Yearly archive for 2006

Assassinato de Kennedy: enfim, o óbvio

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 6 de fevereiro de 2006

Sexta-feira passada, a televisão alemã exibiu o documentário “Encontro com a Morte”, em que o diretor e jornalista Wilfried Huismann, após cinco anos de pesquisas, mostra que o assassinato de John F. Kennedy só pode ter sido encomendado por um único mandante: Fidel Castro.

Essa hipótese sempre foi a mais plausível, já que Lee Harvey Oswald tinha sido agente do serviço secreto cubano desde pelo menos novembro de 1962 e voltou aos EUA após ter vivido na União Soviética por muitos anos. A ligação é até óbvia demais, mas por isso mesmo houve tanta agitação na mídia e nos meios políticos para abafá-la o mais rápido possível e substituí-la por uma onda estonteante de conjeturações absurdas. Imagino se alguém ficaria buscando mandantes alternativos no caso de Fidel Castro ser morto por um agente da CIA.

O motivo apresentado pelo filme também é mais que suficiente para explicar o assassinato. Segundo o documentário, Kennedy e Castro passaram anos tramando cada um a morte do outro: “Foi um duelo que, como numa tragédia grega, deixou um dos duelistas morto”, afirma Huismann.

Mas o mais espantoso da história talvez não seja nem isso. O ex-secretário de Estado Alexander Haig aparece no filme dizendo que, logo após o assassinato, o presidente Lyndon B. Johnson recebeu informações que o levaram a concluir que Fidel Castro fora mesmo o responsável pelo crime: “Johnson estava persuadido de que Castro matara Kenedy, mas levou esse segredo para o túmulo.” Na época ele disse a Haig que era preciso evitar a todo o preço a divulgação da verdade: “Ele temia que, se o povo americano soubesse o nome do verdadeiro culpado, haveria uma guinada para a direita e o Partido Democrata ficaria fora do poder por muitos anos.”

Essa é provavelmente a acusação mais grave que um funcionário de tal envergadura já fez a um presidente americano falecido. O documentário ainda não foi exibido nos EUA, mas a mídia republicana já está chamando a atenção do público para o assunto, e não tenho dúvida de que o filme de Huismann pode ter algum peso nas próximas eleições parlamentares, senão na eleição presidencial de 2008.

Qualquer que seja o caso, é importante lembrar que Johnson foi um dos presidentes americanos mais esquerdistas, não só pelo seu intervencionismo estatal desenfreado, mas pelo derrotismo proposital com que conduziu a guerra do Vietnã, limitando de tal modo a ação das tropas americanas que só faltou mesmo pintar um alvo na cabeça de cada soldado, e também pela pressa indecente em admitir derrota movido pela pura impressão de um noticiário de TV, antes de saber que, de fato, o exército do Vietnã do Norte tinha sido quase que totalmente destruído ao longo da ofensiva. Isso não impediu que, pelo simples fato de presidir os EUA em época de guerra, fosse pintado como um verdadeiro monstro imperialista pela mídia esquerdista internacional. Agora, postumamente, vai receber uma quota idêntica de insultos da mídia conservadora. Isso deveria servir de advertência para tucanos e muristas de todos os continentes e gerações.

Os dois McCarthys

A abertura dos Arquivos de Moscou, no começo da década passada, e a publicação dos códigos Venona, no fim dela, trouxeram a prova definitiva de que, com a possível exceção do general Marshall, praticamente nenhum dos americanos acusados de colaboração com a espionagem soviética nos anos 50 era realmente inocente (v. John Earl Haynes & Harvey Klehr, Venona: Decoding Soviet Espionage in America , Yale University Press, 1999). Depois disso, é injusto e absurdo continuar usando a figura do senador Joe McCarthy como protótipo do acusador injusto e símbolo da maldade encarnada. O mínimo de satisfação que escritores e jornalistas devem à realidade histórica é riscar do seu vocabulário o termo “macartismo”.

Analogamente, a retirada das tropas americanas do Vietnã, pela qual tanto se bateu o outro McCarthy, Eugene, só serviu para dar aos comunistas o espaço livre de que necessitavam para praticar ali, e estender até o vizinho Camboja, um dos mais vastos genocídios do século XX, exatamente como previam os execrados “falcões” do Pentágono (v. Nguyen Van Cahn, Vietnam Under Communism, 1975-1982 , Stanford University, 1983). Depois disso, só um esquerdista doente ou um vaidoso incontrolável, capaz de sobrepor sua nostalgia de juventude às exigências mais incontornáveis da verdade, pode continuar celebrando o movimento “pacifista” daquela época como um momento glorioso da história da consciência humana. Foi um momento glorioso, isto sim, da história da propaganda comunista, que conseguiu ludibriar toda a população americana, transformando um volume colossal de bons sentimentos em arma de guerra a serviço do mal e da mentira. O que um homem adulto escreve hoje sobre a década de 60 é um teste do seu caráter. A insistência no estereótipo que opõe “pacifistas” a “macartistas” é um instrumento retórico vicioso usado para encobrir a colaboração com um dos maiores crimes de todos os tempos. Nenhum alemão decente que tivesse escrito uma palavra contra os judeus em 1920, sem a menor intenção de lhes trazer dano físico, se recusaria a acusar-se de cumplicidade involuntária com o nazismo ao ver o que lhes aconteceu vinte anos depois. Decorridas quase quatro décadas do genocídio na Indochina, aqueles que organizaram passeatas para ajudar a produzi-lo ainda posam de bons meninos e depositam flores regularmente no altar dos “anos dourados”. O culto do recém falecido Eugene McCarthy é parte integrante dessa liturgia do auto-engano.

Como não acredito que a burrice e a malícia sejam contraditórias, e como sei que ambas estão distribuídas democraticamente numa geração de jornalistas que se formou sob a influência do Partido Comunista e da Ação Popular, não vou gastar neurônios perguntando por que Luís Eduardo Lins da Silva, diante de fatos tão amplamente comprovados, imagina estar fazendo algo de honesto e inteligente ao forçar um paralelismo inverso e, na última edição da revista Primeira Leitura , chamar o senador Eugene McCarthy de “o McCarthy do bem” pelo simples fato de ele ter ajudado a amarrar as mãos do governo americano ao mesmo tempo que liberava as de Ho-Chi-Minh e Pol-Pot para a matança que se seguiu. Repito apenas o que, uma semana antes da publicação da matéria, mas quase adivinhando-a, escrevi sobre o jornalismo brasileiro:

Aos poucos, o hábito de respaldar-se em declarações de americanos apresentados como insuspeitos tornou-se um dispositivo usual da retórica esquerdista. Na verdade homens como Ramsey Clark, John K. Galbraith, Jimmy Carter ou Ted Kennedy eram a fina flor do esquerdismo chique. Estavam comprometidos até a goela com a ajuda à subversão no Terceiro Mundo. Mas a simples insistência geral da esquerda na lenda de que o golpe militar viera de Washington dava a qualquer americano, por contraste, a autoridade para falar contra a direita latino-americana sem parecer nem um pouquinho esquerdista. O mesmo acontecia com jornais patologicamente mentirosos em favor da esquerda, como New York Times e Washington Post , que ante a platéia tupiniquim ignorante, podiam ser citados como modelos de isenção profissional pelo simples fato de ser americanos. A geração seguinte de esquerdistas continuou usando o mesmo truque, mas por automatismo paspalho e sem saber que era truque… A malícia dos gurus impregnou-se em seus discípulos sob a forma de ingenuidade perversa. Eles já não mentem por astúcia. Mentem porque ninguém os ensinou a fazer outra coisa .”

Só faltou, para que a antecipação fosse completa, o nome do senador Eugene McCarthy entre os oficialmente insuspeitos.

Algum paralelismo entre ele e o outro McCarthy existe, de fato, mas não no sentido de Lins da Silva. Para descrevê-lo, pode-se partir desta declaração do radialista Garrison Keillor, democrata histórico, odiador emérito de um McCarthy nos anos 50 e seguidor entusiasta do outro nas décadas seguintes:

É reconfortante descobrir a verdade e concluir que você estava mirando fora do alvo. [Nos anos 50] havia uma rede de espionagem soviética no nosso governo, e o fato de que Joseph McCarthy fosse um bêbado, mata-mouros e oportunista cínico não muda isso em nada. Junto com um punhado de outros democratas, eu, de fato, estava errado nessa questão. Estou feliz de poder corrigir-me.

A época que se seguiu pode ser descrita quase com as mesmas palavras: Havia um genocídio comunista à espera da população civil tão logo os soldados americanos saíssem do Vietnã, e o fato de que Eugene McCarthy fosse capaz de citar Yeats e Eliot de cor não muda isso em nada. Junto com um punhado de outros democratas, ele estava errado em julgar que a retirada das tropas americanas seria boa para o Vietnã, não se arrependeu do seu erro quando viu a paz matar mais gente que a guerra, persistiu no erro até o fim e seus admiradores continuam badalando como herói um bobão perfumado incapaz de perceber o óbvio.

Joseph McCarthy foi um grosseirão e um pinguço turbulento que alertou seu país contra um perigo real e denunciou os culpados verdadeiros, mas com tanto espalhafato que os fez passar por vítimas inocentes. Eugene McCarthy foi um sujeito culto, fino, elegante e de bons sentimentos que ajudou seu país a humilhar-se sem necessidade, só para deixar que os comunistas, em tempo de paz, matassem um milhão de civis no Vietnã e mais dois milhões no Camboja.

Se os políticos não devem ser julgados por suas intenções hipotéticas e sim pela substância real de seus atos, não é difícil avaliar os dois McCarthys: Joseph, que parecia destinado ao sucesso, foi um fracasso na luta por uma causa justa, enquanto Eugene, aparentemente condenado ao fracasso, foi um sucesso retumbante a serviço involuntário do genocídio e da tirania. Essa é a realidade objetiva de suas biografias. Subjetivamente, ambos estavam bastante enganados quanto às dimensões de suas respectivas pessoas. Joseph presumia-se habilitado a vencer a KGB no grito. Eugene, com modéstia exemplar, confessava que teria preferido ficar em casa mas que não pudera resistir ao apelo de sua filha para que “salvasse o mundo” ( sic ). Essa é só uma das muitas ironias de suas existências, inclusive póstumas. Joseph, apesar das provas esmagadoras de que acertara em praticamente tudo exceto na tática publicitária, foi ainda mais difamado depois de morto do que o foi enquanto vivo, ao passo que Eugene, morto, é ainda mais badalado do que em vida. Ao chamar a este último “o McCarthy do bem”, Lins da Silva toma por pressuposto que a espionagem soviética dos anos 50 e o genocídio indochinês da década de 70 fossem o bem. O mal é opor-se a Josef Stalin, Ho-Chi-Minh e Pol-Pot. O fato de que essa estupidez monstruosa seja publicada em Primeira Leitura , revista insuspeita de qualquer contaminação esquerdista, mostra até que ponto a propaganda comunista de meio século atrás se impregnou no subconsciente da classe jornalística, ao ponto de já não ser percebida como tal e poder se perpetuar como sabedoria convencional.

Generosidade

Um amigo me chama a atenção para o seguinte fenômeno: o investidor que em 1º. de janeiro de 2005  tenha aplicado mil dolares em reais, com juros à taxa do CDI, resgatou em 1º. de janeiro de 2006 aproximadamente 1.400 dólares. Os juros da CDI foram de 19 por cento; mais a diferença cambial, e pronto: 40 por cento de retorno, em dólar, com garantia do governo para pelo menos metade desse lucro. É óbvio que o afluxo contínuo de investimentos estrangeiros, do qual o establishment petista tanto se gaba, não reflete nenhum suposto progresso da nossa economia, mas a esplêndida generosidade dos pobres para com os ricos.

Notícias da China real

Durante o ano passado, 87.000 protestos e rebeliões eclodiram na China. Nenhum foi noticiado pela mídia nacional. Em compensação, qualquer passeata anti-Bush em Nova York ou na Califórnia é alardeada como sinal de queda iminente do “império americano”.

Numa pesquisa realizada pelo Programa de Atitudes em Política Internacional da Universidade de Maryland, abrangendo 20.791 pessoas em vinte países (v. http://www.complusalliance.org /plugins/ComPlusDoc/details .asp?type=DocDet&ObjectId =MTc4NTg ), 74 por cento dos cidadãos chineses (três por cento a mais até do que os americanos!) julgaram que o livre mercado é o melhor sistema econômico para o mundo. Nem uma linha a respeito saiu no Brasil.

Se na formação de suas opiniões pessoais ou na tomada de decisões políticas e empresariais você se deixa guiar pela imagem do mundo que aparece nos nossos jornais, você está completamente fora da realidade.

De Lay: o fim

Exatamente como anunciei aqui semanas atrás, as denúncias contra Tom De Lay não estão surtindo nenhum efeito judiciário, mas um efeito eleitoral devastador. Após 21 anos na Câmara dos Representantes, o ex-líder republicano, em plena campanha pela reeleição, foi informado pelas pesquisas de que só metade de seus eleitores usuais pretende votar nele de novo. Claro: nada estando provado contra ou a favor do acusado, votar nele é correr um risco de cinqüenta por cento. No Brasil, onde o pessoal vota às cegas e nem lembra em quem votou, todo mundo correria esse risco sem ligar a mínima. Nos EUA, o eleitor quer segurança, porque se vê como um chefe de pessoal examinando a ficha de um candidato a emprego. Culpado ou inocente, De Lay está politicamente liquidado. Só muito viagra para levantá-lo, mas não há dinheiro para isso. A campanha contra o homem é da MoveOn.org, afilhada de George Soros, enquanto os republicanos dependem de milhões de pequenos contribuintes e ainda arcam com a fama de “partido dos ricos”.

Errata

No artigo da semana passada, o endereço da Rede Voltaire saiu errado. O certo é http://www.voltairenet.org/fr .

Idioma extinto

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 5 de fevereiro de 2006

A coisa mais difícil é encontrar no Brasil um jornalista, escritor, economista, sociólogo, professor universitário, oficial superior das Forças Armadas, senador, deputado, governador ou ministro que tenha capacidade para acompanhar, mesmo por alto, o movimento das idéias nos EUA. O desnível mental entre os dois países tornou-se abissal e intransponível, por atrofia acelerada de um deles e crescimento ininterrupto do outro.

Só para dar uma idéia. O filósofo Leo Strauss morreu em 1973. Alguns de seus discípulos ocupam postos importantes no governo Bush e no partido republicano. A bibliografia de e sobre Strauss e as controvérsias em torno de sua influência política já somam alguns milhares de volumes. No Brasil, ninguém sabe nada sobre isso, e tudo o que os jornais puderam fazer para simular informação – e isto já no segundo mandato do presidente americano — foi copiar às pressas uns dois artigos do New York Times, escolhidos a esmo entre o que de mais bobo se escreveu a respeito.

Mas não falta só informação. O idioma mesmo já não funciona. Simples colunas de jornal – Larry Elder ou Mona Charen, por exemplo, ou mesmo Ann Coulter – tornaram-se intraduzíveis, tal a riqueza do vocabulário e a profusão de alusões culturais subentendidas. A língua da nossa mídia não alcança essas sutilezas. O brasileiro simplesmente já não sabe do que o americano está falando. Acredita cada vez mais numa humanidade unificada, globalizada. Mas cada vez há mais planetas neste planeta – e alguns ficam bem longe.

Não espanta que a visão que se tem dos EUA no Brasil regrida velozmente aos estereótipos “anti-imperialistas” dos anos 50. São mais acessíveis à inteligência média e protegem contra a visão súbita do incompreensível.

Entre alguns jovens brasileiros, com pretensões letradas, a visão do hipertrófico desenvolvimento intelectual americano das últimas décadas teve uma conseqüência estranha: mergulharam nesse turbilhão e afogaram-se nele. Não vêem mais nada em torno. Conhecem cada linha de Thomas Pynchon, Jane Smiley, Alice Munro. Nunca leram Homero ou Dante. Nem, evidentemente, conhecem o próprio passado cultural americano. A atualidade novaiorquina é a medida da sua consciência histórica. A maior prova da incapacidade de absorver uma cultura estrangeira é a facilidade de ser absorvido por ela.

A mente brasileira hoje em dia é tão confusa, tão tortuosa, tão emperrada, tão cercada de prevenções, temores, superstições e fetichismos, que a comunicação das coisas mais simples se torna às vezes impossível. Diga você o que disser, não é jamais respondido na mesma clave. Muito menos respondido no sentido integral daquilo que disse. Cada ouvinte pega uma frase, uma palavra, uma vírgula que o impressionou por motivos inteiramente subjetivos, atribui a ela o sentido que bem entende e lhe opõe, não raro com eloqüência feroz, respostas que vão parar longe da discussão inicial.

E não me refiro ao povão, mas às classes letradas, aquelas que têm direito a voz e voto ao menos nas cartas de leitores. Com freqüência, não respondem ao que está sendo dito agora, mas a situações de vinte, trinta anos atrás, que se consolidaram no seu subconsciente e aí instalaram uma rede de reflexos condicionados, prontos para ser acionados, com automatismo cego, à simples audição de certas palavras que evoquem semelhanças remotas, independentemente do contexto novo em que aparecem.

É tudo uma mistura de preguiça mental, ignorância, informação faltante ou viciada, suscetibilidade mórbida e, invariavelmente, mau português. Mau português não só na ortografia troncha ou na construção errada, o que seria perdoável até certo ponto, mas no sentido quase que infalivelmentente impróprio das palavras, denotando percepção turva, como num sonho de alcoólatra. Tudo entremeado, conforme a idade do remetente, de eloqüência kitsch para fingir dignidade ou de desleixo afetado para fingir menosprezo.

Para quem está longe da terra natal e, privado dos estímulos do ambiente físico, se apega ao idioma como vacina contra a diluição da identidade pátria, ler essas coisas é um tormento: sinto ter vindo de um país que já não existe mais, de uma cultura esquecida, só conservada na memória de um saudosista semilouco, vagando errante pelas ruas de um país longínquo, falando sozinho em idioma extinto.

Antropofagia

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 2 de fevereiro de 2006

Desde que existe esquerda no mundo, ela se alimenta do seu próprio cadáver. Digo isso, antes de tudo, em sentido literal e físico: somem o Terror revolucionário na França, os expurgos soviéticos, a Revolução cultural na China, os campos de morte do Camboja e o paredón cubano, e verão, acima de qualquer dúvida razoável, que ninguém no mundo matou tantos esquerdistas quanto a esquerda mesma. Talvez por isso ela fique tão revoltada com tipos como Franco ou Pinochet. Em número de vítimas, estes não são páreo para Stalin e Mao: tornam-se odiosos porque são direitistas intrometidos que usurpam o direito esquerdista de matar em família.

Mesmo se incluirmos na “direita” o nazismo e o fascismo, o que os estudos magistrais de Ludwig von Mises, Ernest Topitsch e Erik von Kuenhelt-Leddin nos ensinaram ser sociologicamente e historicamente inexato, ainda assim o placar mortuário assinalará a superioridade invencível da esquerda. Isso explica por que todo esquerdista gosta tanto de contar cadáveres de vítimas da direita, mas perde instantaneamente o gosto pela aritmética e sai gritando contra a “contabilidade macabra” ante a mera sugestão de um cálculo comparativo.

Porém tão notável quanto a autodevoração física é a antropofagia verbal e publicitária: cada nova geração de esquerdistas se nutre do descrédito da anterior, esperando que ela entre em agonia e então parasitando e monopolizando, às pressas, as acusações que até a véspera repelia como calúnias direitistas hediondas. Claro: se a esquerda tem o direito exclusivo de matar esquerdistas, por que não teria também o de cuspir neles? Aliás, seria muito desconfortável livrar-se dos velhos e decadentes sem primeiro assassiná-los moralmente. O procedimento é tão normal, tão rotineiro na vida esquerdista, que não raro os próprios condenados colaboram ritualmente com sua própria extinção, acusando-se de crimes imaginários para ter o consolo de prestar um último serviço à causa revolucionária no papel pedagógico de maus exemplos.

Essas constantes históricas dos dois últimos séculos são tão nítidas, que elas bastam para ilustrar o fundo gnóstico da alma esquerdista, movida em essência pelo ódio a si própria, transfigurado em ódio à existência em geral e só parcialmente projetado sobre o inimigo político do momento, cuja liquidação, por isso mesmo, jamais basta para satisfazê-la. Também é aí que se deve buscar a razão do aparente paradoxo de um movimento que, quanto mais fracassa em criar um sistema político-econômico segundo seus próprios cânones, mais sucesso obtém em espalhar o caos infernal no sistema adversário. A esquerda é apenas uma força de destruição: jamais criará nada, jamais admitirá que uma só criação alheia permaneça viva por tempo suficiente para beneficiar uma parcela razoável da humanidade.

Mas é precisamente essa incalculável miséria interior, essa dor sem trégua que o agita por dentro, que dá ao esquerdismo militante a força histriônica para aqueles gritos e trejeitos de indignação que, ante uma platéia de paspalhos, aparecem como provas de altos sentimentos ofendidos e de superior autoridade moral. Só a consciência culpada do criminoso é capaz de infundir nos outros a culpa por delitos que não cometeram e que aliás nem sabem se foram mesmo cometidos. Só para dar um exemplo: quantos brasileiros que de racistas não têm nada, e que se vêem incapazes de apontar um só racista entre seus conhecidos, não estão prontos a admitir, ante a intensidade da cobrança, que praticamente o Brasil inteiro é racista? Só a mente criminosa consegue induzir o inocente a confessar-se criminoso. Fingimento e chantagem são a essência do discurso moral esquerdista.

Pensem nessas coisas quando ouvirem alguma Heloísa Helena acusando Lula de traidor e “neoliberal”. Se a acusação fosse sincera, a primeira coisa que essa senhora faria seria denunciar o homem ao Foro de São Paulo, pedindo sua expulsão. Não confundam moral com reciclagem culinária de um virtual cadáver político.

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