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Gilberto Freyre: Ciência social e consciência pessoal

20 de março de 2000

Olavo de Carvalho
Diretor do Seminário de Filosofia
do Centro Universitário da Cidade, Rio de Janeiro

Comunicação apresentada ao
Seminário Internacional “Novo Mundo nos Trópicos”
Centenário do Nascimento de Gilberto Freyre
Fundação Gilberto Freyre, Recife, 24 de março de 2000

Uma das dificuldades que se apresentam na constituição de qualquer ciência é o problema de onde encontrar o seu objeto. Nas ciências naturais, esse objeto está dado em torno e pode ser apreendido pelos sentidos. Mas mesmo essa aparente facilidade é enganosa, primeiro porque os limites entre as espécies de seres da natureza são freqüentemente ambíguos e nebulosos, segundo porque os objetos naturais não vêm com rótulos informando quais as perguntas que devemos fazer a respeito deles; e, quando começamos a fazer estas perguntas, não raro os objetos a que nos referíamos nos respondem que elas não se aplicam propriamente a eles, mas sim a algum outro tipo de objetos adjacentes ou circunvizinhos, ou mesmo a entes que não existem na natureza e que foram apenas inventados por nós mesmos.

Para eludir essa dificuldade, costumamos apegar-nos à unidade das palavras que designam áreas inteiras da realidade dada. Usamos, por exemplo, a palavra “física”, supondo que existe no universo um campo, ou uma faixa, correspondente a objetos que chamamos “físicos”. Mas com um pouco de estudo descobrimos que essa palavra significava uma coisa para Aristóteles, outra para Newton, outra para Planck. Aí não temos alternativa senão perguntar se essas três significações dadas à palavra designam três aspectos percebidos sucessivamente no mesmo objeto ou três objetos completamente diferentes. No primeiro caso, contraímos a obrigação de descobrir qual a unidade ou substância da qual esses três aspectos são as propriedades ou acidentes. E, quando tivermos a felicidade de descobri-lo, teremos inaugurado uma quarta acepção da palavra física, incumbida de designar o estudo científico do objeto unitário cujos aspectos separados foram estudados sucessivamente por Aristóteles, Newton e Planck. Na segunda hipótese, isto é, se descobrimos que o termo escolhido designou historicamente três objetos diversos e independentes, o problema que isto nos coloca é mais espinhoso ainda: trata-se agora de saber se as distinções entre as três ciências que receberam ao longo do tempo o mesmo nome de “física” correspondem a distinções objetivas, isto é, às fronteiras que separam os entes entre si, ou se refletem apenas três distintas direções possíveis da atenção humana, projetada acidentalmente sobre entes, propriedades e acidentes escolhidos a esmo.

Que existem fronteiras entre os entes, que eles não se apresentam fundidos e indistintos numa mixórdia universal, a mais banal experiência o confirma. A obviedade desta constatação pode dar lugar a situações cômicas. Quando o falecido presidente Jânio Quadros, indagado por que bebia, respondeu que bebia porque se tratava de líquido, já que se fosse sólido o comeria, talvez não tivesse a idéia de enunciar um princípio de metodologia científica, mas de fato o fez. O “comer” pode ser uma metáfora do “conhecer”. Se não podemos comer o líquido ou beber o sólido, não podemos conhecer todas as coisas pelos mesmos modos, ou instrumentos. Não podemos conhecer a estrutura de um mineral pela memória afetiva, nem a vida de Napoleão Bonaparte por dedução geométrica. Em última instância, o delineamento do campo de uma ciência aparece quando ela esbarra em fronteiras ontológicas intransponíveis. Edmund Husserl dizia que não pode haver uma geometria dos leões ou uma embriologia dos triângulos — o que faz dele, no mínimo, um precursor do presidente Jânio Quadros.

Mas, na prática científica, raramente chegamos a essas situações limite: uma boa parte das investigações e debates se desenrola numa zona fronteiriça sujeita às mais alucinantes disputas de jurisdição. O problema torna-se ainda mais desesperador porque, uma vez constituído um sistema de distinções entre os campos do saber, por mais provisório que seja, esse sistema se materializa imediatamente numa estrutura administrativa: a divisão dos departamentos numa universidade ou instituto de pesquisa. Aí o conflito de jurisdições entre conceitos lógicos se converte num conflito entre poderes, prestígios e interesses humanos, do qual, para usar o termo mais comedido, direi que é uma confusão dos diabos.

Ora, se essa confusão dos diabos pode instalar-se no seio mesmo da ciência natural, ao ponto de Michel Foucault e Thomas Kuhn não lograrem explicar as mudanças de orientação da imagem física do cosmos de época em época senão como rotações acidentais e em última análise irracionais do eixo das atenções, quanto mais desorientador não deve ser o panorama no campo das ciências ditas humanas, onde o objeto não está dado à percepção sensível mas tem de ser apreendido no curso da nossa participação pessoal na produção e modificação dessa coisa — se é que é coisa — denominada sociedade humana? Nesse campo de conhecimento, jamais chegamos a saber ao certo se o nosso objeto existe ou se ele passou a existir porque dissemos que existe. Um exemplo característico é o conceito de ideologia de classe. As classes economicamente distintas “têm” seus respectivos discursos ideológicos ou passam a tê-los desde o instante em que um intelectual, fundado no conceito de ideologia de classe, ensina a cada uma o que ela deveria dizer em defesa de seus próprios interesse de classe? Outro exemplo é o “inconsciente” freudiano. Cada um de nós “tem” um inconsciente pessoal ou adquire um na hora em que o psicanalista o ensina a assumir como parte de si um amálgama de pensamentos semipensados – pequenas percepções, chamava-as Leibniz – que andam soltas no ambiente familiar, social e físico?

Dos nossos cientistas sociais, nenhum se preocupou mais com essas questões do que Gilberto Freyre. Ora, a elucidação delas é o fundamento mesmo da possibilidade de uma ciência social. Sondar até o fundo essa indistinção de fronteiras, submergir corajosamente nesse “mare magnum” onde todas as correntes se entremesclam, impregnar-se da variedade e da confusão sem perder o ideal de unidade e coerência, eis a única esperança de que as ciências sociais venham a ter um objeto que não seja apenas a projeção de um método previamente escolhido — um preconceito, no sentido mais rigoroso do termo.

Dos nossos cientistas sociais, repito, nenhum levou mais a fundo essa impregnação na natureza plástica e omnímoda do seu objeto, nem mais longe sua disposição de abrir-se a todas as correntes, a todas as hipóteses, a todas as perguntas.

Só com isso ele já se isenta do vício redibitório de pelo menos noventa por cento da produção científica na área de humanas, que é o pendor kantiano de constituir o objeto segundo as exigências do método, em vez de adaptar o método às exigências do objeto. Esse vício torna-se ainda mais grave nos países jovens, cuja elite intelectual, ansiosa de ombrear-se a seus mestres estrangeiros, empenha tanto esforço em dominar os métodos que acaba não lhe sobrando tempo de prestar atenção no objeto. Como por sua vez a opinião dos cientistas tende a ser imitada nos debates públicos, o Brasil que se discute na mídia e no Parlamento acaba se parecendo muito mais com uma alucinação de cientistas sociais do que com o país onde vivemos nossa vida de todos os dias. Um exemplo são as discussões atuais sobre discriminação racial. Lemos na Teoria da Justiça de John Rawls que todos os conceitos constitutivos da idéia de democracia se resumem, em última instância, no conceito de igualdade. Ficamos maravilhados porque isto nos dá um método até mesmo quantitativo para medir o coeficiente de democracia de um país, e a disparidade de renda entre brancos e negros surge como uma prova inequívoca de que no Brasil não existe democracia racial nenhuma. Se, além disso, lemos no prof. Florestan Fernandes que as relações entre raças correspondem à estrutura da dominação de classes (que na verdade é uma doutrina enunciada muito antes por Stálin), aí pouco falta para nos persuadirmos de que a sociedade brasileira é nazista. Então ouvimos o presidente Clinton declarar, no seu discurso em Kosovo, que o Exército americano é um exemplo de integração racial, ficamos profundamente envergonhados de não ser tão democráticos como os americanos e, ato contínuo, sentimos a urgência de copiar o modelo americano de integração racial, onde o Estado surge como o mediador entre grupos raciais separados e socialmente incomunicáveis. Olho para tudo isso e não posso deixar de sentir que estou em outro planeta. Mas o que aconteceria se, em vez de projetarmos sobre o objeto os métodos de Rawls e de Stálin tivéssemos nos perguntados como esse objeto se constituiu e como ele chegou ao nosso conhecimento? Aí veríamos que, entre a abolição da escravatura e os nossos primeiros passos para ingressar no moderno capitalismo industrial, na década de 30, decorreram nada menos de quarenta anos. Ou seja: os escravos libertos tiveram quarenta anos para multiplicar-se sem que a evolução da economia multiplicasse concomitantemente os empregos. Eles não foram expelidos dos empregos por serem pretos. Simplesmente não havia empregos. Que é que isso tem que ver com a discriminação racial? Para não dizer que não tem nada, lanço a seguinte hipótese: nós, racistas brancos, decidimos de propósito não industrializar o Brasil para não dar emprego aos malditos pretos. Fora essa hipótese, é melhor vocês lerem o estudo do prof. Alberto Oliva, Florestan Fernandes: Ciência e Ideologia, e comprovarem que Eric Voegelin tinha toda a razão ao declarar que a perversão ideológica das ciências sociais nem sempre vem de uma falsificação intencional da realidade (coisa de que o prof. Florestan não seria capaz), mas do simples vício kantiano de aderir a um método antes de esperar que o objeto diga a quê veio.

Em comparação com isso, o que faz Gilberto Freyre? Ele se pergunta, antes de tudo, como o objeto veio ao seu conhecimento pessoal. A evocação da infância não é a expressão de um simples pendor autobiográfico, literário. Ela expressa a consciência de que o objeto das ciências sociais não é dado aos sentidos, mas à pessoa concreta, ao eu autoconsciente que ele próprio se autoconstitui à medida que responde a um chamado, obedece ordens, formula pedidos, ocupa um lugar, desempenha funções, etc. O modo de apresentação do objeto das ciências sociais é esse e somente esse. Ele não existe em parte alguma do cosmos se não existe na biografia dos seres humanos. Ora, do objeto das ciências físicas os primeiros sábios não hesitaram em concluir, desde muito cedo, que seu modo de se apresentar revelava algo de sua constituição. Se eles se manifestavam afetando os nossos sentidos, eles podiam ser conhecidos pela ação que exerciam sobre o nosso corpo, distinguindo o que era sua ação própria do que era nossa reação corporal. Quando falamos de “propriedades da luz”, compreendemos que em parte o que sabemos da luz vem de uma reação corporal à estimulação luminosa, mas em parte vem de algo que, não podendo ser explicado por essa simples reação, constitui aquilo que a luz é “nela mesma”. Um cão adormecido, quando estimulado por uma luz forte, desperta imediatamente. Mas nós, além de sermos despertados pela luz, isto é, de sabermos o que a luz faz conosco, sabemos que a luz “é” luminosa. Por isto ela pode ser estudada não apenas no poder estimulante que tem sobre nós, mas em suas “propriedades”, naquilo que lhe é próprio, que é dela. Esta distinção, que o filósofo basco Xavier Zubiri não hesita em definir como o específico da percepção humana, está na base de todo conhecimento científico possível.

Mas para apreender o objeto das ciências humanas não basta, como no caso do objeto natural, distinguir o que é ação dele e o que é resposta minha, e não basta precisamente porque, ao contrário do que acontece com a luz, na qual estão fisicamente separadas as propriedades dela e as reações da minha fisiologia,  minha resposta à sociedade humana faz parte constitutivamente dessa sociedade. Não podendo separá-las, o modo de conhecê-las terá de consistir em articulá-las, o que faz da ciência social, inseparavelmente, um exercício de autoconsciência. Aquele que não sabe por onde e como a sociedade humana veio até ele e o constituiu ao mesmo tempo como membro dela e como individualidade distinta nada sabe da sociedade humana exceto pelos meros nomes que, nos tratados de sociologia, designam os produtos da abstração que outras inteligências operaram sobre ela. Esses nomes podem ser combinados numa infinidade de sentenças, que em sua mera formulação verbal podem ser compreendidas por pessoas que, jamais tendo contado a si mesmas a história de seu próprio ingresso na sociedade humana, não têm a condição de tornar presentes à sua consciência os objetos de que elas falam. Pode-se compreender e até discutir um tratado inteiro de sociologia, psicologia ou ciência política sem quase nada saber da sociedade. A prova inequívoca de que isto acontece se evidencia quando o estudioso não é capaz de apreender sua própria realidade pessoal com a mesma grade de conceitos com que discute sociologia. Isto se verifica da maneira mais eloqüente quando as próprias circunstâncias concretas em que uma teoria é enunciada desmentem o conteúdo que ela afirma. Por isto mesmo, em ciência social, o “argumentum ad hominem” nem sempre é desprezível mas pode ser utilmente integrado no método. Ele permite averiguar quando uma teoria é uma visão que um homem pode projetar sobre o mundo exterior mas na qual não pode ele próprio se instalar como personagem. O exemplo clássico é, de novo, a teoria da ideologia de classe. Se a ideologia tem um vínculo essencial com a classe economicamente definida, a possibilidade de um homem ter a ideologia de uma classe que não a sua deve ser uma exceção, não a regra. Mas como em geral os proletários só aderem à ideologia proletária quando alertados pelos intelectuais e estes aderem a ela sem nenhuma ajuda proletária, o fato mesmo de que tantos intelectuais proclamem um vínculo essencial entre classe e ideologia é um forte indício de que esse vínculo é acidental.

Eis por que tanto da ciência social moderna tem a aparência inconfundível de um fingimento histeriforme, como no caso de um sujeito que saia gritando que não consegue falar.

Para escapar dessa armadilha, Gilberto Freyre vai à fonte mesma onde se constitui o objeto da ciência social, que é a constituição da própria consciência pessoal na sua interação com os demais personagens da trama social. Giambattista Vico assinalava que conhecemos melhor aquilo que nós próprios fazemos do que as coisas que nos chegam prontas. A constituição da própria personalidade é, assim, o único lugar onde podemos encontrar, em estado puro, o objeto da ciência social. É por onde me conheço que conheço a sociedade.

Não por coincidência, no instante mesmo em que Gilberto iniciava sua autobiografia da família patriarcal brasileira, um outro grande cientista social, o alemão Eugen Rosenstock, publicava seu livro “Revoluções Européias”, que se apresentava como o projeto de uma “autobiografia da Europa”. Autobiografia no sentido de que a expansão da consciência histórica de um indivíduo, até abranger uma evolução de alguns milênios, era ali mostrada como resultado e retorno reflexivo dessa mesma evolução. Cada sinal deixado pela evolução passada transparecia em episódios da vida de Eugen Rosenstock, e a evolução pessoal de Eugen Rosenstock era, ao mesmo tempo, uma reconquista do sentido do passado histórico. Em nenhum momento consciência pessoal e consciência histórica se separavam.

Mas, em Rosenstock, a palavra “autobiografia” tinha o sentido de uma chave interpretativa apenas. Em Gilberto ela torna-se instrumento material de investigação: ele parte da sua autobiografia pessoal para as autobiografias dos outros, para os registros de memórias familiares, para as histórias ouvidas de velhas escravas, para as cartas íntimas de políticos e senhores de terras — e, ampliando o horizonte em círculos concêntricos, vai chegando passo à passo à autobiografia do Brasil.

Quando ele diz que descobriu o Brasil, esta frase deve ser compreendida num sentido muito mais profundo e vital do que geralmente se faz. Gilberto descobriu o Brasil na sua própria alma à medida que esta alma se constituía descobrindo o Brasil.

Nenhuma ciência lida com fatos concretos. O concreto não é o fato isolado no desenho da sua essência, mas o fato integrado na multidão de acidentes que o possibilitam. Toda ciência, para apreender seu objeto, deve destacá-lo por abstração, fazendo dele uma essência ideal que possa ser objeto de proposições gerais, as quais em seguida serão verificados por experiências ou constatações também seletivas e abstrativas. Mas o objeto da ciência social demanda um tipo especial de abstração. A essência abstrata ideal que ela visa a obter é nada mais nada menos que a essência abstrata da própria sociedade considerada na sua existência concreta, vivente, total. Por isto a abstração, em ciência social, jamais alcança aquele nível de generalização em que já não é mais preciso o retorno cognitivo à experiência direta e pré-científica. A marca dos grandes cientistas sociais é justamente sua capacidade de ir e vir entre a esfera dos conceitos estabilizados e a realidade social em perpétua mutação e reconstituição; mas esta realidade só é encontrada, de novo e de novo, na experiência humana do próprio homem de ciência no curso de sua vida pessoal concreta. A autobiografia não é apenas o começo da ciência social, é o seu perpétuo recomeço, o cíclico mergulho da abstração científica na fonte da eterna juventude.

Exercício de generalização científica a partir de um exercício de autoconsciência e vice-versa, a ciência social é, assim, um capítulo essencial da prática da sabedoria.

Eis a lição mais alta que Gilberto Freyre, entre os grandes cientistas sociais do mundo, encarnou com a máxima perfeição. Eis por que, mais que um mestre, ele se tornou para nós um modelo, alguém a quem voltaremos sempre não só em busca de ensinamento, mas de inspiração.

Inteligência uspiana

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 16 de março de 2000

Cinco anos atrás, pus em discussão, para escândalo geral, o tema da cumplicidade dos intelectuais de esquerda com o banditismo.

A classe acusada reagiu como de praxe: primeiro, rosnar e latir para afastar o intruso; falhado esse expediente, fazer-se de morta até que o perigo passe; por fim, apossar-se do tema, reciclá-lo e reapresentá-lo como grande novidade.

Na imprensa dita cultural não falta quem anseie por servir de motoboy para esse gênero de mensagens. Destaca-se nisso o suplemento Mais!, que escolheu por nome um advérbio de quantidade para deixar ao leitor a escolha da qualidade subentendida: “mais irrelevante”, “mais bobo”, etc.

Assim, decorridos cinco anos, esse apêndice de papel deu-nos, em breve entrevista com Sérgio Miceli sobre o caso João Moreira Salles, uma amostra do que a classe pensante, pensando e pensando e pondo nisto uma força danada, pôde fazer nesse ínterim com o supramencionado tema.

Perguntado sobre as razões do fascínio que a intelectualidade sente pelos marginais, o acadêmico respondeu: “Discordo dos termos em que a pergunta está formulada.” Dito isto, imergiu em búdico silêncio, deixando ao público o encargo de adivinhar as profundidades do seu pensamento, e ao repórter a humilhação de não saber jamais onde foi que errou. Ensinar por meio do silêncio é a suprema glória do pedagogo. Com essa resposta o professor Miceli provou que está no lugar certo como titular de Sociologia da USP. Ninguém sabe calar com a elegância, a classe, o aplomb de um sociólogo da USP. Não me venham reduzir mesquinhamente o caso a uma aplicação da regra de Wittgenstein: “Onde não se pode falar, deve-se calar.” Wittgenstein jamais atinou com a arte sutil de transformar o silêncio em pito. Eu diria que é autêntica criação uspiana, se não houvesse o precedente daquele pai de família do conto de Arthur de Azevedo, que, indagado pelo filho sobre o que é “plebiscito”, mete o atrevido de castigo no banheiro enquanto vai consultar discretamente o dicionário.

A pergunta seguinte – se “a solidariedade é uma fantasia ou uma nova ação política” – deve ter parecido ao professor Miceli muito bem formulada, pois aí ele não apenas consentiu em falar como ainda o fez no mais puro estilo embromation: “João Moreira Salles procedeu como papel-carbono escolástico, desejoso de recuperar a experiência pelas lentes simbólicas do vivente e receoso de impor seus esquemas de apreensão.” Traduzido em português, quer dizer que João Moreira Salles preferiu deixar que Marcinho VP falasse por si. Mas, dito assim, não tem graça, além de também não constituir resposta nenhuma.

Por fim, indagado sobre “o que difere o malandro do narcotraficante” – pergunta formulada e respondida na gramática peculiar do Mais!, onde “diferir” vale como “diferenciar” –, o professor Miceli, aí sim, mostrou a que veio. “Narcotraficante – protestou – é uma designação de embocadura policial, enquadrando uma pessoa atuante numa esfera de atividade que está longe de permitir tamanha simplificação.” Nada como o rigor uspiano para impugnar os simplismos da linguagem comum. De fato, pode haver coisa mais simplista, mais boba, mais antiintelectual do que chamar um sujeito de narcotraficante só porque ele vende drogas? Chega a ser insultuoso, não é mesmo? Marcinho VP mereceria um termo à altura do vocabulário micélico, que infelizmente o entrevistado não nos forneceu ainda desta vez, tão fundo é o seu desprezo pelos apedeutas para os quais pau é pau e pedra é pedra. O professor Miceli jamais cairia na vulgaridade de ser explícito: para prová-lo, ele também deixou no ar o enigma de saber como um grande espírito tão cioso da precisão de linguagem pode, à imitação do inculto repórter, usar o verbo “diferir” como transitivo direto.

Já me perguntei mil vezes o que é preciso a gente fazer para ficar assim. Já investiguei de tudo: traumas de infância, privação de leituras, ressentimento edípico, alimentação deficiente, doutrinação marxista, uso errôneo das camisinhas. Tudo em vão. A cabeça uspiana é causa sui e não tem explicação no mundo exterior. Tudo o que nela se passa vem dela e nela termina. A “autonomia universitária” foi ali levada às últimas conseqüências: a USP é independente da realidade. Assim, não é de espantar que o tema das relações entre intelectuais e bandidos tenha ficado tão diferente do que era no original, transformando-se de um assunto explosivo numa desconversa evanescente, pedante e supremamente sonsa. Vargas Llosa dizia que a mídia é uma máquina onde entra um homem e sai um hambúrguer. A diferença da USP é que ali o hambúrguer não sai.

Lição de teologia

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 2 de março de 2000

Um amigo meu, cristão devoto e estudioso, preparou uma caprichada tradução dos Comentários de Ricardo de S. Vítor ao Apocalipse . Teólogos e filósofos, Ricardo e seu confrade Hugo, ambos da abadia de S. Vítor na França, escocês o primeiro, saxão o segundo, são daqueles pensadores para os quais o qualificativo de “gênios” é micharia. Não há gênio pessoal que explique os lampejos de pura sabedoria celeste. Os dois escreveram pouco. Mas esse pouco está entre as jóias supremas do tesouro espiritual da Igreja e da Humanidade. A tradução foi enviada a uma editora católica e daí repassada a um teólogo para apreciação. Resposta do teólogo:

“Esta tradução tem a sua utilidade e importância como livro documentário para fins de pesquisa por acadêmicos… Mas, como livro na linha pastoral para o povo simples de hoje, infelizmente perdeu o seu valor… É produto da mentalidade do século 12…”

E por aí vai, inclusive recomendando, em lugar do perempto Ricado de S. Vítor, a obra Como Ler o Apocalipse: Resistir e Denunciar , escrita por um sr. José Bortolini. Não li essa obra, mas, pelo título, atualidade não lhe falta, já que a palavra “denunciar” faz vibrar a corda mais sensível dos corações midiáticos, apelando àquilo que a militância do escândalo considera o primeiro e mais alto dever moral do homem.

Esse parágrafo é cheio de ensinamentos, dos quais, até onde alcançam as minhas luzes, pude apreender os seguintes:

1) A teologia católica, em vez de se desenvolver por acumulação, somando as descobertas de hoje às dos séculos passados como o fazem todas as demais teologias – muçulmana, judaica, vedantina ou budista –, evolui por substituição , colocando o moderno no lugar do antigo, exatamente como se faz na moda indumentária ou nos catálogos das gravadoras de rock .

2) O catolicismo também se distingue das demais religiões porque, enquanto estas dão maior credibilidade às interpretações mais próximas da fonte originária da revelação, os católicos, inspirados pelo espírito do progresso, tanto mais se aprofundam na compreensão da mensagem de Jesus Cristo quanto mais se afastam d’Ele no tempo e mais se esquecem do que os santos disseram d’Ele no século 12, isto para não falar do 11, do 10.º e de outros mais antigos ainda.

3) Por força talvez do avanço tecnológico, o habitante das grandes cidades de hoje tornou-se mais “simples” do que os lavradores, boiadeiros, artesãos e fiandeiras do século 12, todos eles sofisticados e eruditíssimos leitores de Ricardo de S. Vítor.

4) As visões espirituais dos sábios, dos santos e profetas refletem menos a luz da eternidade do que as limitações mentais da sua época histórica, sendo tão datáveis e perecíveis quanto as cotações da bolsa ou os pareceres dos teólogos de aluguel. Por força desse implacável desgaste entrópico, as palavras dos próprios apóstolos, remotas de 12 séculos em relação às de Ricardo de S. Vítor, empalidecem ainda mais do que estas ante a majestosa atualidade evangélica do sr. Bortolini.

Não é maravilhoso que a exegese católica da Bíblia possa ser tão inerme ante a ação desgastante do tempo e, não obstante, estar sempre subindo para aqueles patamares cada vez mais altos de compreensão que, até o momento, culminam na pessoa do sr. Bortolini? Ó santíssima evolução!, proclamaria, em êxtase, o pe. Teilhard. Joãozinho e Maria, atrasados pagãozinhos, precisavam deixar sinais no chão para se orientar na floresta. Os católicos foram abençoados com o dom de tanto mais saber onde estão quanto mais se esquecem do caminho percorrido. Não me perguntem como isso é possível. É um novo mistério da fé, substituído, pela moderna teologia, àqueles admitidos nos tempos bárbaros de Ricardo de S. Vítor. Convém denominá-lo, com a devida unção, “mistério da historicidade”, fazendo a festa de sua comemoração coincidir, no calendário litúrgico, com o natalício de S. Antonio Gramsci, padroeiro desse gênero de coisas.

O que não é mistério de maneira alguma é que uma Igreja que se rebaixa a esse ponto ante o espírito mundano, chegando a desprezar os ensinamentos de seus mestres porque não estão atualizados com a última versão dos Pokemons , corre o risco de terminar como aquela prostituta velha do Livro de Ezequiel , que, já não encontrando clientes que lhe paguem, tem de lhes dar dinheiro para que a possuam.

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