Yearly archive for 2004

Extinção anunciada

Olavo de Carvalho

O Globo, 28 de agosto de 2004

Poucos meses depois de lançada a campanha de entrega das armas, sem que nenhum efeito objetivo tenha vindo legitimar suas pretensões de abrandar a sanha dos criminosos, o governo já se apressa não só em alardear seus bons resultados, mas em estender a área de sua aplicação, levando-a da cidade para o campo.

Como até agora não se viu nenhum ladrão, narcotraficante ou homicida comparecer às filas repletas de velhinhas devotas e honrados trabalhadores, o único resultado a que a autoridade pode estar-se referindo com isso é o sucesso que obteve em desarmar possíveis vítimas, não seus virtuais assaltantes, agressores e assassinos.

Os prometidos efeitos apaziguantes a ser extraídos dessa vitória do governo sobre o povo são ainda demasiado imaginários para poderem justificar, por si, a extensão da campanha à zona rural. Resta o argumento da prioridade: quando o caso é extremo, há quem ache lícito arriscar um remédio mal testado, não testado de maneira alguma ou mesmo reprovado nos testes como o desarmamento civil já o foi em outras nações que o aplicaram.

Mas, no caso, o apelo a esse argumento é inviável. Num país onde, pelos cálculos da ONU, morrem a tiros 40 mil pessoas por ano, a contribuição da zona rural à taxa anual de mortes cruentas não passa de umas quarenta pessoas, segundo o governo federal, ou, na matemática hiperbólica da Pastoral da Terra, 82. Em toda essa extensão de terras, habitada por trinta por cento da população brasileira, a quantidade de crimes de morte não corresponde a trinta por cento, a vinte por cento, a dez por cento, a um por cento do total nacional. Corresponde — usando na conta os números inflados da Pastoral — à quadringentésima nonagésima parte desse total. Para cada homicídio na região rural, há 490 nas cidades.

Em números absolutos, 82 mortes são muitas mortes, mas, na comparação com outras áreas do país mais assassino do mundo, o campo é uma zona de relativa paz e tranqüilidade.

Qual a urgência, então, de experimentar nela um remédio que ainda nem passou pelo teste?

A urgência existe, sim, mas é bem outra. Não tem nada a ver com a taxa atual de crimes. Tem a ver com a correlação de forças num possível confronto entre os sem-terra e os fazendeiros. Como observou o sr. João Pedro Stedile com ameaçadora exatidão, há dez mil sem-terra para cada fazendeiro. Um fazendeiro, com cinqüenta auxiliares equipados de armas automáticas, pode repelir uma invasão de mil, cinco mil ou até dez mil militantes do MST armados de facões, foices e uma ou outra carabina de caça. Suprimidas as armas de fogo, a vantagem se inverte: no combate com armas brancas, prevalece a quantidade de braços. Nenhuma fazenda pode sustentar o contingente apto a enfrentar, com faca, porrete ou machado, um assalto maciço de milhares de sem-terras. Implantado o desarmamento civil no campo, a disputa estará decidida. O governo alega o intuito de “eliminar a tensão”, mas, obviamente, não se trata de acalmar ânimos: trata-se de abolir a tensão desativando um dos seus pólos: a propriedade particular da terra, no Brasil, está com os dias contados. Se os proprietários em pessoa morrerão ou não com ela, depende. Depende de tentarem um corpo-a-corpo de um contra dez mil, ou, ao contrário, correrem para buscar abrigo sob as asas do Incra, o qual não lhes garante nenhuma proteção contra invasões, mas promete a devolução das terras invadidas se e quando, após os devidos trâmites burocráticos, elas se demonstrarem produtivas. Em suma: só não morrerão como os do Zimbábue e da África do Sul se consentirem em ceder suas terras ao primeiro invasor que as exija e depois confiar-se docilmente à benevolência das autoridades — aquelas mesmas autoridades que os desarmaram para obrigá-los a esse vexame. É assim que começa, na estratégia marxista, a extinção de uma classe.

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E por falar em extinção: camisas-pardas do PT, armados de barras de ferro, invadiram o Diretório Metropolitano do PMDB em Porto Alegre, quebrando tudo e ferindo gravemente dois militantes. No dia seguinte, voltaram à carga, agredindo mais três. Leia em http://www.pmdb-rs.org.br/.

Retidão à brasileira

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 22 de agosto de 2004

Longe de mim chamar de incoerentes as pessoas maravilhosas que assinaram o manifesto em favor de Hugo Chávez e, uma semana depois, aparecem posando de baluartes da liberdade de imprensa, gritando horrorizadas ante a ameaça de introdução do chavismo no Brasil.

Incoerência só pode haver em homens de idéias, cuja unidade de consciência se manifesta no plano do discurso. A chave da congruência vital daquelas criaturas encontra-se mais em baixo: é a linha perfeitamente contínua de uma “carreira”, que, sob as contradições aparentes do discurso, segue incansavelmente a busca de seus objetivos profissionais, sociais e financeiros por todos os meios disponíveis, adaptando-se às ondulações das circunstâncias sem perder o fio da meada, o equivalente dialético e brasileiro da retidão.

Assinaram aquela porcaria só porque sabem que sem essas genuflexões rituais ninguém neste país pode aspirar a ser alguém nas artes, nas letras ou no jornalismo.

Já era assim no tempo da ditadura. Só a fantasia de adolescentes, amputada do conhecimento do passado histórico por uma devotada geração de castradores pedagógicos, pode imaginar que naquela época a hegemonia cultural tenha cedido, ou mudado de mãos. Mesmo os generais-presidentes não se furtavam às reverências de praxe ante o esquerdismo chique. Sem isso, em vão esmolariam um olhar de afeição das grandes damas da mídia e do show business . Nada me tira da cabeça que foi o desejo secreto de ser amado por essa gente que impeliu Geisel a dar a Fidel Castro o dinheiro e a ajuda técnica para invadir Angola. De Paris, Glauber Rocha acenava para o general com a tentadora oferta de fazer dele um ídolo das esquerdas. Falhou, e o próprio Glauber terminou abandonado pela patota. Mas, nesse ínterim, quinze mil angolanos morreram vítimas de um flerte.

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Também não há incoerência no epíteto de “covardes” lançado pelo presidente da República contra os jornalistas mal ajustados ao sistema. Ele fala como se, em vez de resistir à sua política, eles estivessem ansiosos para obedecê-la, só lhes faltando para isso a ousadia de dizer adeus à última aparência de escrúpulos. Ele não se dirige a eles como a adversários, mas a empregados recalcitrantes. Quem ousará negar que, estatisticamente ao menos, ele está certo? A classe jornalística não votou maciçamente nele? Não abdicou da alma e da consciência para embelezar sua imagem eleitoral, ocultando as ligações políticas dele com as Farc, cuja divulgação teria abortado sua candidatura? Não encobriu de silêncio a perseguição movida pelo governo do sr. Olívio Dutra contra três dezenas de jornalistas gaúchos? Não colaborou tão prestativamente, nas CPIs, para dar ao partido presidencial o monopólio do acusar, do investigar e do punir, colando em todos os seus adversários o rótulo de criminosos virtuais e varrendo-os do caminho para assegurar ao queridinho das classes falantes a chegada triunfal ao objetivo sonhado? Então por que, de repente, essa hesitação, essa teimosia, essa frescura? Em vez de acusá-los de traição, palavra pesada demais, o presidente deu à conduta paradoxal de seus servidores a mais generosa das explicações.

Observo, apenas, que ela não se aplica àqueles que desde o início se recusaram a fazer o servicinho sujo. Para esses, é melhor o presidente catar outro adjetivo no depósito da língua-de-pau petista. Chame-nos de aberrações, de fascistas, de lacaios do imperialismo, do que quiser. De covardes, não. Na escala da coragem, sr. presidente, o senhor não tem cacife para nos julgar. O senhor jamais correu um risco sem contar com o respaldo de um movimento de massas, de “companheiros de viagem” milionários e da mídia internacional. Nunca esteve sozinho, isolado, sem partido, sem alianças, sem dinheiro, cercado do ódio de milhares de cães hidrófobos. Os únicos perigos reais que o senhor já enfrentou sem ajuda foram um torno mecânico e uma banheira de hidromassagem aérea. Não queremos suas lições de valentia.

Idéias e resultados

Olavo de Carvalho

O Globo, 21 de agosto de 2004

Na galeria das doenças do espírito humano, a mais repugnante é a duplicidade de consciência, que faz um homem chafurdar na mentira ao mesmo tempo — e no mesmo ato — em que seu coração bate forte de indignação contra a perfídia do mundo. Para os que não conheceram por dentro os meios esquerdistas, a existência dessa síndrome pode parecer inverossímil e até inconcebível. Não acreditam que alguém possa ser falso ao ponto de imaginar-se sincero, bondoso e santo ao ludibriar os demais. Mas às vezes o fenômeno se torna tão patente, que mesmo a incredulidade sonsa já não consegue negá-lo. A denúncia do caso Ibsen Pinheiro é um exemplo espalhafatoso. Co-autor e testemunha da destruição jornalística de um inocente, o senhor Luís Costa Pinto calou-se durante anos, esperando para ter sua crise de consciência no momento exato em que ela favorecia os criminosos em vez de prejudicá-los. Quem será estúpido de imaginar que foi pura coincidência o timing perfeito, a denúncia do “mau jornalismo” saindo pela boca de um assessor petista em uníssono com a investida do governo contra a liberdade de imprensa? Resultado de uma trama montada entre petistas para eliminar um virtual concorrente de Lula na corrida presidencial, a calúnia contra o ex-deputado é usada agora como pretexto para fazer do partido caluniador o juiz em vez de réu do processo. A raposa exibe as galinhas destripadas como argumento para reivindicar o posto de guarda do galinheiro. Costa Pinto e seus cúmplices, a começar por Paulo Moreira Leite, acusado de autorizar a publicação da mentira consciente, estão fora de perigo. O delito prescreveu e a vítima anunciou que não quer nem indenizações. Quem vai pagar pelo crime? Nós outros, os “maus jornalistas”, condenados por um júri de Costas Pintos e Moreiras Leites.

Desde o momento em que este país reconheceu no esquerdismo chique a autoridade suprema em matéria de ética, era inevitável que chegássemos a isso. Foi o que previ e anunciei, em vão, desde a ignóbil “Campanha pela Ética na Política”, calculada para prostituir a linguagem da moralidade no leito do maquiavelismo petista.

Graças a essa prodigiosa conjunção de artimanhas, a total confusão nos critérios de julgamento arraigou-se fundo na alma nacional. Muitas gerações passarão antes que saia de lá, se um dia sair. Uma coisa é corromper a classe política, outra é perverter o senso de moralidade de todo um povo, instaurando a indiscernibilidade estrutural e endêmica do bem e do mal.

A condição prévia para isso, na ordem intelectual, veio com o prestígio alcançado nas nossas universidades pelo pensamento desconstrucionista e “pós-moderno”, que, em nome da dificuldade de encontrar um critério universalmente racional para a arbitragem das diferenças, consagra a manipulação emocional, o engodo e a mentira como meios normais de persuasão.

Duas gerações de estudantes brasileiros foram estragadas pelos porta-vozes locais de Derrida, Lyotard, Deleuze e Foucault. Nos anos 90, esses estudantes chegaram à linha de frente da mídia. Sabiam perfeitamente que o apelo à “ética”, que então lançaram à nação, era apenas um ardil para colocar a serviço da estratégia esquerdista o tradicional moralismo da classe média. Nada corrompe mais que a instrumentalização da moral. E nunca essa instrumentalização foi tão consciente, tão deliberada e tão geral como se tornou desde então. Repelida no mundo acadêmico como “antidemocrática”, a busca da verdade só poderia subsistir, na mídia, como paródia de si mesma e instrumento para a otimização da fraude.

“As idéias têm conseqüências”: é a lição imortal de Richard Weaver. Toda deterioração social e política começa na esfera intelectual. Comentando a degradação do pensamento acadêmico de seu país e referindo-se de passagem à imitação dela pela universidade brasileira, o jovem filósofo francês Jean-Yves Béziau despede-se do assunto em uma linha: “Pouparemos ao leitor o conhecimento dos resultados da macaqueação de um modelo degenerado.” Mas ele se referia ao leitor europeu. Nós, brasileiros, não somos poupados de enxergar esses resultados todos os dias.

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