que a invasão do Iraque em particular, são o fundo da disputa de entre o governo americano e a ONU. Ninguém nos EUA ignora que o destino da humanidade nas próximas gerações depende de uma escolha fundamental quanto à hierarquia de poder no mundo: continuará a existir um sistema de nações independentes, mais ou menos garantido pela hegemonia política, militar e econômica da democracia americana, ou esta cederá o lugar à uma burocracia global firmemente disposta a eliminar a soberaria nacional dos EUA e, junto com ela, a de todas as demais nações?

Os cretinos que, no Terceiro Mundo, esbravejam contra o “imperialismo ianque” e buscam abrigo na “ordem internacional” representada pela ONU são servos conscientes ou inconscientes do mais gigantesco, ambicioso e desavergonhado plano imperialista que alguém já ousou conceber – algo que ultrapassa, em amplitude e desejo de poder, os mais megalômanos sonhos de Hitler, Stalin e Mao Dzedong.

Do ponto de vista econômico, esse plano pode ser resumido na fórmula: usar o crescimento econômico globalizado como instrumento para fortalecer a burocracia internacional que o regula e o administra. É uma receita quase infalível, capaz de atrair a colaboração de correntes políticas as mais heterogêneas, com a condição de que não questionem as implicações mundiais do plano e se atenham aos aspectos parciais e regionais que pareçam coincidir momentaneamente com as suas idéias e programas. Liberais que, obsediados pela liberdade econômica, vejam nela uma causa sui e se tornem cegos para os fundamentos culturais, religiosos e morais que a possibilitam são utilíssimos para promover a destruição desses fundamentos em nome da primazia do “mercado”, senão da “racionalidade científica”. Nacionalistas de esquerda intoxicados de anti-americanismo são ótimos para sacrificar a soberania de seus países no altar do imperialismo global no instante mesmo em que imaginam salvá-la dos EUA. Comunistas e enragés em geral, empenhados em criar blocos econômico-militares regionais para “resistir ao imperialismo ianque”, esses então são os queridinhos por excelência do globalismo: espalham ódio ao principal adversário do esquema, fortalecem a ONU e, de quebra, já vão promovendo as integrações regionais que, pelo menos desde Hans Morgenthau foram admitidas como a única via possível para a implantação do governo mundial. Dos socialdemocratas embriagados de “Terceira Via”, então, não preciso nem falar: esses são a própria burocracia internacional em ação. Vocês entendem agora o que Garrison queria dizer com “visão transcendental que possa unir os elementos dispersos num propósito abrangente”? Não se trata de valores civilizacionais, mas apenas de uma estratégia global capaz de atrair e usar em seu favor todas as cegueiras regionais.

Ora, em matéria de cegueira, ninguém supera os brasileiros. O exemplo mais recente é, evidentemente, a própria manifestação de surpresa do senador Simon. Ele não tem a menor idéia de que, de todos os partidos brasileiros, o que tem ligações mais profundas e extensas com as centrais do poder global – e isso não vem de hoje – é o PT. Ele não enxerga sequer que a política inteira do governo Lula, com sua característica síntese de contrários – ortodoxia econômica e apoio declarado à revolução comunista bolivariana –, recebe tanto aplauso internacional porque nela confluem harmonicamente (pelo menos até agora) as duas linhas de ação principais do esquema globalista: economia mundial administrada e utilização dos movimentos subversivos e revolucionários contra os EUA. O senador tem mesmo de estar surpreso. Como todo brasileiro falante, ele lê a grande mídia nacional e se acha informado. É o mesmo que enfiar a cabeça num buraco. Querem ver até que ponto a mídia nacional está ocultando o que acontece no mundo? Vejam a ilustração deste artigo. É uma primeira página do jornal El Mercurio, do Chile. Vocês imaginam essa matéria publicada na capa da Folha ou do Globo? Impossível. Esses jornais podem dar uma agulhadinha ou outra em Hugo Chávez (o que, no ambiente nacional, já basta para serem rotulados de “direitistas”), mas jamais darão ao leitor uma idéia exata da gravidade do estado de coisas na Venezuela. Ou em qualquer outro lugar do mundo. Seu repertório é estritamente limitado ao temário-padrão das discussões internas da esquerda. Um cérebro alimentado desse material tem mesmo de ficar chocado com o que lhe parece uma “virada” pró-imperialista do PT. Porque jamais soube o que é o PT.

Querem outro exemplo? Vejam o “Relatório de Situação” elaborado pelo Grupo de Trabalho da Amazônia (GTAM) e distribuído entre integrantes e colaboradores do chamado Sistema Brasileiro de Inteligência, cujo órgão central é a Agência Brasileira de Inteligência (Abin):

A questão indígena atinge uma gravidade capaz de pôr em risco a segurança nacional. Considerando a atual reivindicação de autonomia e a possibilidade de futura reivindicação de independência de nações indígenas, o quadro geral está cada vez mais preocupante, especialmente na fronteira norte. As organizações não governamentais (ONGs), algumas controladas por governos estrangeiros, adquiriram enorme influência, na maioria das vezes usada em benefício da política de suas nações de origem, em detrimento do Estado brasileiro. Na prática, substituem, nas áreas indígenas, o governo nacional.”

Quanto à presença militar estadunidense na Amazônia, um componente relativamente novo na questão da segurança da região amazônica brasileira é a crescente presença de assessores militares estadunidenses e a venda de equipamentos sofisticados às Forças Armadas colombianas, pretensamente para apoiar os programas de erradicação das drogas, mas que podem ser utilizados no combate às Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e ao ELN (Exército de Libertação Nacional).”

Nem comento a redação, obra de semi-analfabetos. Ao longo de todo o documento, a sigla ONU nem mesmo aparece. A transformação das áreas indígenas em nações independentes, para quebrar a espinha dos Estados nacionais a que pertencem, é um objetivo repetidamente proclamado pela ONU, e as organizações não-governamentais presentes na Amazônia são todas associadas à ONU, mas os iluminados experts militares que elaboraram o “Relatório de Situação” não têm a coragem, não têm a hombridade – ou não têm a inteligência — de declarar que o território amazônico está sendo ocupado pelo mesmo esquema internacional que orienta e subsidia os movimentos anti-americanos por toda parte.

Preferem fazer de conta que as únicas forças agentes no cenário do mundo são os Estados nacionais e, por via desse raciocínio, lançam a culpa de tudo nos EUA, aproveitando a ocasião, é claro, para bajular o esquerdismo imperante. Afinal, depois de apanhar tanto dos esquerdistas, alguns dos nossos bravos militares parecem ter chegado à conclusão de que é melhor humilhar-se voluntariamente do que sofrer humilhação forçada. Falam da honra das Forças Armadas, mas lhe dão uma interpretação psicológica peculiar: não há desonra em apanhar de alguém a quem se ama; logo, se você está sendo surrado, salve a honra apaixonando-se pelo agressor.

O detalhe especialmente calhorda do relatório é a insinuação – sem a mais mínima prova — de que o governo americano fornece armas às Farc. Ora, o governo Hugo Chávez fornece armas às Farc, reconhecidamente, abertamente, e nunca os distintos autores dessa peça abjeta de desinformação reclamaram no mais mínimo que fosse. As Farc são o movimento armado mais hidrofobicamente anti-americano que já existiu no continente, mas é certo que têm boas relações com a central globalista que fomenta o anti-americanismo no mundo (v. meu artigo “Por trás da subversão”, http://www.olavodecarvalho.org/semana/060605dc.html). Quanto ao Plano Colômbia, eu mesmo já denunciei, vezes sem conta que foi um ardil globalista concebido para usar uma agência do governo americano como instrumento para entregar às Farc o monopólio do narcotráfico no continente, dando ainda aos esquerdistas, únicos beneficiários do plano, o pretexto de condená-lo da boca para fora como como “ingerência imperialista”. Mas os srs. membros do Grupo de Trabalho da Amazônia não gostam de distinções sutis. Para eles, tudo o que é estrangeiro é “gringo” e, portanto, é agente do imperialismo americano. E que haja alguma ligação, mesmo remota, entre a invasão da Amazônia por agentes da ONU e o projeto governamental que tanto surpreende o senador Simon é coisa que, decerto, nem lhes passa pela cabeça. O PT está acima de qualquer suspeita. O PT é esquerda, portanto é patriota. O PT gosta da ONU, portanto a ONU nada faria contra nós. Nosso inimigo é o Tio Sam, é a direita, são os conservadores americanos. O Brasil, em suma, tem um serviço de inteligência devotado ao emburrecimento próprio e da nação inteira. O “Relatório de Situação” seria apenas o manifesto da Agência Nacional de Falta de Inteligência, se não fosse também o do falso patriotismo.

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