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A guerra contra as religiões

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 23 de janeiro de 2006

Embora desde a Revolução Francesa o grosso da violência militante tenha se originado sempre nas ideologias materialistas e escolhido como vítima preferencial a população religiosa; embora a perseguição aos católicos, ortodoxos, protestantes e judeus tenha matado mais gente só no período de 1917 a 1990 do que todas as guerras religiosas somadas mataram ao longo da história universal; embora nas duas últimas décadas o morticínio de cristãos tenha voltado a ser rotina nos países comunistas e islâmicos, chegando a fazer 150 mil vítimas por ano; embora todos esses fatos sejam de facílima comprovação e de domínio público (v. nota no fim deste artigo); e embora nas próprias nações democráticas o acúmulo de legislações restritivas exponha os religiosos ao perigo constante das perseguições judiciais, — a grande mídia e o sistema de ensino na maior parte dos países insistem em continuar usando uma linguagem na qual religião é sinônimo de violência fanática e na qual a eliminação de todas as religiões é sugerida ao menos implicitamente como a mais bela esperança de paz e liberdade para a humanidade sofrida.

A mentira gigantesca em que se sustenta essa campanha é tão patente, tão ostensiva, tão cínica, que combatê-la só no campo das discussões públicas é o mesmo que querer parar um assassino, ladrão ou estuprador mediante a alegação polida de que seus atos são ilegais. Os mentores e autores da campanha anti-religiosa universal sabem perfeitamente que estão mentindo. Não precisam ser avisados disso. Precisam é ser detidos, desprovidos de seus meios de agressão, reduzidos à impotência e tornados inofensivos como tigres empalhados.

A propaganda insistente contra uma comunidade exposta a risco não é simples expressão de opiniões: é ação criminosa, é cumplicidade ostensiva ou disfarçada com o genocídio. Aqueles que a praticam não devem ser apenas contestados educadamente, como se tudo não passasse de um pacífico debate de idéias: devem ser responsabilizados judicialmente por crimes contra a humanidade. A jurisprudência acumulada em torno das atrocidades nazistas, unânime em condenar a cumplicidade moral mesmo retroativa, fornece base mais que suficiente para condenar, por exemplo, um Richard Dawkins quando sai alardeando que o judaísmo e o cristianismo são “abuso de menores”, como se a noção mesma da proteção à infância não tivesse sido trazida ao mundo por essas religiões e como se elas não fossem, hoje, o último obstáculo à erotização total da infância e à subseqüente legalização universal da pedofilia (já praticamente institucionalizada no Canadá, um dos países mais ateus do universo).

Quando o sr. Dawkins se diz avesso ao uso de meios violentos para extinguir as religiões, mas propõe os mesmos objetivos ateísticos que há dois séculos buscam realizar-se precisamente por esses meios, ele sabe perfeitamente que a ênfase do seu discurso, e portanto seu efeito sobre a platéia, está na promoção dos fins e não na seleção dos meios. Voltaire, quando bradava “esmagai a infame”, negava estar incitando quem quer que fosse à violência física contra a Igreja Católica. Mas, quando os revolucionários de 1789 saíram incendiando conventos, destripando freiras e decapitando bispos, era esse grito que ecoava nos seus ouvidos e saía pelas suas bocas. Se a religião é, segundo o sr. Dawkins, “o maior de todos os crimes”, a matança de todos os religiosos terá sempre o atenuante da gravidade menor e o da sublime intenção libertadora. Quando no começo do século XX Edouard Drumont escrevia “ La France Juive”, ele não tinha em mente nenhuma crueldade a ser praticada coletivamente contra os judeus. Mas é impossível ler hoje suas páginas sem sentir o cheiro das câmaras de gás. Uma única e breve página vagamente anti-semita escrita por Winston Churchill na juventude precipitou-o numa tal crise de arrependimento, diante da ascensão do nazismo, que isso decidiu o restante da sua vida de líder e combatente. Drumont, que morreu em 1917, não poderia ter adivinhado o destino que os leitores dos seus livros dariam aos judeus. Mas o sr. Dawkins não precisa adivinhar o futuro para calcular o efeito de suas palavras: ele conhece a história do século XX, ele sabe a que resultados levam não somente as propostas explícitas como a de Lênin, “varrer o cristianismo da face da Terra”, mas também o anticristianismo mais sutil, mais sofisticado de um Heidegger, que, pretendendo expulsar Deus para fora da metafísica, convocou Adolf Hitler para dentro da História. O homem que, sabendo de tudo isso, se oferece para gravar programas de TV que apresentam a religião como a raiz de todos os males, como se os mais amplos morticínios da História não fossem males de maneira alguma, esse homem é simplesmente um apologista do genocídio, um criminoso vulgar como qualquer neonazista de arrabalde.

O sr. Dawkins já ultrapassou aquele limite da truculência mental e do desprezo à verdade, para além do qual toda a discussão de idéias se torna inútil. Não se trata de provar nada para o sr. Dawkins. Trata-se de provar seu crime perante os tribunais. O dele e o de inumeráveis organizações militantes, subsidiadas por fundações bilionárias, dedicadas a fomentar por todos os meios o ódio às religiões.

Todas as organizações religiosas que não se mobilizarem para a defesa comum não só no campo midiático, mas no judicial, devem ser consideradas traidoras, colaboracionistas e vendidas ao inimigo. E não espanta que usem para legitimar sua covardia abominável o pretexto do perdão e da caridade, prostituindo o sentido da mensagem evangélica que manda cada um de nós perdoar as ofensas feitas a ele próprio, nunca pavonear-se de cristão mediante o expediente fácil de perdoar crimes cometidos contra terceiros, que aliás nunca lhe deram procuração para isso. Não é um discípulo de Jesus aquele que, vendo seu irmão ser esbofeteado, se apressa em cortejar o agressor ofecendo-lhe a outra face da vítima.

Fundamentalismo?

O mais extraordinário é que as forças anticristãs e antijudaicas, mal escondendo seu apoio à ocupação islâmica do mundo ocidental, prevalecem-se da própria imagem sangrenta do radicalismo islâmico para projetá-la sobre todas as comunidades religiosas, sobretudo aquelas que são vítimas usuais da violência muçulmana, e transmitir ao mundo a noção de que todas são, no fundo, terroristas. O manejo astuto do termo “fundamentalismo” tem servido para esse ardil, que desonra qualquer língua culta. Esse termo designava originariamente certas seitas protestantes afeitas a uma leitura literal da Bíblia ou, mais genericamente, qualquer comunidade religiosa decidida a conservar o apego às suas tradições (um direito que hoje se reserva para muçulmanos, índios, africanos e seus descendentes, negando-o a todo o restante da espécie humana). Ao transferir o uso desse qualificativo para os terroristas islâmicos, a grande mídia e os intelectuais ativistas que a freqüentam cometeram uma impropriedade proposital. De um lado, esse uso camuflava o fato de que esses radicais não eram de maneira alguma tradicionalistas: eram revolucionários profundamente influenciados pelas ideologias de massa ocidentais – comunismo e nazifascismo –, bem como pelo pensamento “vanguardista” de Heidegger, Foucault, Derrida e tutti quanti. De outro lado, e por isso mesmo, o termo assim empregado ia-se imantando de conotações repugnantes, preparando seu uso futuro como arma de guerra psicológica contra as mesmas comunidades religiosas que o radicalismo islâmico tomava e toma como suas vítimas preferenciais: os cristãos e os judeus. Numa terceira fase, o qualificativo passou a ser usado ostensivamente contra essas comunidades, ao mesmo tempo que se espalhava pelo mundo a campanha de difamação anti-religiosa da qual o sr. Richard Dawkins é agora o mais espalhafatoso garoto-propaganda. Durante a invasão do Iraque, rotular como “fundamentalistas” o presidente Bush (cristão) e o secretário Rumsfeld (judeu) tornou-se repentinamente obrigatório em toda a mídia chique, com uma uniformidade que comprova, uma vez mais, a presteza da classe jornalística em colaborar com a reforma orwelliana do vocabulário.

Realizando um sonho de infância

Desde pequenos, os membros da futura Comissão de Desconstituição e Injustiça da Câmara Federal nutriam profunda revolta contra as palmadas que levavam de seus progenitores em represália ao exercício de direitos humanos fundamentais, como o de tentar furar os olhos de seus irmãozinhos, atear fogo à casa, esganar os periquitos da vizinha, esticar um barbante entre os degraus da escada só para ver a vovó rolando ou praticar qualquer outra daquelas truculências encantadoras que prenunciam uma brilhante maturidade de discípulos de Che Guevara.

Na adolescência, ainda parcialmente oprimidos sob a autoridade familiar, comoviam-se até às lágrimas com a perspectiva de tornar-se, à imagem do mestre, “eficientes e frias máquinas de matar” e sair massacrando padres, burgueses, pais, mães e demais autoridades, “pero sín perder la ternura jamás”.

O sonho kitsch do morticínio meigo encantou sua juventude e tornou-se o ideal orientador de sua formação moral. Infelizmente, durante todo esse longo período, nada puderam fazer de substantivo contra a autoridade opressora, da qual dependiam para seu sustento, vestuário, educação, lazer e outras maldades a que se submetiam com paciência de verdadeiros mártires do socialismo. Em segredo, juravam que um dia iam acabar com toda aquela injustiça capitalista.

Agora, crescidinhos, tiveram finalmente uma oportunidade da vingança redentora contra papai & mamãe. Ainda não puderam mandá-los para a cadeia, mas já quebraram a espinha dorsal da sua autoridade. Aprovaram, em caráter conclusivo, o Projeto de Lei 2654/03, que proíbe qualquer forma de castigo físico em crianças e adolescentes. O projeto será encaminhado ao Senado, sem precisar ser votado pelo Plenário da Câmara.

O incentivo direto e indireto à delinquência infanto-juvenil tem sido, há quase um século, um dos instrumentos fundamentais usados pelos ativistas de esquerda para minar a ordem social capitalista, gerando dentro dela um caos infernal para em seguida poder acusá-la de ser precisamente isso e propor a salvação geral mediante o acréscimo de controles estatais e burocráticos, exercidos, é claro, por eles mesmos. Intimamente associada a essa estratégia, a transferência progressiva de todas as formas de controle social para o grupo politicamente ativo é também um objetivo constante da subversão comunista. Todos os meios são usados para isso, sempre sob pretextos edificantes que colocam o eventual adversário na posição incômoda de parecer um defensor do mal. As mães que derem uma palmada no bumbum de seus filhos, por exemplo, serão agora encaminhadas compulsoriamente a um “programa comunitário de proteção à família”. Quem pode ser contra a proteção à família? Na URSS, os dissidentes eram encaminhados à “assistência psiquiátrica gratuita”. Quem pode ser contra o tratamento gratuito dos doentes mentais?

Nos EUA, já se tornou impossível ignorar o vínculo de causa e efeito entre as reformas educacionais “progressistas” adotadas desde John Dewey (1859-1952) e o crescimento avassalador da delinqüencia infanto-juvenil, um problema que o Estado já desistiu de eliminar, contentando-se agora em dedicar-se ao “gerenciamento de danos”, isto é, em adestrar a sociedade para que aceite o estado de coisas como fatalidade inevitável. (Sugiro, quanto a esse ponto, a leitura de Joel Turtel, Public Schools, Public Menace : How Public Schools lie to Parents and Betray our Children , Charlotte T. Iserbyt, The Deliberate Dumbing Down of America , Berit Kjos, Brave New Schools: Guiding Your Child Through the Dangers of the Changing School System , Brenda Scott, Children No More: How We Lost a Generation, Bob Whitaker, Why Johnny Can’t Think e John Taylor Gatto, Dumbing Us Down: The Hidden Curriculum of Compulsory Schooling. Todos esses livros podem ser encontrados pelo site www.bookfinder.com.) Simultaneamente, a intelectualidade ativista tira proveito da situação que ela própria criou, imputando a violência adolescente, por exemplo, às fábricas de armas, que já existiam no tempo em que as crianças se contentavam com traquinagens domésticas inofensivas.

A relatora do projeto na Comissão, Sandra Rosado (PSB-RN), justificou a nova lei afirmando que “educar pela violência é uma abominação, incompatível com o atual estágio de evolução da sociedade”. Decerto: quando um país, governado pelos gangsters do Mensalão intimamente associados aos narcotraficantes das Farc, chega aos 50 mil homicídios por ano e ainda se preocupa mais em amarrar as mãos dos policiais do que em deter os criminosos, isso é um estágio de evolução incompatível com palmadas educativas nos bumbuns das crianças travessas. O tempo de tentar educar as safadinhas já passou: elas já estão todas na Câmara Federal.

Somada às demais medidas concomitantes tomadas pelo Estado-babá para a proteção dos delinqüentes e a criminalização de todas as formas tradicionais de autoridade, a nova lei promete ter efeitos culturais que farão Antonio Gramsci e os fundadores da Escola de Frankfurt ter orgasmos no túmulo. Deve ser – por fim! — a liberação sexual dos mortos.

Fontes sobre a perseguição anti-religiosa

Livros:

· David Limbaugh, Persecution: How Liberals Are Waging War Against Christianity (Washington, Regnery, 2003).

· Roy Moore, So Help Me God: The Ten Commandments, Judicial Tyranny, and The Battle for Religions Freedom (Nashville, Tennessee, Broadman & Holman, 2005).

· Janet L. Folger, The Criminalization of Christianity (Systers, Oregon, Multnomah, 2005).

· Rabbi David G. Dalin, The Myth of Hitler’s Pope (Washington DC, Regnery, 2005).

· David B. Barrett & Todd Johnson, World Christian Trends, Ad 30-Ad 2200: Interpreting the Annual Christian Megacensus. William Carey Library, Send the Light Inc, 2003.

· E. Michael Jones, Libido Dominandi: Sexual Liberation and Political Control (South Bend, Indiana, St. Augustine’s Press, 2000).

Internet:

· http://www.christianpersecution .info/

· http://zbh.com/links/martyred .htm

· http://www.freedomhouse.org /religion/

· http://www.christianmonitor .org/

· http://www.worship.com/help/

· http://www.wayoflife.org/fbns /state.htm

· http://www.thegreatseparation .com/newsfront/christian _persecution/

· http://www.persecution.com/

· http://www.jews4fairness.org /index.php

· http://www.wnd.com (site de notícias em geral, acompanha regularmente as notícias de perseguição religiosa no mundo).

Saudades da literatura

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 23 de janeiro de 2006

Tendo em conta a distinção de Allen Tate entre a mera “comunicação” e a genuína “comunhão” de experiências fundamentais, a primeira caracterizando a mídia em geral e a segunda a arte do escritor, é difícil escapar à conclusão de que a literatura no Brasil, se ainda existe, desapareceu do cenário público. Há, é claro, um Bruno Tolentino, mas o espaço que ocupa é demasiado pequeno, quase nulo para o seu tamanho. Há um Alberto da Cunha Melo, mas quem já ouviu falar dele fora do Nordeste? Há mais dois ou três que ninguém conhece e, pelo que vêem em torno, preferem mesmo não ser conhecidos. Nada do que em geral se publica e se comenta sob rótulo literário nos suplementos ditos “culturais” (faz-me rir) corresponde à exigência fundamental da literatura, que é a de conservar o poder da linguagem enquanto veículo de autoconhecimento humano (e por isso mesmo de comunhão) contra a invasão da “língua de pau” ideológica, destinada à sedução, manipulação e controle sutil da opinião popular. Que linguagem autêntica pode sobreviver aos códigos “politicamente corretos”? Não dar má impressão a fiscais paranoicamente maliciosos, empenhados em ver em tudo sinais de “racismo”, “machismo”, “sexismo”, “homofobia”, “fundamentalismo”, “etnocentrismo” etc. etc. etc., — eis a primeira preocupação de quem escreve hoje em dia, isto se ele (ou he-she, pombas) não for pessoalmente um desses fiscais. A simples naturalidade da comunicação foi embora – como poderia subsistir a veracidade da comunhão? Nada se acomoda tão confortavelmente aos novos códigos quanto a vacuidade, a inconsciência balofa, a mesquinharia que vê num atestado de petismo (ou, pior ainda, de psolismo) o substitutivo cabal e até superior das virtudes evangélicas, descartadas como criações ideológicas peremptas ou, na melhor das hipóteses, como antecipações toscas e precárias do Homo guevarianus, encarnação máxima das perfeições humanas, angélicas, divinas e motoqueiras. Tal é a condição para ser um escritor brasileiro hoje em dia: a total incapacidade para qualquer experiência humana genuína, a perfeito ajuste da vida interior à forma dos estereótipos, a adequação harmônica, artística, entre a percepção falsa e a linguagem fraudulenta.

Dos crimes da esquerda triunfante, nenhum se compara à total destruição da literatura no Brasil. Como esse não se mede em reais, nem tem como vítima o patrimônio do Estado, ninguém liga. Mas o patrimônio do Estado recupera-se com uma boa safra de soja e uns impostos. A experiência interior e a comunhão, uma vez perdidas, não voltam mais, porque são duas coisas que, quanto menos você tem, menos sente falta delas, até o ponto de supor que jamais existiram, que foram apenas palavras ilusórias de um extinto vocabulário ideológico. Em épocas muito mais ricas, espiritualmente, do que a nossa, erguiam-se, ao menor sinal de decréscimo da qualidade literária, debates intensos sobre “a crise da literatura nacional”. Hoje as discussões sumiram, pela simples razão de que aquilo que cessou de existir não pode mais decrescer. E aquilo que nem existe nem decresce não pode ser problema de maneira alguma.

Ainda os capitalistas

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 22 de janeiro de 2006

Meu artigo “Capitalistas cretinos”, como não poderia deixar de ser, suscitou perplexidade e confusões. A principal delas foram discussões em torno da possível “missão essencial” dos capitalistas, aos quais eu teria atribuído deveres exorbitantes. Exorbitante, no entanto, é alegar uma “missão essencial” para escapar ao dever, necessariamente acidental, de lutar pela própria sobrevivência quando ela está ameaçada. Que professor, vendo sua escola pegar fogo, deixará os alunos queimando dentro do prédio sob a alegação de que tirá-los de lá não faz parte da sua “missão essencial” de ensinar português ou matemática? Missões essenciais são definições de papéis sociais a desempenhar numa situação determinada, estável o bastante para que a definição das obrigações correspondentes seja visível aos olhos de todos. O desabamento da situação instaura o reino do acidental – ele próprio é acidental – e a partir daí o que determina o dever de cada qual já não é o apelo da sua vocação essencial: é a pressão das circunstâncias. Nesse momento, o sacerdote vira guerreiro, o varredor de rua vida enfermeiro, o advogado vira bombeiro. A definição mesma de “crise social” é a impossibilidade de cada um limitar-se ao seus deveres rotineiros: é a eclosão de novos deveres gerados no ventre da emergência. E quem foge a eles é covarde, suicida ou ambas essas coisas.

O pressuposto da “missão essencial” dos capitalistas é a existência estável do regime capitalista. Dentro desse quadro, eles não têm realmente outro dever senão organizar a produção segundo a racionalidade econômica e gerar lucro. Ponto final. Mas, se é o próprio sistema capitalista que está ameaçado, e sobretudo se essa ameaça não de dentro, não vem do próprio mau funcionamento do sistema, mas vem de fora, vem de uma agressão cultural, ideológica e política ao sistema, então o dever do capitalista não é desfrutar do capitalismo, mas lutar para que ele não pereça. E, historicamente, o fato é que em geral os capitalistas fogem a esse dever, deixando-o para os intelectuais, os estudantes, os militares ou quem quer que se apresente.

Alguém alegou, contra os meus argumentos, que a organização do Ocidente contra a ameaça do nazismo veio da classe capitalista. Veio nada. Os primeiros a alertar contra o perigo encontraram uma barreira de indiferença nos investidores interessados em continuar lucrando nos seus bons negócios com a Alemanha. Winston Churchill não era um capitalista, Charles de Gaulle não era um capitalista, Georges Bernanos não era um capitalista, muito menos Hermann Rauschning, militante nazista arrependido que fugiu para a Inglaterra em 1937 para publicar o dramático apelo “The Revolution of Nihilism – Warning to the West”. Os ricos foram os últimos a ouvi-los. Dentro da própria Alemanha, Hitler se propôs “colocar os capitalistas de joelhos” e eles se acomodaram covardemente à situação. Não podiam decidir o que produzir, nem o preço que iam cobrar, nem a quem iam vender, nem os salários que iam pagar. Vinha tudo pronto do governo. A resistência foi mínima. O velho Thyssen fez o máximo que sua covardia permitiu: fugiu para Paris. Hitler mandou seqüestrá-lo e trazê-lo de volta. Até o fim da guerra o potentado consolou-se lambendo suas algemas de ouro.

Outros citam o exemplo de 1964. Aí os capitalistas acabaram se mobilizando, sim, mas só para ajudar, na última hora, a dar o golpe militar que eles poderiam e teriam a obrigação de ter evitado com antecedência por meio de uma ação político-cultural eficaz. E, mesmo na hora do golpe, tudo teria ficado em conversa mole se não fosse a iniciativa imprevista do general Mourão Filho, que encerrou as discussões pondo os tanques na rua.

A maioria do empresariado ficou é cortejando o governo enquanto foi possível, na esperança de que, na corrupção geral, soubrasse para eles alguma verba oficial. Seu modelo e ideal era Tião Maia, o amigo do presidente derrubado, que no dia seguinte ao golpe fugiu do Brasil levando tanto dinheiro que se tornou a quarta maior fortuna da Austrália. Até muito recentemente, quando lhe perguntavam a razão do seu sucesso, ele respondia com a frase que todo capitalista brasileiro sonharia em poder repetir: “O Banco do Brasil foi uma mãe para mim.” Desde então, a maternidade estatal tem apliado incessantemente seus serviços, atendendo a um número cada vez maior de bebês chorôes.

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