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Ainda a canalhice

Olavo de Carvalho

O Globo, 7 de abril de 2001

Quando se fala dos cem milhões de vítimas do socialismo, isto se refere a pessoas assassinadas de propósito, por ordem de governantes, em tempo de paz. São “inimigos de classe” liquidados mediante fuzilamentos, enforcamentos, espancamentos, torturas várias e inanição forçada. São vítimas de genocídio deliberado. Seu número não inclui nem soldados mortos em combate, nem vítimas civis da guerra ou de crimes comuns, nem muito menos taxas de mortalidade infantil ou cálculos de diminuição da expectativa de vida média por conta da ineficácia econômica do socialismo. Se incluísse, o total, na mais modesta das hipóteses, duplicaria. Mas, mesmo sem isso, cem milhões já bastam para tornar o socialismo, desde o simples ponto de vista quantitativo, um flagelo mais mortífero que duas guerras mundiais somadas, mais todas as epidemias e terremotos deste e de vários séculos.

Quando, nada tendo a opor à realidade brutal desses dados, o propagandista do socialismo quer aliviar a má impressão desviando os olhos do público para os “horrores do capitalismo”, ele não encontra aí nada de parecido. Nem Gulag, nem fuzilamentos em massa, nem expurgos, nem guardas vermelhos a retirar professores de suas cátedras para espancá-los até à morte. Que artifício lhe resta, então, senão apelar à duplicidade de pesos e medidas para ajustar o resultado do cálculo ao efeito publicitário premeditado? Então ele atribuirá às democracias ocidentais a culpa pelas guerras iniciadas por governos totalitários, nivelará moralmente o genocídio premeditado com os efeitos imprevistos de políticas econômicas, fará do governo de Washington o autor intencional das mortes de famintos em países submetidos a regimes estatistas e socializantes da Ásia, da África e da América Latina onde o capitalismo mal chegou a entrar, e por fim debitará na conta dos governos capitalistas todos os feitos de assaltantes, estupradores, serial killers e delinqüentes em geral.

Ao perceber que tudo isso ainda não basta para completar a cifra desejada e que a manobra inteira já começa a soar inconvincente, ele apelará ao derradeiro subterfúgio: negar o valor dos números, abolindo, num golpe de caneta, a diferença entre o assassino de uma só vítima e o assassino de milhões, diferença que minutos antes, quando imaginava poder usá-la contra o capitalismo, ele mesmo enfatizava aos berros. Então, matar os 300 assassinos de 200 policiais e soldados, no Brasil, terá se tornado crime tão hediondo quanto fuzilar, em Cuba, dezessete mil dissidentes civis desarmados. Revidar o ataque de tropas armadas, numa guerra civil, será tão abominável quanto retirar de suas casas, na calada da noite, dezenas de milhões de cidadãos inermes, para os fuzilar e jogar na vala comum.

Depois de todos esses cortes, enxertos e suturas, não há realidade que resista. A imagem do capitalismo aí fica, sim, pelo menos tão má quanto a do socialismo. Talvez até um pouco pior.

Mas qualquer palavra mais doce do que canalhice, que eu empregasse para qualificar esse gênero de discurso, me tornaria indigno da condição de escritor; indigno, a rigor, da simples identidade funcional de jornalista. Pois, se há uma obrigação elementar do jornalista, é a de dar aos fenômenos que descreve a justa proporção que têm na realidade. E não há um só tratado sobre a arte da argumentação, de Aristóteles e Quintiliano até Schopenhauer e Chaim Perelman, que não exclua da arte retórica, mãe do jornalismo, o uso daquele tipo de expedientes maliciosos, relegando-os ao lixo da erística, a arte de ludibriar o público, a retórica prostituída dos intrujões e dos canalhas.

Chamá-los canalhas não é, nem de longe, a expressão de um sentimento pessoal. É a justa e exata aplicação de um juízo consagrado entre os mestres da arte da argumentação. É o reconhecimento objetivo da intromissão de um linguajar fraudulento que, se não pode ser eliminado das arengas de arruaceiros e demagogos, deve ser banido, sem complacência, de todo debate que se pretenda intelectualmente respeitável.

Isso é requisito preliminar, independente, mesmo, do mérito das questões em disputa.

Mas, no caso presente, se há algo comparável à vileza dos procedimentos argumentativos usados para igualar o inigualável, é a feiúra moral da causa a que sacrificam a sua honradez intelectual os que a tanto se prestam.

As dimensões do mal que eles pretendem ocultar são tão colossais, ultrapassam de tal modo as medidas do humanamente concebível, que a Igreja, em sentenças papais proferidas ex cathedra, definiu o fenômeno como intrinsecamente diabólico, condenando à excomunhão automática qualquer católico que, por palavras, atos ou omissões, colaborasse com o monstruoso empreendimento.

No entanto não falta quem se escandalize diante dessa sentença papal mais que diante da imensidão do próprio crime que ela condena. Onde já se viu, dirão, diabolizar assim as pessoas? Feio, no sentimento de quem assim fala, não é matar cem milhões de seres humanos. Feio é aliviar, por piedade, as culpas dos criminosos, atribuindo a autoria de seus feitos ao demônio. Feio não é Pol-Pot, não é Stalin, não é Mao, não é Fidel. Feio é o Papa que, vendo-os conduzidos pelo demônio como bonecos, joga as culpas deles sobre o tentador e implora a Deus que os perdoe porque não sabem o que fazem.

É assim que, na imaginação dos que se dizem bem intencionados, o crime se converte em mérito, e o perdão em crime.

Admito que a visão do mal, nas proporções com que ele surge no fenômeno socialista, é em si mesma estupefaciente — o bastante para que a alma vacilante, diante dela, dificilmente resista à tentação de negar a realidade, como os olhos do poeta, diante da “sangre derramada” de seu amigo Ignacio Sanchez, gritavam desesperados: “No! Yo no quiero verla!”

Admito que a fraqueza humana, para se defender instintivamente da atração hipnótica do mal, prefira negá-lo.

Mas a ignorância voluntária é, já, a vitória do mal.

PS – Peço encarecidamente a meus antagonistas que, quando me cobrarem as fontes das informações que veiculo, não o façam naquele tom arrogante de quem finge a certeza de não obter resposta. (a) Os dados sobre a manipulação comunista das consciências infantis foram coletados pelo prof. Nelson Lehmann da Silva, da UnB, que pode ser consultado pelo e-mail nelson@essencial.com.br. (b) A prova de que a ação conjunta dos militares resultou da intervenção cubana na guerrilha, e não esta daquela, está em “Apoio de Cuba à Luta Armada no Brasil”, de Denise Rollemberg (Rio, Mauad, 2001).

PS 2 – Mais um livro importante sobre a situação catastrófica do Rio Grande do Sul, ignorada no resto do país, acaba de sair em Porto Alegre: “Crônicas contra o totalitarismo”, de Percival Puggina (Fundação Tarso Dutra, f. 051 2214419).

PS 3 – Agradeço ao meu colega Leandro Konder sua gentileza de me reconhecer, em público, como homem tolerante e capaz de diálogo. Da minha parte, jamais lhe neguei qualidades similares.

Entre a burrice e a vigarice

Olavo de Carvalho

Época, 31 de Março de 2001

Há um método infalível de tirar conclusões erradas – o método brasileiro de raciocinar

Se você quer estragar definitivamente um cérebro, acostume-o desde pequeno a tomar os sentidos das palavras, estampados nos dicionários, como se fossem traduções diretas de coisas e fatos. Em seguida, quando ele montar um raciocínio com essas palavras, faça-o acreditar piamente que a conclusão se aplica aos fatos e a coisas correspondentes.

Esse é o método infalível de ir parar longe da realidade. Após algumas décadas de experiência na leitura de jornais e livros brasileiros, posso assegurar que ele é praticamente o único método admitido nos debates públicos neste país.

Querem um exemplo? A palavra “iluminismo” designa idéias de liberdade e razão, opostas ao dogmatismo, à fé cega e às tiranias. “Inquisição”, por sua vez, quer dizer um tribunal que mandava os heréticos para a fogueira. Logo – segundo o método acima referido –, se estivermos falando de tortura, podemos concluir razoavelmente que a Inquisição fez uso regular desse expediente e que a difusão do Iluminismo extirpou essa prática hedionda do rol das atividades humanas decentes.

Essa crença é hoje em dia um “topos”, um lugar-comum, não apenas tido por verdade auto-evidente, mas usado como premissa capaz de transmitir sua veracidade a quaisquer conclusões que se tirem dele.

No entanto, se em vez de se contentar com palavras você decidir investigar os fatos em detalhe, indo além do que se pode encontrar em livros de divulgação escritos pelo método brasileiro de raciocinar, descobrirá que os inquisidores foram as primeiras autoridades a enxergar na tortura algo de imoral e, sem poder aboli-la por completo, as primeiras a limitar severamente a sua prática, vetando a efusão de sangue e proibindo que o mesmo prisioneiro fosse torturado mais de uma vez. Isso foi um dos passos mais decisivos na evolução dos direitos humanos.

Os iluministas, por seu lado, consagraram a noção do Estado – em vez da religião ou da cultura – como autoridade moral suprema, portanto do governante como “guia dos povos”. Com isso, prepararam o terreno não só para o advento do Terror revolucionário na França, mas para a emergência dos totalitarismos modernos que reinstauraram a prática ilimitada da tortura. Essa realidade histórica é totalmente escamoteada quando, com a maior inocência, o sujeito raciocina com base no valor nominal dos termos.

Igualmente inepto – só para dar outro exemplo – é o raciocínio que atenua as culpas de terroristas sob a alegação de que são minorias em luta clandestina contra um governo tirânico, ao mesmo tempo que condena com veemência o “terrorismo de Estado”. Nominalmente, as duas coisas são inversas, mas de fato o terrorismo de Estado só veio a existir por obra de grupos clandestinos que, subindo ao poder, conservaram, agora como técnicas de governo, suas antigas práticas de luta – havendo portanto entre o terrorismo clandestino e o estatal uma relação análoga à de ovo e galinha, entre os quais não há oposição lógica mas apenas diferenças de fases na evolução temporal de uma só e mesma criatura.

O terrorista avulso de hoje é o terrorista estatal de amanhã, como o foram Lênin e Hitler, Mao e Fidel. E há sempre um intervalo misto, como no caso das Farc, que fazem terrorismo avulso nas regiões submetidas ao governo central, terrorismo estatal nas áreas sob seu próprio domínio.

Tomar as palavras como coisas é introduzir, em debates sérios, um elemento de magia hipnótica. Feito com inocência, é prova de burrice e incultura. Feito de propósito, é esplêndida vigarice.

Lógica da canalhice

Olavo de Carvalho

O Globo, 31 de Março de 2001

Quando alguém me diz que o comunismo é coisa do passado, que advertir contra ele é açoitar um cavalo morto, tenho às vezes uma certa suspeita de estar conversando com um canalha. Não que o sujeito o seja necessariamente. Mas, a rigor, somente um canalha descontaria 1,2 bilhão de pessoas que ainda vivem sob a tirania comunista como uma quantidade negligenciável, um infinitesimal no infinito. Somente um canalha desprezaria como irrelevantes os 40 fuzilamentos mensais de mulheres chinesas (e seus respectivos médicos) que se recusam a praticar aborto. Somente um canalha se persuadiria de que, só porque meia dúzia de firmas americanas estão ganhando dinheiro em Pequim (como se já não tivessem faturado outro tanto na Rússia de Lenin), o comunismo se tornou inofensivo como um rinoceronte de pano. Somente um canalha fingiria ignorar que, após a dissolução da URSS, nenhum torcionário da KGB foi demitido, muito menos punido, e que a maior máquina de espionagem, polícia política, terror estatal e tortura institucionalizada que já existiu no universo, com um orçamento superior ao de todos os serviços secretos ocidentais somados, continua funcionando como se nada tivesse acontecido.

Somente um canalha induziria o povo a ignorar essas coisas, para que, quando a revolução que se prepara no Brasil com dinheiro do narcotráfico tomar o poder, ninguém perceba estar revivendo a tragédia da Rússia, da China e de Cuba.

Pois não é preciso ir para o exterior, basta olhar para o Brasil mesmo para ver a força monstruosa que o movimento comunista, seja lá com que nome for – pois ao longo da história ele mudou de nome muitas vezes, ao sabor de seus interesses do momento – vem adquirindo a cada dia que passa. Só para dar um exemplo, a difusão de idéias comunistas nas escolas, da qual muitos brasileiros ainda nem tomaram consciência, e que outros insistem em ignorar propositadamente (entre eles o ministro da Educação), já passou da fase de simples “doutrinação” para a do direto e franco estupro das consciências. Em milhares de escolas oficiais, professores pagos com dinheiro público usam de sua influência e de seu poder não apenas para instaurar o culto de líderes genocidas e o mito da democracia socialista, mas para intimidar e punir qualquer criança que não consinta em repetir seu discurso magistral. A mais leve divergência, às vezes a simples dúvida, sujeitam o aluno ao constrangimento diante dos colegas, incutindo nele o temor pelo futuro da sua carreira escolar e profissional. Meus próprios filhos passaram por isso, e recebo mensalmente dezenas de e-mails com relatos de situações similares. Chamar a isso “propaganda”, “doutrinação”, é brandura terminológica de quem não quer ver a gravidade do que se passa. E o que se passa é que o terrorismo psicológico já impôs seu domínio sobre os corações infantis, preparando-os para aceitar, como coisa normal, inevitável e até boa, um governo de assassinos e psicopatas como aquele que ainda vigora em Cuba e que já vigora nas regiões sob o domínio das Farc.

Em face disso, os brasileiros reagem… encobrindo fatos com palavras, amortecendo a consciência do perigo mediante chavões soporíferos, exibindo aquele ar de calma fingida que trai o medo, o pavor de encarar a realidade. Direi que isso é ingenuidade? Não. A ingenuidade não tem a astúcia verbal requerida para tamanho auto-engano.

Um leitor, todo empombado de falsa ciência, me escreve que o comunismo não foi mais violento do que as guerras de religião, o Santo Ofício, a queima de bruxas ou a Noite de S. Bartolomeu. Com aquele ar sabe-tudo de professorzinho de ginásio, cita o horror de Montaigne ante a crueldade das guerras civis de seu tempo e conclui que “a violência sempre esteve presente nas diferentes fases da história”. Nada como uma frase-feita para um brasileiro brilhar falando do que não sabe. Nada como um belo chavão para igualar, numa pasta verbal uniforme, as mais prodigiosas diferenças. A Inquisição espanhola, o tribunal mais cruel de que se teve notícia antes do século XX, matou 20 mil pessoas ao longo de quatro séculos. O governo leninista completou cifra idêntica em poucas semanas. Ademais, quase todos os exemplos de crueldade em massa observados ao longo da história se deram por ocasião de guerras, seja entre estados, tribos ou grupos religiosos. A repressão soviética foi o primeiro caso de violência estatal permanente contra cidadãos desarmados, em tempo de paz. O exemplo proliferou. Quando os alemães começaram a enviar judeus a Auschwitz, 20 milhões de russos já tinham sido mortos pelo governo soviético. Mesmo ao término da sua obra macabra, em 1945, o nazismo, com toda a máquina genocida montada para esse fim, não tinha conseguido igualar a produtividade da indústria soviética da morte.

Sob qualquer aspecto que se examine, o socialismo não é de maneira alguma uma idéia decente, que se possa discutir tranqüilamente como alternativa viável para um país, ou que se possa, sem crime de pedofilia intelectual, incutir em crianças nas escolas. É uma doutrina hedionda, macabra, nem um pouco melhor que a ideologia nazista, e que, para cúmulo de cinismo, ainda ousa falar grosso, em nome da moral, quando condena os excessos e violências, incomparavelmente menores, que seus adversários cometeram no afã de deter sua marcha homicida de devoradora de povos e continentes.

Tão logo aceitamos a lógica infernal da sua propaganda, obscurecemos nossa inteligência, perdemos o senso da verdade e o senso das proporções. Perdemos até o senso do antes e do depois. Incutem-nos, por exemplo, a noção de que a guerrilha brasileira foi a única saída que lhes foi deixada pelo governo repressor que, em 31 de março de 1964, fechou todas as portas à oposição legal. Mas como pode ter sido isso, se a guerrilha começou em 1961, sempre dirigida e financiada desde Cuba? Dizem-nos que a “Operação Condor” foi uma conspiração internacional entre ditaduras, para sufocar movimentos pacíficos e democráticos. Mas como pode ter sido isso, se a tal operação só surgiu tardiamente, em resposta ao movimento armado tricontinental, dirigido desde Havana e financiado com dinheiro soviético? Mediante as lições dos mestres socialistas, desaprendemos até o senso instintivo da ordem temporal dos fatos.

Acreditar nessa gente, ainda que por breves instantes, é desmantelar o próprio cérebro, é destruir em nossas almas a capacidade para as distinções mais elementares e auto-evidentes. Por isso já não tenho mais paciência com pessoas que consentem que seus filhos sejam submetidos a esse tipo de estupidificação. Por um tempo, imaginei que fossem apenas idiotas, covardes ou preguiçosos. Mas a idiotice, a covardia e a preguiça têm limites: ultrapassado um certo ponto, transformam-se na modalidade mais requintada e sutil de canalhice.

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