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Um grupo de psicóticos

Olavo de Carvalho

6 de agosto de 2001

          Nada mais fácil do que livrar-se de um debate chamando o interlocutor de louco. Não me lembro de ter jamais recorrido a esse subterfúgio, que, bem ao contrário, foi muito usado contra mim por pessoas que nada tinham a opor aos meus argumentos. Mas igualmente fácil e leviano seria obrigar um homem a submeter-se a qualquer cobrança despropositada de um louco, sob a alegação de que chamar o louco de louco seria expediente indigno de um debatedor honesto.

          A diferença entre as duas situações é que na primeira o sujeito trata de se desviar rapidamente da conversa mediante uma desculpa de ocasião, enquanto a segunda implica o exame criterioso da psicologia do adversário e a prova de que qualquer conversa racional com ele é impossível. Esta é, precisamente, a situação em que me encontro diante das acusações que me move o sr. Orlando Fedeli.

          Que ele é maluco, qualquer pessoa com um pouco de experiência da vida percebe a um primeiro exame. Mas isso não me pareceu razão suficiente para lhe recusar uma resposta, pois há graus e graus de loucura e não supus que a dele fosse tanta que inviabilizasse in limine qualquer possibilidade de diálogo. Foi só aos poucos que me dei conta da extensão da sua patologia, chegando por fim à conclusão de que continuar debatendo com ele seria fazer-me de palhaço.

          O sr. Fedeli, de fato, não é um debatedor como os outros. Para ele, alguém discordar de suas opiniões não é simples matéria de divergência intelectual, mas um pecado intolerável – e não apenas intolerável moralmente, mas socialmente: algo, portanto, que não apenas se deve condenar em sentimentos e palavras, mas que deve ser proibido e reprimido pela autoridade civil. Ele próprio o declara, com extraordinária candura, ao afirmar que, no seu entender, a liberdade de consciência é “uma monstruosidade”.

          Ao investir contra um antagonista, ele não o faz portanto na condição de simples debatedor, mas na de autoridade judicial não reconhecida pelo mundo mau. Daí o estilo policial e tribunalício da sua argumentação, na qual as expressões “réu”, “culpado”, “acusado” e “confissão” retornam a cada instante, num refrão obsessivo destinado a transportar o leitor, da situação real, a uma situação imaginária de processo canônico, um ambiente aterrorizante onde discordar da palavra do juiz seria, mais que uma insolência, um risco.

          O uso desse estilo numa sociedade livre e democrática, onde mesmo a autoridade religiosa constituída evita impor suas sentenças acima dos direitos assegurados pela legislação civil, já denota, por si, uma personalidade anormal. Mas a suspeita de patologia torna-se uma certeza quando se nota que, em vez de juiz de algum tribunal canônico, o homem que assim fala é apenas um leigo, um cidadão comum, sem qualquer autoridade religiosa e, no máximo, chefe de uma seitinha miserável cuja existência a Igreja ignora solenemente — um juiz de fantasia cujo veredicto, por terrificante que pareça, não será levado a efeito senão no tribunal da sua imaginação.

          Que ele possa pensar que seu esse tribunal é o próprio Juízo Final, e que Deus em pessoa condenará no eterno o que Orlando Fedeli condene neste mundo, é um direito que eu seria o último a lhe negar, persuadido que estou de que o princípio da liberdade de consciência para os homens normais implica, como corolário incontornável, a liberdade de inconsciência para os loucos, os bêbados e os menores de idade.

          Mas tudo isso ainda não me dissuadia de debater com o sr. Fedeli, pois o diagnóstico de insanidade não me permitia apostar, a priori, que se tratasse de quadro clínico irreversível.

          Foi só o exame substantivo da sua argumentação que me demonstrou a total inviabilidade de disputar com ele no terreno racional. A exposição que se segue mostrará aos leitores que, ao declarar louco o sr. Fedeli, não lhe dirijo um insulto, nem muito menos apelo a uma desculpa infamante para me livrar de um superpentelho – por mais justo que fosse esse apelo nas presentes circunstâncias –, mas faço uma simples constatação de fato.

***

          O sr. Fedeli publica em sua homepage os depoimentos de Felipe Coelho com o quem insinuasse que a condição de ex-aluno meu dá a seu autor algum respaldo para falar a meu respeito com isenção. Vi de fato essa criatura algumas vezes no meu curso, mas nunca cheguei sequer a conversar com ela, pois parecia de uma timidez mórbida. Felipe alega que só se ligou à Associação Montfort depois de freqüentar minhas aulas; não tenho razão para duvidar do que diz, mas o fato é que, nelas, estava sempre rodeado de um certo grupo de colegas dos quais alguns já me falavam da Associação Montfort, sem dizer que eram seus membros, no tempo em que o Seminário de Filosofia funcionava no Clube Nacional, três ou quatro anos atrás. Nessa época, uma amiga minha, cujo nome não vou citar por enquanto porque não lhe pedi autorização, foi à Associação  Montfort e lá encontrou, para seu espanto, todos esses meninos. Também é patente que, logo ao começar este debate, o sr. Fedeli, sacando da gaveta um maço de textos meus de vinte anos atrás, dos quais nem eu próprio me lembrava nem tinha cópias, provou que já vinha rastreando minha vida desde muito antes, o que dificilmente poderia fazer sem a ajuda de um devoto círculo de militantes. O caso configura nitidamente um longo trabalho de penetração, de cerco e de bisbilhotice.

          Mas isso, no fim das contas, não vem ao caso. Sempre conheci mal essas pessoas e nunca tive interesse em sondar suas vidas. Foi só depois de eclodido o presente debate que alguns alunos vieram me contar o que sabiam delas.

          Esse menino, Felipe Coelho, por exemplo, encontrou na Associação Montfort um grupo religioso feito sob medida para a sua forma mentis, a de um rapaz inseguro e neurótico ansioso de apoiar-se numa autoridade, sacrificando no altar dela a sua inteligência e a sua dignidade pessoal. O sr. Orlando Fedeli atende perfeitamente a essa demanda, pois ele é, como os nazistas e comunistas, se bem que sob pretextos diferentes, um apóstolo da extinção da liberdade de consciência – a tal “monstruosidade”.

          A abolição dessa monstruosidade importaria na conversão forçada de judeus, muçulmanos, protestantes e outros infiéis, ou pelo menos na proibição de seus cultos respectivos, à imagem do que já se fez em outras épocas, quando alguém ser o sr. Orlando Fedeli era considerado normal.

          Compreende-se que, na atmosfera dessa doutrina, o rapaz floresça velozmente em dons que lhe parecem ser do Espírito Santo, mas que são apenas os do espírito do sr. Fedeli.

          Um desses dons é o de encadear, com rigorosa lógica dedutiva, percepções errôneas da realidade e interpretações falseadas dos textos que lê.

          No curso de uma feroz investida polêmica, ante uma platéia mais ou menos insegura e desinformada, isso torna as coisas extremamente difíceis para o interlocutor, pois o antagonismo que o separa do atacante não é de ordem discursiva, e sim intuitiva, estando cada um situado num plano de realidade diferente, onde os mesmos nomes podem designar coisas inteiramente diversas.

          Essa diferença reflete-se, antes de tudo, na leitura muito especial, muito peculiar que o sr. Fedeli e seu pupilo fazem daquilo que lêem, especialmente quando lêem com a temerosa expectativa de encontrar ali algum indício da nefanda liberdade religiosa.

Daí, por exemplo, a tendência a tirar as mais ousadas generalizações, com ares de certeza absoluta, a partir de indícios minúsculos e isolados. Fazendo-se de islamólogo após uma breve leitura de Henry Corbin, o sr. Orlando Fedeli pontifica, por exemplo: “O esoterismo islâmico apresenta duas correntes principais: o shiismo e o ismaelismo”. (2)

Isto é de uma estupidez fora do comum.

          O esoterismo islâmico é constituído essencialmente pelas ordens sufis (turuq, plural de taríqat, “via”), que são centenas e que na sua esmagadora maioria seguem a shariat (lei comum) do mundo sunnita. A distinção entre sunnitas e shiitas nada tem a ver com a de exoterismo e esoterismo, correspondendo simplesmente a duas modalidades da religião exotérica, mais ou menos como catolicismo e protestantismo.

          Todo crente muçulmano sabe disso, e o sr. Fedeli poderia ter obtido essa informação em qualquer mesquita ou centro islâmico do mundo. Provavelmente, como a repugnância a toda contaminação gnóstica o impede de aproximar-se desses meios, ele prefere estudar o assunto à distância, confiando-se à autoridade de um único erudito, Henry Corbin, ignorando que o autor de En Islam Iranien é, ele próprio, um esoterista islâmico, portanto alguém do qual uma alma católica virginal como o sr. Fedeli deveria guardar também asséptica distância.

          O ismaelismo é apenas uma subdivisão do shiismo, e constitui uma variedade esotérica menor, limitada ao mundo shiita, em oposição à linha mestra do esoterismo representada pelas ordens sufis do mundo sunnita.

          A confusão grosseira do sr. Fedeli chega ao ponto de, ao comentar as interpretações do Corão, falar de “exegese shiita ou soufi”, como se fossem uma só e mesma coisa.

          Garanto-lhes que  nunca, em décadas de estudo de assuntos islâmicos, vi alguém ousar falar em público do assunto, com ares de autoridade magistral e com base num tal desconhecimento da matéria. A desproporção entre a parcimônia dos meios e o tom de completa autoconfiança com que o sr. Fedeli entra na discussão daquilo que ignora é coisa um tanto deprimente de se ver, pois revela menos uma vigarice consciente do que algum tipo de anomalia psicológica.

          Essa anomalia se torna ainda mais visível quando, linhas adiante, o próprio sr. Fedeli afirma, aliás com exatidão, que os ismaelitas, perseguidos pela autoridade religiosa, se esconderam dentro das ordens sufis. Não se compreende como poderiam ou por que haveriam de fazê-lo se fossem eles mesmos representantes do sufismo, ou se este, ao contrário do ismaelismo, não fosse um esoterismo aceito pelas autoridades ortodoxas sunnitas, portanto algo bem distante do shiismo e mais ainda do ismaelismo. O sr. Fedeli, obviamente, não compreende o que ele próprio escreve.

          Mais deplorável ainda é o completo descompasso, que se observa no discurso do sr. Fedeli, entre os conceitos gerais e os fatos encarregados de exemplificá-los. Ele mal acaba de escrever que a gnose se distingue pelo seu completo intuicionismo anti-racional, e logo no parágrafo seguinte já dá como exemplos de gnósticos Leibniz e Hegel, racionalistas por antonomásia, e aliás o segundo deles inimigo professo de todo intuicionismo. (3) Isso não pode ser um simples “erro de lógica”. É, positivamente, uma desconexão entre percepção e linguagem, uma carência de integração mental, o sintoma de uma fragmentação da personalidade.

          Multiplicada pelo número impressionante de citações coletadas em noites e noites de trabalho insano, a prática desse curioso modus interpretandi já se torna mais que um sintoma isolado: é um quadro clínico completo.

          Não é de espantar que, nesse quadro de auto-incompreensão psicótica, raciocínios formalmente corretos abriguem, da premissa às conseqüências, as mais prodigiosas confusões entre planos de realidade, tornando a argumentação do sr. Fedeli uma massa compacta de sentidos superpostos e fundidos, que para ser discutida ou refutada no plano lógico teria de ser primeiro analisada psicologicamente e decomposta em seus elementos heterogêneos e incompatíveis. Como explicar, por exemplo, que, argumentando pela continuidade historicamente comprovável da gnose, ele, um historiador de ofício, a faça remontar à Serpente do Paraíso? (4) Quereria isso dizer que a ciência histórica tem meios de rastrear os fatos até à criação do mundo? Ou que, ao contrário, a história é ancilla theologiae e que aquilo que valha como artigo de fé deve ser aceito também como prova de veracidade histórica acima de qualquer protesto possível da metodologia historiográfica? Tais são os dois únicos sentidos logicamente possíveis desse conceito. Ambas essas afirmativas, além de ser absurdas em si mesmas, se contradizem uma à outra, mas, ao mesmo tempo, ambas estão contidas de maneira inseparável na tese de que a gnose remonta historicamente – e não só teologicamente, ou simbolicamente – à Serpente do Paraíso. Que é que isto nos mostra, acima de qualquer possibilidade de dúvida, senão que a afirmativa não tem nenhum sentido lógico, mas apenas psicológico, como expressão irracional de um desejo intenso de fazer per fas et per nefas a História dizer o mesmo que a Teologia?

          Idêntico fenômeno observa-se no uso que o sr. Fedeli e seu pupilo fazem de uma das expressões que mais obsessivamente reaparecem nos seus escritos: a tal “salvação pelo conhecimento”. A gnose antiga acreditava, de fato, num conhecimento intelectivo da essência de Deus (mesmo assim, com certas reservas), opondo-se nisto à cognitio fidei que era, segundo a Igreja, o único meio de acesso ao mistério divino. Por algum motivo insondável, Fedeli e seu pequeno clone espiritual cismaram que eu acreditava nessa “salvação pelo conhecimento”, cuja impossibilidade absoluta, no entanto, eu mesmo havia demonstrado nas aulas sobre “Consciência e estranhamento”, continuação de “Descartes e a psicologia da dúvida”, meses antes do início desta polêmica. (5) Que se esforçassem tanto para me atribuir uma doutrina tão contrária ao conteúdo expresso das minhas aulas já era, por si, coisa esquisita. Para isso chegavam ao cúmulo de interpretar como sinônima de “salvação pelo conhecimento”, no sentido gnóstico, a expressão “poder salvífico da devoção intelectual”, que manifestamente significa coisa totalmente diversa, designando apenas a devoção a Deus prestada através do trabalho intelectual, por exemplo na ascese beneditina. Mais esquisito ainda, porém, é que, na ânsia de provar que escamoteei propositadamente alguma coisa no resumo das características essenciais e constantes da gnose, lá vem de novo o jovem Coelho, na sua última cartinha, com a “salvação pelo conhecimento”. Mas é óbvio e patente que essa doutrina não poderia estar presente nas formas modernas e imanentistas da gnose, para as quais a idéia mesma de “salvação” é inconcebível. O próprio Coelho, dois parágrafos depois, insiste na distinção entre gnose transcendentalista e imanentista, (6) sem perceber que a existência mesma desta distinção exclui a possibilidade de que a “salvação pelo conhecimento” esteja presente em toda a gnose, mas tão somente, é claro, na gnose antiga e transcendentalista. Ora, no momento mesmo em que afirma a continuidade essencial de um fenômeno qualquer ao longo dos tempos, nenhum cérebro normal apontará, entre as características que definem essa essência, um traço que não pode estar presente em todas as suas manifestações mas só em algumas delas, localizadas num tempo determinado. Como compreender, portanto, o pensamento do jovem Coelho? Ele quis dizer que no fundo o marxismo ou o positivismo são transcendentalistas e visam à salvação da alma pelo conhecimento como os gnósticos antigos? Ou que, ao contrário, a continuidade da gnose ao longos dos tempos é irrelevante e só interessam as características da gnose antiga? Tal como no exemplo anterior, a expressão verbal aparentemente lógica abriga dois sentidos que, absurdos em si mesmos, se contradizem e se unem inseparavelmente no corpo de uma mesma idéia, caracterizando uma forma inconfundivelmente delirante de pensar e de escrever. Novamente, a confusão mental é tão flagrante que não pode ser explicada como simples “erro de lógica”, mas acusa decisivamente uma falha de percepção daquilo que se escreve, no momento mesmo em que se escreve. Essa falha torna absolutamente ininteligível o pensamento do jovem Coelho, que o interlocutor teria de “interpretar” psicologicamente antes de poder discutir logicamente.

          Tantos são os lapsos desse tipo na produção escrita de Fedeli & Coelho ao longo desta polêmica, que para refutar ou provar seus argumentos seria preciso primeiro peneirar suas palavras, linha por linha, para depurá-las desses lapsos e isolar, no meio da massa bruta de confusões e superposições de sentido, algum sentido logicamente distinto, exatamente como, numa psicoterapia, o analista busca um fundo de lógica por trás da massa compacta de símbolos e visões delirantes do paciente.

          O aglomerado imponente de citações e remissões não faz senão tornar ainda mais invisível, para os autores, o caráter alucinatório do que escrevem. O exemplo mais recente encontra-se na última cartinha do jovem Coelho, na qual, para provar que o conceito de gnose de Eric Voegelin coincide em gênero, número e grau com a definição dogmática de heresia gnóstica, ele cisca uma definição no glossário de Eugene Webb e a exibe como troféu. (7) Ora, desde logo um mínimo de prudência e a simples consciência da situação de discurso recomendariam ao menino não confiar-se a uma fonte tão notoriamente de segunda mão ao discutir com um sujeito que acabava de ser acusado pelo sr. Fedeli de ciscar definições “em algum site da internet” em vez de buscá-la em fontes confiáveis (o sr. Fedeli referia-se às quatro características da gnose antiga, sem saber que eu as havia retirado da Enciclopédia Routledge). Em segundo lugar, o próprio Webb, no seu site, avisa que é um amador bem intencionado e não um intérprete autorizado de Voegelin. Em terceiro lugar, um conceito qualquer, numa obra filosófica extensa, nunca se pode conhecer pelo seu simples enunciado sintético (muito menos redigido por um terceiro), mas requer o exame das aplicações que lhe dá o autor, pois só nestas se revela o sentido efetivo que ele tem no conjunto do argumento. Ora, na sua aplicação constante e sistemática ao longo dos 33 volumes de Collected Works, o conceito de “gnóstico”, em Voegelin, não se opõe a “católico”, mas a “filósofo”, uma categoria na qual ele inclui, além dele próprio, é claro, vários pensadores que, na perspectiva fedélica, são inconfundivelmente gnósticos, como Platão e Schelling. Para piorar as coisas, mais adiante o menino lança uma suspeita de gnosticismo contra o próprio Voegelin, o que, confrontado com a afirmativa de que sua definição de gnose é idêntica à definição dogmática de heresia gnóstica, resulta em declarar que o próprio Voegelin se acusa formalmente de herético. A incompreensão da leitura alcança aí o cume de uma sublimidade quase indizível.

          Igualmente reveladora de falta de percepção da realidade é a alegação – feita de boa fé, segundo parece – de que as transcrições não autorizadas de minhas aulas, cuja citação pelo sr. Fedeli impugnei como expediente desonesto, são documentos que podem ser citados à vontade porque foram encontrados na minha própria homepage, isto é, no Forum Sapientia que é uma subdivisão dela. (8) Ora, minha homepage tem um editor, que sou eu. O Forum Sapientia tem quinhentos e tantos, que são os participantes da discussão, que ali despejam o que bem entendem, sem ser fiscalizados ou censurados (exceto quando alguém me avisa de algum abuso em particular) e sem que eu tenha aliás a mínima condição de acompanhar simultaneamente todos os debates. Qual será, pois, o sentido da alegação de Felipe Coelho? Pretende ele dizer que o que quer que ali alguém descarregue sem minha autorização e até sem meu conhecimento se torna automaticamente publicação autorizada por mim? Ou que, ao contrário, a falta de autorização num caso justifica o uso não-autorizado no outro? É, de novo, o mesmo esquema delirante: duas afirmações absurdas em si mesmas e mutuamente contraditórias, que aparecem sintetizadas inseparavelmente num único pensamento, de aparência lógica impecável.

          E o mais extraordinário é que, após expor assim aos olhos do público o estado deplorável da sua inteligência, o menino cante vitória, gabando-se de ter-me feito críticas “devastadoras”, e ainda seja fortalecido nessa ilusão grotesca pelo incentivo de um mestre interesseiro e bajulador.

          Considerado enquanto técnica argumentativa, o modo de escrever de Fedeli e Coelho assinala menos uma vontade consciente de iludir do que a expressão desesperada de uma confusão interior que não busca propriamente ludibriar, e sim contaminar a platéia. O ludíbrio consciente pressupõe, no orador, o domínio de seus próprios pensamentos e a compreensão da situação de discurso. Ora, ambos estes requisitos faltam manifestamente no guru e em seu discípulo, caracterizando, não uma vigarice compartilhada, mas a boa-fé insana de um delírio a dois.

          Duas observações, no entanto, devem matizar esse diagnóstico.

          1) Essa loucura não transparece na maioria dos escritos do sr. Fedeli, pela simples razão de que são simples resumos ou adaptações de textos tradicionais da Igreja, onde pouco espaço haveria para alguma efusão pessoal reveladora. De modo geral, é compreensível que um homem de mente perturbada oculte sua patologia por trás do apego a uma doutrina sólida, fixa e facilmente repetível, cuja racionalidade intrínseca, usada como muleta, o dispense de qualquer esforço intelectual mais comprometedor. A vida intelectual do sr. Fedeli, resumindo-se no mais das vezes a simples deduções mecânicas do dogma e a paráfrases de textos lidos, está em geral bem protegida dos riscos de uma luta pelo conhecimento, mas é claro que não os pode evitar por completo, e é no instante que eles aparecem que a ordem aparente da sua vida mental se esboroa ao contato com a complexidade da situação.

          2) A compactação de sentidos contraditórios num discurso formalmente lógico é, malgrado sua loucura intrínseca, um intrumento verbal de grande força persuasiva, precisamente por causa do estado de espírito paradoxal em que deixa seu leitor. Arrastado pela sucessão lógica de uma demonstração cuja estrutura formal independe totalmente do sentido dos conceitos, ele acaba por aceitar as conclusões sem dar-se conta do terreno semântico lodoso e mole em que se assenta o edifício aparentemente estável. O exame lógico dos argumentos nada revelará de anormal. Só a análise semântica e a comparação com a situação de discurso revelarão a loucura por trás do método, mas poucos leitores têm o hábito ou os meios de realizá-las. Nos demais, a superposição de clareza lógica e nebulosidade semântica produzirá um misto de descoberta e confusão, bem apto a mudar num relance todo o seu quadro habitual de referências, a arrebatá-los do mundo real e a despertar neles o sentimento de terem “visto a luz”: a adesão súbita e total das suas almas a uma idéia cujo significado mal vislumbram. É a essa mutação repentina do quadro de percepção e a essa conversão imediata a uma idéia mal compreendida que Flo Conway e Jim Siegelman, no seu estudo sobre a retórica das seitas populares da New Age, dão o nome de snapping. (9)

          Se o sr. Fedeli manejasse esse instrumento com malícia consciente, seria um gênio da erística, como Hegel. Mas o abismo entre o conteúdo de suas argumentações e a situação de discurso mostra-nos que ele não tem nenhum domínio do que faz, que ele é antes uma vítima de sua confusão interior do que um produtor deliberado de confusão na mente alheia. Um raciocínio lógico separado da intuição adequada da realidade (seja da realidade em torno, seja da realidade representada nos conceitos do próprio discurso) é, com efeito, sinal inequívoco de perturbação mental. O ódio mesmo que o sr. Fedeli tem à faculdade intuitiva revela nele um fundo de consciência de sua anomalia e um desejo de mutilar a mente alheia para reduzi-la à sua própria medida pessoal, pois raros tipos humanos realizam tão bem quanto ele a definição de “louco” dada por Chesteston: “o homem que perdeu tudo, menos a razão”.

          Tão distante está o sr. Fedeli da situação real de discurso que ele chega a ostentar como sinais de aprovação da platéia as cartas que lhe são enviadas por pura gozação pelo tal de Fabrício (pseudônimo de um hacker comunista) e por um sr. Francisco Nixexé (o qual não existe e não passa de outro pseudônimo do mesmo cidadão), sem perceber nem de longe que está sendo usado como personagem de piada. (10) Custei um pouco a me dar plena conta da sua completa falta de senso de realidade e creio que de início carreguei demais nas tintas ao atribuir-lhe intenções maliciosas. A malícia, nele, é totalmente inconsciente: ela não provém da sua vontade, mas do demônio que se apossou dos seus pensamentos e os embaralha sem que ele se dê a mínima conta do que se passa. O mesmo acontece com o jovem Coelho.

          Mas é claro que, nessas condições, a perspectiva torta não falseia somente os textos, e sim a realidade mesma em torno. Vistos dessa perspectiva, os fatos mudam de tamanho, de sentido e de importância, adquirindo um novo perfil que os tornaria irreconhecíveis aos protagonistas que os viveram. Assim, por exemplo, um professor que dê cursos há vinte anos, para platéias diferentes, fatalmente terá alunos mais antigos e mais novos, mais próximos e mais distantes, mais íntimos e mais estranhos, e assim por diante. Uns saberão mais que os outros, conhecerão o professor mais de perto que os outros, freqüentarão a sua casa, desfrutarão da intimidade da sua família, enquanto outros só o verão de longe, pelo seu perfil profissional, mal ousando lhe dirigir respeitosamente a palavra. Tudo isso é natural, inevitável e está na ordem das coisas. Observado desde o ângulo do caçador de gnósticos, esse fato banal será transfigurado em uma sociedade secreta, com círculos internos e externos, um discurso exotérico e outro esotérico, graus iniciáticos, ritos de admissão e pactos de lealdade mafiosa.

          É claro que,  num primeiro instante, quem, conhecendo por experiência direta o meio e os personagens, ouça esta segunda descrição, a tomará espontaneamente em sentido figurado, como pura ênfase retórica destinada a realçar as qualidades negativas que o observador atribui ao grupo observado.

          Também eu pensei que fosse isso, e julguei discernir no sr. Fedeli um propósito conscientemente difamatório.

          A um segundo exame, porém, notei que ele acreditava literalmente no que dizia, e que portanto a diferença entre o que eu sabia do meu ambiente e o que o sr. Fedeli ali enxergava não era uma simples diferença de opinião, de julgamento, mas de percepção. O que eu enxergava como minha realidade cotidiana era para ele apenas um véu de banalidade astuciosamente urdido por mim para encobrir a “verdadeira” natureza da minha convivência com meus alunos, que seria a de iniciador e iniciandos, grão-mestre e neófitos no seio de uma organização secreta de tipo gnóstico.

          Ele via realmente as coisas assim, e não havia o mínimo fingimento na sua maneira de expressá-lo. O sr. Fedeli é um difamador, sim, mas não por premeditação: é um difamador espontâneo, é um difamador compulsivo e sem qualquer segunda intenção.

          O mais estranho era que, jamais tendo me visto de perto, jamais tendo freqüentado meus cursos e muito menos minha casa, e sabendo, em suma, muito pouco da minha vida, ele se permitia pintar em imaginação todo um quadro dela – com tintas sombrias e misteriosas, é claro – e não só acreditar piamente no que inventava mas também expor sua ficção em público e defendê-la num tom de quem tivesse a certeza absoluta do que dizia.

          É verdade que ele próprio reconhecia haver, no quadro, uns detalhes faltantes. Meu aprendizado com Frithof Schuon, o episódio Idries Shah e a premiação do meu livro O Profeta da Paz na Arábia Saudita, em especial, lhe pareciam especialmente enigmáticos. Já contei dezenas de vezes essas histórias a meus alunos e tê-las-ia contado ao sr. Fedeli, com todo o prazer, se ele me fizesse uma visita e colocasse as perguntas educadamente. Mas ele preferiu conjeturar as respostas à distância e, não encontrando nenhuma, resolveu transformar as perguntas em suspeitas e as suspeitas em acusações públicas, despejando-as sobre mim aos borbotões, umas atrás das outras, num tom inconfundivel de interrogatório policial, de modo a dar ao público a impressão de que eu estivesse escondendo alguma coisa. Era uma sucessão de cobranças estapafúrdias e insolentes, formuladas desde o alto da convicção inabalável de que, ante a autoridade implacável de Orlando Fedeli, mesmo o réu mais obstinado acabaria por ceder e confessar o crime.

          Eu olhava tudo aquilo, estupefato. O homem estava mesmo doidinho.

          Um detalhe que me chamou especialmente a atenção foi a alternância histérica de ênfases contrárias em torno de um mesmo ponto. Num momento, ele buscava me pintar com as cores de discípulo e agente da taríqat de F. Schuon. Como eu respondesse que não isso, ele imediatamante tirava a conclusão de que eu estava “renegando o mestre” ou tentando “me limpar”, como se qualquer contato com Schuon fosse motivo de vergonha. Nem de longe lhe passava pela cabeça que entre o discipulado devoto e a abjuração odienta há mil uma gradações intermediárias, nas quais um homem normal geralmente de detém sem chegar aos dois extremos que, para uma alma como a de Orlando Fedeli, são as únicas alternativas concebíveis. Pois se mesmo ao sair do Partido Comunista não  me tornei do dia para a noite seu inimigo, mas tomei mais de uma década para examinar o assunto com toda a serenidade, por que não deveria usar da mesma prudência ao julgar os ensinamentos de Schuon? Mas, para um fanático como o sr. Fedeli, todos temos de ser fanáticos: se não somos fanáticos em favor dele, somos fanáticos contra. Logo, das duas uma: ou eu era fiel discípulo de Schuon, ou me envergonhava de tê-lo sido. Como poderia eu explicar ao maluco que não se tratava nem de uma coisa nem de outra? E ademais: para que me explicar a um idiota insolente?

          Suas perguntas simplesmente não podiam ser respondidas, porque já vinham sempre com preconceitos embutidos e respostas induzidas.

          Na verdade, o molde infamante que ele tentava projetar sobre os episódios de minha vida que não lhe fossem conhecidos era puramente projetivo. Como ele próprio, Orlando Fedeli, oculta e distorce episódios da sua vida para que ninguém o veja como realmente é, compreende-se que imagine que os outros fazem o mesmo, que todo mundo tenha sujeiras, como ele, para varrer para baixo do tapete.

          É público e notório – e foi publicado no livro de Giulio Folena, Escravos do Profeta, que o sr. Fedeli nunca impugnou judicialmente – que o atual guru da Associação Montfort foi membro da TFP, que ali disputou a liderança com o Dr. Plínio Correia de Oliveira e, derrotado, saiu falando horrores do guru e fundou uma TFP do B.

          Não é um curriculum dos mais edificantes. Que remédio, portanto, senão negá-lo?

          “Não sou ‘dissidente da TFP; sou seu denunciador e acusador”, proclama ele na sua polêmica com D. Estêvão Bittencourt. Ora, se um membro de uma organização sai dela atirando e funda uma organização concorrente, que raio de coisa é ele senão um dissidente?

          Fui do grupo de Catolicismo – prossegue ele — , e quando descobri que por trás da TFP havia uma seita secreta com idéias absurdas e cultos delirantes, denunciei a seita a que nunca pertenci, graças a Deus… Sua maneira de me apresentar — mutatis mutandis, isto é, levando em conta as imensas e evidentes diferenças – é injusta como a de alguém que se referisse a Santo Agostinho, para diminuí-lo, como “dissidente do maniqueísmo”. Ele denunciou, condenou e refutou o maniqueísmo; não foi “dissidente” dele.

          Bem, o mutatis mutandis está aí somente pro forma, pois as diferenças entre o caso de Agostinho e o de Fedeli não são só de tamanho, mas de essência. Agostinho não somente se afastou do maniqueísmo mas tornou-se expositor e apóstolo de uma doutrina infinitamente superior, ao passo que Fedeli nunca rejeitou a doutrina explícita da TFP e sim apenas a “seita secreta” que existiria por trás dela. Agostinho rejeitou o maniqueísmo enquanto tal, não um maniqueísmo secreto por trás dele, enquanto o sr. Fedeli só rejeitou a TFP enquanto organização, não enquanto doutrina. Seu dualismo radical, que opõe o catolicismo a todas as demais doutrinas religiosas e até filosóficas como filhas diretas da Serpente do Paraíso, é puro Plínio Correia de Oliveira. (11) Agostinho superou o maniqueísmo e tornou-se seu autêntico e poderoso adversário. O sr. Fedeli nunca foi adversário da TFP: é apenas seu concorrente. Vende doutrina similar, com outra marca.

Mas, novamente, não creio que o sr. Fedeli esteja mentindo de propósito. Ele simplesmente se engana quanto à sua própria vida e, por extensão, quanto à vida alheia: se sua biografia tem um capítulo que convém varrer para baixo do tapete, daí ele conclui que a minha também deve ter. Se a dele tem uma história de abujuração de guru, a minha também deve ter. Tudo isso é tão obviamente projetivo, que nada mais há a dizer a respeito. Da minha parte, nem me entreguei ao guiamento de Schuon com a paixão devota com que o sr. Fedeli se entregou ao Dr. Plínio, nem abjurei do mestre com o ódio retroativo que o sr. Fedeli sente pelo dele. Segui simplesmente o conselho do Apóstolo: “Experimentai de tudo, e ficai com o que é bom”, e, sem pressa de aplaudir ou condenar, vou examinando as coisas que aprendi com Schuon, conservando umas, descartando outras, como aliás, suponho, é o que qualquer homem normal deve fazer em tais circunstâncias.

O deslocamento de perspectiva que pode transfigurar isso na projeção escabrosa de uma auto-imagem feita de lealdades abjuradas e ódios vingativos, embora seja em si uma distorção psicótica, também não deve ser atribuído estritamente a alguma patologia pessoal do sr. Fedeli, visto que essa patologia é compartilhada ao menos pelo mais combativo dos seus peões, Felipe Coelho, e provavelmente por outros militantes do seu grupo. A hipótese de uma psicose grupal me parece muito mais viável, por ser uma patologia quase infalivelmente presente em grupos religiosos minúsculos e isolados, que se sentem cercados por um mundo mau. Ora, o grupo do sr. Fedeli não apenas é microscopicamente minoritário na sociedade em geral, mas ainda é um dos grupos mais isolados e rejeitados no âmbito da própria religião que alega defender, estando colocado, ao mesmo tempo, contra a autoridade dos decretos conciliares e contra todos os outros grupos tradicionalistas e minoritários, como a TFP e a Sociedade de São Pio X (lefevriana), que o têm na conta de um punhado de sociopatas e malfeitores. Se, nessas condições, pretendesse ser apenas um círculo de elite, cultivador de conhecimentos de pouco interesse para a massa popular, o isolamento talvez não lhe pesasse. Mas o grupo do sr. Fedeli é uma entidade de proselitismo religioso, voltada para a conversão das multidões, cuja absoluta indiferença às suas pregações exige dos militantes uma obstinação quase sobre-humana, da qual só os santos e os loucos são capazes, com a ressalva de que em geral os santos a cultivam na solidão e os loucos em grupo.

          Somando-se à angustiante desproporção entre sua audiência ideal e sua audiência real, o isolamento dos montfortianos é ainda agravado pelo fato de que sua ambição vai muito além da conversão da espécie humana: ela sonha com a restauração de um poder temporal do clero, com o advento de um Imperium global capaz de erradicar do mundo a liberdade religiosa e impor o catolicismo a todo o globo terrestre, a ferro e fogo – ambição que vai infinitamente além das pretensões atuais do papado mesmo.

          A tensão inevitável entre a amplitude desmesurada do sonho de poder e a míngua de interesse do meio circundante é o caldo de cultura ideal para a proliferação da psicose grupal.

          Eis os motivos pelos quais não posso satisfazer à demanda de Fedelis e Coelhos por uma resposta pari passu às suas acusações. Está acima da minha capacidade fazer ver a essas pessoas que seus argumentos não podem ser rebatidos ou confirmados no plano racional porque neles o acúmulo de distorções semânticas, de confusões de planos, de falsas interpretações e de simples erros de raciocínio é de tal monta, que requereria, para recolocarem-se as coisas em seus lugares, um livro mais ou menos do tamanho daquele que consagrei a José Américo Motta Pessanha, pois o que havia de errado neste, como neles, não eram simples idéias isoladas, mas uma percepção falsa de toda a realidade. Erros lógicos podem ser impugnados, vigarices podem ser denunciadas. Mas uma psicose não se impugna nem se denuncia: uma psicose analisa-se e trata-se, quando se têm o interesse e os meios de fazê-lo. Ambas essas condições me faltam por completo. Limito-me, pois, a diagnosticar o caso em linhas gerais, dando graças aos céus de que análise e tratamento de um quadro tão complexo e espinhoso não estejam sob a minha responsabilidade.

Notas

(1)    Debate de Orlando Fedeli com D. Estevão Bittencourt, em http://www.montfort.org.

(2)    “Elementos messiânicos na seita ismaelita de Alamut”, id.

(3)    “Gnose: a religião oculta da História”, id.

(4)    Id., ibid.

(5)    O texto será reproduzido em breve nesta homepage.

(6)    Terceira mensagem de Felipe Coelho, em http://www.montfort.org.

(7)    Id.

(8)    Id.

(9)    Flo Conway & Jim Siegelman, Snapping: America’s Epidemic of Sudden Personality Changes, New York, Lippincott, 1982.

(10) Frontispício de http://www.montfort.org.

(11) No seu último escrito, ele procura dar retroativamente uma interpretação pliniesca à doutrina agostiniana das duas cidades. Mas, evidentemente, essa doutrina tem um sentido quando expressa no século V, com os dados civilizacionais de que Agostinho dispunha, outro no século XXI, com a massa de informações hoje disponível sobre todas as religiões e tradições. Tudo o que Agostinho, no seu contexto limitado, visse fora da Igreja Católica, podia ser sem grave contradição atribuído à obra do demônio, mas como fazer o mesmo, hoje, com tudo o que sabemos do hinduísmo e do budismo, do Islam e mesmo de algumas religiões indígenas, cuja riqueza espiritual só não é visível ao sr. Fedeli e que o o Concílio explicitamente reconhecem? A doutrina de Agostinho, atualizada para o estado presente da pesquisa histórica, ficaria certamente bem diferente da forma que, por mera ampliação mecânica, lhe deu o sr. Fedeli.

Educação X Marxismo

Pedro Paulo Rocha
pedroprocha@netpar.com.br

5 de agosto de 2001

            A influência da psicanálise tem sido considerável na educação. A visão psicanalítica foi adotada, inclusive, pelos marxistas, que hoje dominam praticamente toda a área do ensino, não só no país, como em grande parte do mundo ocidental. Eles compreenderam que atingiriam melhor os seus propósitos, ainda que a longo prazo, se “fizessem a cabeça” dos jovens.

            Isto levou grupos que ambicionam subjugar as massas e incutir-lhes suas doutrinas, a ter, como objetivo prioritário, o domínio de todas as instituições através das quais poderia controlar a vida intelectual da sociedade, em particular as escolas, universidades e a mídia. Assim, a educação assumiu um cunho nitidamente político, alvo de todos os grupos sectários ou religiosos.

            Um dos exemplos mais fragrantes se deve ao pedagogo Paulo Freire, que ficou famoso por seus métodos, destinados preferencialmente à alfabetização de adultos, em especial operários e camponeses. Conforme revela o dominicano frei Beto, em pronunciamento por ocasião de sua morte, “a pedagogia que defende tem por fim a conscientização“. (* O Globo, maio/1997) O primordial não seria a alfabetização, mas sim “a formação de uma consciência das relações sociais“, segundo exposto na sua obra “A Pedagogia do Oprimido“, evidentemente ensinada sob a ótica marxista. Ou, como afirmou o padre Júlio Lancelloti, que oficiou a missa de corpo presente: “Paulo Freire nos ensinou que a educação é um ato político“. Poderíamos melhor dizer, que transformaram a educação em um ato político, em que ela é usada para doutrinar politicamente o aluno.

            Com resultado, a impressionante constatação de que, nas décadas de 60 e 70, “não havia quarto de adolescente pequeno burguês, ou de filhinho de papai, que não tivesse na parede o rosto do Guerrilheiro Infeliz – Che Guevara – ao lado dos quatro Beatles“. (* O Globo, 29/9/96) Situação induzida por seus professores, nas salas de aula. Aliás a inexplicável atração que a rebeldia exerce sobre artistas, estudantes e intelectuais, “provocou a maior peregrinação de celebridades à região zapatista, situada em plena selva, no México, e que se tornou a nova Meca da esquerda. Eles vão se confraternizar com o último foco de resistência armada ao neoliberalismo da América Latina“. (* Globo 12/maio/96)

            O mais surpreendente neste contexto de boas intenções, e a exigência destes “intelectuais” de se suprimir todo o tipo de censura, sob a estulta alegação de preservar a liberdade de expressão. A conseqüência mais imediata é a divulgação de técnicas de construção de bombas e atentados biológicos, através da Internet, propiciando a expansão dos atos terroristas que, durante os últimos meses de 1996, passaram a ameaçar até Curitiba e Rio de Janeiro.

            Foi na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro que o ex-terro­rista Gabeira promoveu o “abraço a lagoa”, em defesa da “soberania nacional” e da “reserva de mercado”, e contra os contratos de risco na exploração do petróleo. O deputado Gabeira, que participara do seqüestro do embaixador americano, é o eterno defensor de idéias exóticas, como a liberação da maconha, a oficialização do nudismo e o casamento entre gays. Naquela instituição, durante a década de setenta, foi promovida a maior perseguição universitária aos professores que antagonizavam o marxismo. Ação por mim prevista, em carta dirigida em 1973 ao padre Mac Dowell, então reitor daquela universidade, e em denúncia entitulada “A já não mais velada ameaça marxista”, ambas ignoradas. O que lhe custou, pouco tempo depois, a demissão, por exigência destes grupos, que cobraram o seu afastamento quando, tardiamente, pretendeu conter seus excessos.

            O processo evoluiu “usando uma tática simples: expurgaram os adversários até que eles constituíssem uma minoria e dai por diante passaram a resolver todas as questões pelo ‘voto democrático’, obedecendo altaneiramente a vontade da maioria”. (JB 13/5/79) Iniciaram minando progressivamente as bases, alijando principalmente todos os professores militares, oriundos do IME, que tinham construído o Centro Técnico Científico, concluindo com a demissão daqueles que ocupavam cargos de maior destaque, como os professores Anna Maria Moog e Antônio Paim, do departamento de Filosofia, Aroldo Rodrigues, diretor do departamento de psicologia e Arthur Rios, diretor do departamento de Sociologia, a pretexto de restruturação do ensino. Foram afastados, inclusive, dois professores da área biomédica que tinham sido citados no livro “Brasil Nunca Mais”, como envolvidos em colaboração com a repressão política, um deles o Dr. Rubens Janini, numa condenação sem julgamento e sem direito à defesa. Era a prática do que se poderia chamar de “aplicação unilateral da anistia”, porque, simultaneamente, conhecidos terroristas, envolvidos em assaltos a bancos, seqüestros, assassinatos e guerrilhas, eram recebidos de braços abertos, em cargos de projeção, por todo o país.)

            Este é o grande perigo da ingerência política na educação: impedir que o aluno forme a sua própria consciência, robotizando-o e incutindo-lhe preceitos doutrinários.

            Não foi, portanto, atoa que as Igrejas católica e metodista implantaram uma vasta rede escolar. Esse fator foi muito usado não só pelos regimes totalitários, como foi o caso da Alemanha, onde os nazistas criaram a juventude hitleriana, e na URSS, em que o Partido Comunista controlava a educação com mão de ferro. Mas também o é, disfarçadamente, por todos os grupos que ambicionam o poder. Se os marxistas já haviam entendido isso, desde cedo, e se infiltraram no corpo docente das escolas e universidades, os psicanalistas não ficaram atrás. Intervieram abertamente na educação, procurando introduzir seus conceitos.

            Muitas lideranças terroristas, por exemplo, são constituídas, classicamente, por professores universitários. Yasuo Hayashi, o mais procurado líder da seita Verdade Suprema, de 38 anos, foi Ministro da Ciência e Tecnologia do Japão. Era o responsável pela fabricação do gás sarin que, em 20 de março de 1995, matou 12 pessoas e intoxicou mais de cinco mil, em um atentado no metrô de Tóquio. O famoso terrorista Unabomber, procurado durante muitos anos por ser o responsável por inúmeros atentados nos EUA, era nada mais nada menos que o professor universitário Theodore John Kaczinki. O sanguinário Pal Pot, que assassinou milhões de pessoas no Laos, se formou no famoso Quartier Latin. Foi dos bancos das universidades saíram inúmeros militantes do Tupac Amaru e do Sendero Luminoso, que abraçaram a luta armada, sob inspiração maoista, no Peru.

            O que leva um “intelectual”, com formação superior, a praticar atos terroristas que atingem centenas de vítimas inocentes e encaminhar seus alunos para sendas tortuosas? A única explicação talvez seja que “a atividade intelectual e científica, em geral, estreita a mente, ao invés de alargá-la, por força da crescente especialização dos fatos, conceitos e técnicas. A medida que eles se aprofundam, o seu alcance diminui“.(* Christian de Duve – Poeira Vital)

Extraído do livro “A Psicanálise no Divã”

Cérebros lavados e enxaguados

Percival Puggina
puggina@via-rs.net

5 de agosto de 2001

Sempre que se fala de Cuba surge a idéia de um sistema de ensino universalizado e gratuito. Isso é verdade. Todas as crianças em idade escolar estão em sala de aula, seja no ensino fundamental, seja no ensino médio. Uma percentagem que deve andar na ordem dos 30% (e já foi bem maior do que isso) dos estudantes que concluem o nível secundário, ingressam na universidade, também ela gratuita.

Guardo dúvidas, porém, sobre a qualidade desse ensino. O nível cultural das pessoas com as quais se conversa nas ruas, embora superior ao que se percebe no Brasil, é evidentemente inferior ao que se vê, por exemplo, na Argentina e no Uruguai. E o grau de informação da sociedade, em virtude do absoluto controle do Estado, chega ao nível da incubação. Aliás, para definir Cuba, incubação é uma boa palavra.

Durante minha estada, os dois jornais locais (Granma, do Partido Comunista, e Juventud Rebelde, da juventude comunista) noticiavam em manchete que Fidel prometera colocar um televisor e um computador em cada escola durante o ano de 2002. Ora, um televisor sem videocassete, para assistir os dois canais estatais, é pior que nada, e um computador não é exatamente um laboratório de informática. De fato, conversando com estudantes, isto salta aos olhos: eles não têm a menor idéia sobre o que seja um computador. Que qualidade terá um sistema de ensino contido por tais carências?

Por outro lado, o III Congresso Pioneril (congresso das criancinhas comunistas), cujo encerramento presenciei, me forneceu prova cabal de que a amplitude do sistema educacional é impulsionada pela necessidade de universalizar a manipulação da infância e da juventude para as causas do regime e da revolução. Era de se ver o ardor revolucionário e o conteúdo ideológico que aqueles meninos e meninas com até 10 anos de idade expressavam em discursos cuja veemência e vigor deixariam constrangidos muitos deputados da esquerda local. Cérebros infantis lavados e enxaguados em sala de aula!

Aquilo me assustou. E me assustou mais ainda porque percebo o empenho que hoje se faz no ensino público do Rio Grande do Sul, na mesma direção, e contra o pluralismo, seja através da Constituinte Escolar e dos materiais enviados pela SEC à rede de ensino, seja pela manipulação dos concursos públicos, usados para seleção ideológica dos futuros “trabalhadores em educação”. Nos limites do possível, também aqui se tenta, por vários mecanismos, manipular os corações e as mentes infantis.

Percival Puggina é arquiteto, político, escritor, presidente da Fundação Tarso Dutra de Estudos Políticos e de Administração Pública.

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