Yearly archive for 2000

O homem que está polemizando o Brasil

Olavo de Carvalho

29 de setembro de 2000

Este editorial e o artigo do prof. Cândido Prunes que o segue foram publicados no Informativo do Instituto Liberal do Rio Grande do Sul, Ano VI, setembro de 2000. O homenageado agradece, profundamente comovido, mas protesta com veemência contra a afirmativa de que é fluente em meia dúzia de idiomas: ele é gago por igual em todos eles. – O. de C.

Olavo de Carvalho não é daqueles pensadores que vivem dependurados na mídia para exercitar a musculatura do seu ego. Praticamente foi intimado pelo amigo e poeta Bruno Tolentino a polemizar o besteirol letrado em voga na imprensa brasileira. Agora que está assinando periodicamente colunas em publicações nacionais (além da mensal no Jornal da Tarde, as semanais em O Globo e na revista Época), parece que o Brasil finalmente começará a reconhecer o seu mais polêmico e culto pensador. Para os seus amigos e admiradores, o site (www.olavodecarvalho.org) que ele mantém atualizado na internet já era uma referência obrigatória. Quem quiser se vacinar contra o festival de asneiras que assola o país em todas as direções, encontra ali várias opções para se imunizar contra as idéias viciadas. Dos debates pontuais (desarmamento da população, educação, os sem-terra, aborto, etc.), passando pelos textos de apresentação da coleção Biblioteca de Filosofia (“A coleção se inspira na idéia de sacudir um pouco a letargia mental dos nossos meios universitários, cujo cardápio de leituras é muito repetitivo”, diz), pelos filmes que mais admira, Olavo de Carvalho é um exemplo cada vez mais raro do que assinala a frase de Nelson Rodrigues: “É um contínuo de si mesmo”. Este é mais um achado de outro amigo e parceiro em polêmicas, o advogado Cândido Prunes, que afirma: “Olavo de Carvalho é plural. Olavo é Olavos de Carvalho”.

De fato, se fosse unicamente para atender o seu maior prazer intelectual, ficaria sossegado no seu canto estudando e exercendo a atividade que mais gosta: ensinar filosofia com bom humor, ou seja, ensinar a quem gosta de pensar sem cartilhas. Mas a nossa alienação cultural, ambientada por modas e paixões, que a impedem de enxergar as coisas mais óbvias, fizeram que ele levantasse a suspeita de que algo no cérebro nacional não ia bem. Daí saltou a sua veia de polemista número um do país.

Em uma entrevista à revista República, em fevereiro deste ano, Olavo de Carvalho rejeita, no entanto, o papel de líder do que quer que seja: “Eu defendo uma idéia não porque ela seja de direita ou de esquerda, mas porque parece coincidir com a realidade do momento. Eu não tenho nenhuma pretensão de chefiar movimento. Se o Brasil quiser um ideólogo, que vá procurar outro”, alerta.

De uma vez por todas longe da universidade, Olavo de Carvalho apenas pretende continuar a escrever seus livros, que já ultrapassam uma dezena, nos quais cinema e filosofia de primeira qualidade podem conviver tão bem para o espanto cada vez maior de seus leitores e alunos. “Não reclamo, não saio por aí gritando que professor deveria ganhar mais. Levo a vida que escolhi, faço o que gosto. Não vejo por que deva responsabilizar os outros por minhas opções. Se eu quisesse ficar rico, deveria ter escolhido outra profissão”.

Todos os Olavos de Carvalho

Cândido Prunes
Doutor em Direito Econômico

A obra e o estilo de Olavo de Carvalho são únicos no cenário intelectual brasileiro. Professor, jornalista, escritor e, principalmente, polemista, ele tem contribuído para o debate de idéias mais do que qualquer pessoa. Na verdade chegamos quase a estar convencidos de que não existe apenas um, mas sim vários Olavos de Carvalho.

Ora o vemos engajado em acirrada polêmica com os hierarcas da Igreja da libertação, esgrimindo argumentos teológicos que revelam um conhecimento profundo da Filosofia cristã. Ora o mesmo Olavo vê-se no meio da discussão sobre reforma agrária, redargüindo com igual habilidade as falácias sobre a qual repousa a retórica dos sem-terra. Ora Olavo vê-se às voltas com juristas e criminalistas, apresentando as verdadeiras raízes da criminalidade brasileira. Ora recebemos a notícia de que é um festejado escritor no mundo árabe, autor de uma interpretação do Alcorão. Num mesmo dia pode-se também ler um profundo ensaio sobre semiótica publicado em alguma revista especializada, ou um artigo de jornal bem humorado outorgando o já consagrado prêmio “Imbecil Coletivo” a alguma figura do universo intelectual brasileiro tido acima do bem e do mal. O mesmo Olavo pode defender com sua pena tanto uma grande causa nacional, como um simples aluno do primeiro ano vítima do patrulhamento ideológico vesgo de alguma reitoria atrabiliária e acovardada pelo rosnar histérico de estudantes de uma gauche saudosista. Poliglota, é fluente do francês ao romeno; do italiano ao árabe, do inglês ao latim. O leitor que for a uma livraria também vai constatar a impressionante produção intelectual dos Olavos de Carvalho: livros de filosofia (Aristóteles em Nova Perspectiva, O Jardim das Aflições, O Futuro do Pensamento Brasileiro); traduções anotadas (Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão, de Schopenhauer); polêmicas notáveis com a intelectualidade tupiniquim (O Imbecil Coletivo, fenômeno editorial brasileiro, com várias edições esgotadas, ignorado pela grande imprensa); organização de coletâneas, apresentando grandes intelectuais que efetivamente contribuíram para o avanço das idéias no Brasil (Ensaios Reunidos de Otto Maria Carpeaux, cujo texto de apresentação é antológico) e por aí segue: uma obra de dimensões únicas.

Mas a atividade mais impressionante dos Olavos de Carvalho não é com a pena muitas vezes (com razão e humor) inclemente com os impostores. Quem já teve a oportunidade de ser seu aluno, pôde descortinar um outro universo filosófico: clareza de pensamento; raciocínio crítico; lógica implacável. Esses atributos tornaram os Olavos de Carvalho inaceitáveis para uma boa parte da mediocridade acadêmica, jornalística e intelectual brasileira. Expondo os erros (quando não o ridículo) de sua forma de pensar, os diversos Olavos de Carvalho são pessoal e atabalhoadamente atacados pelos que vestem a carapuça, ou são simplesmente ignorados por aqueles que poderiam com eles aprender muita coisa.

Como se todas essas virtudes não fossem suficientes, todos os Olavos de Carvalho são singularmente corajosos.

A pergunta que resta

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, São Paulo, 28 de setembro de 2000

Candidato à reeleição, o prefeito de Governador Valadares (MG), Bonifácio Mourão, mandou imprimir panfletos que mostravam a foto de dois homens beijando-se apaixonadamente e, abaixo dela, a inscrição: “É isto o que o PT quer para as nossas famílias. Diga não a essa aberração.”

A Justiça Eleitoral mandou apreender os panfletos, sendo aplaudida pela mídia elegante, a qual aproveitou a ocasião para qualificar o prefeito de neonazista.

Não sou idiota o suficiente para deixar de captar o sentido profundo da mensagem que, com essa decisão, as autoridades eleitorais transmitem ao povo brasileiro. É o seguinte:

1) Se é ilegal um candidato qualificar de aberrante o conúbio homoerótico enquanto tal, muito mais o será chamar de aberrante o projeto de lei que confere a essa modalidade de relação o estatuto de união matrimonial sob a proteção do Estado.

2) Se, em projeto, essa lei já não pode ser criticada como aberrante, muito menos o poderá quando aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente da República.

3) Se é proibido um candidato falar contra os casamentos gays agora que eles ainda não estão na lei, muito mais o será quando estiverem.

4) Assim, embora o uso da palavra “aberração” seja lícito e costumeiro no linguajar de quem condene e deseje revogar alguma lei ou mesmo algum dispositivo constitucional, a lei dos casamentos gays desfruta de um privilégio especialíssimo, que amordaça por precaução os que venham a pensar em criticá-la, antes de aprovada, ou em pedir sua revogação, depois.

5) Se é ilícito um candidato referir-se aos casamentos gays usando um termo bastante comedido que significa apenas “erro” ou “perturbação”, muito mais o será empregar, no mesmo contexto, o termo bem mais pesado “abominação”, que significa coisa asquerosa e digna de repulsa. Como é este último precisamente o termo utilizado no Antigo Testamento para qualificar a conduta homossexual, com mais presteza ainda a Justiça Eleitoral deveria apreender os panfletos se, em vez da declaração pessoal do candidato, estampassem o versículo 24 do capítulo 14 do Terceiro Livro dos Reis. Se é proibido imprimir as opiniões do sr. Mourão, proibidíssimo portanto é publicar, ao menos em tempo de eleições, esse trecho das Sagradas Escrituras.

6) Como a declaração ostentada nos panfletos, de que o PT deseja ver casamentos gays entre os membros de nossas famílias, é uma simples verdade empiricamente comprovável – pois afinal todos os gays provêm de alguma família e o projeto de lei que os une em matrimônio é criação da bancada petista, na pessoa da aliás candidata à Prefeitura de São Paulo, Marta Suplicy -, a proibição da circulação desses papéis deve ser compreendida no preciso sentido de que, contra os gays ou contra o projeto, mesmo a evidência mais patente não pode ser alegada nas campanhas eleitorais, cabendo apenas discutir se poderá sê-lo fora delas.

7) Mas se no caso está proibido não somente alegar fatos, mesmo comprovadamente verdadeiros, mas também emitir opiniões, seja as brandas como a do prefeito Mourão, seja, mais ainda, as duras e contundentes como a do Livro dos Reis, isto é, se contra o homossexualismo e contra o projeto de d. Marta não se pode alegar nem juízos de fato nem juízos de valor, então essa proibição abrange, simplesmente, todas as afirmações e todas as negações.

Restam, portanto, somente as interrogações. Aproveito-me dessa margem de liberdade que escapou à vigilância cívica dos juízes eleitorais, e pergunto, “data venia”, a todos os gays, a seus apóstolos e à autora do projeto:

Vocês querem mesmo que essa sua lei, já antes de aprovada – e mais ainda depois -, seja defendida mediante a proibição de todos os argumentos adversos, ou estariam dispostos a concordar comigo se eu dissesse que a iniciativa da Justiça Eleitoral de Minas é um abuso de autoridade, uma aberração jurídica e uma abominação moral?

Na segunda hipótese, vocês terão demonstrado que sabem sacrificar os interesses imediatos do seu grupo em prol de um direito mais geral e mais alto, que é a liberdade de expressão assegurada pela Constituição a todos os brasileiros. Na primeira, nossa conversa acabará aqui mesmo, pois já terei concluído, com pouca margem de erro, quem é o neonazista neste episódio.

A pretexto de Puigs

Olavo de Carvalho


Zero Hora (Porto Alegre), 23 de setembro de 2000

Em carta publicada na ZH do dia 15, o leitor Hélios Puig Gonzales alerta ao distinto público que tenho uma formação educacional muito deficiente, motivo pelo qual falto à verdade histórica no que diz respeito a Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, acusados de homicídio e mortos na cadeira elétrica em 1927: “Carvalho não dá valor à Justiça ou ignora que, 50 anos depois, o governador de Massachusetts reconheceu a inocência de ambos.”

Bem, não ignoro esse fato, apenas julguei desnecessário mencioná-lo porque há duas décadas ele é alardeado pelos filmes de Hollywood onde os Puigs adquirem sua erudição histórica. Também não desprezo a Justiça, mas não a idolatro ao ponto de imaginar que uma sentença judicial de 1977 tivesse o poder miraculoso de impugnar, por antecipação, as descobertas históricas posteriores que vieram a revelar a culpa de Sacco, a cumplicidade de Vanzetti e a farsa publicitária comunista concebida para iludir milhões de Puigs. É verdade que, decretada “post mortem” a inocência dos réus, novas provas já não podem ser alegadas para pedir a reabertura do processo (mesmo porque processar os mortos é monstruosidade jurídica que só o regime socialista se permitiu). Mas com isso, justamente, a questão sai da esfera judicial e se torna matéria de pura investigação histórica, cujos resultados não podem, obviamente, ser determinados por uma sentença judicial anterior. Os critérios do historiador não são os do Código de Processo Penal. Na justiça há limite de prazo para a apresentação de provas. Na ciência histórica, as verdades tardias são às vezes as mais valiosas. Qualquer aluno de ginásio sabe disso, e é deplorável que o sr. Puig tenha de aprendê-lo logo de um sujeito mal formado como eu. É talvez por ter tido uma educação precária que, ao opinar sobre algum assunto, eu procure obter primeiro a informação científica mais atualizada. Se eu tivesse uma cabeça bem feita como a do sr. Puig poderia contentar-me em recordar banalidades vistas no cinema vinte anos atrás e exibi-las com o ar triunfante de quem dissesse a última palavra sobre o assunto.

Aos demais leitores, que tenham dúvidas em vez da certeza tola do sr. Puig, recomendo a leitura do meticuloso estudo de Francis Russell, “Sacco and Vanzetti: The Case Resolved” (New York, Harper and Row, 1986), bem como a consulta aos documentos soviéticos publicados pela universidade de Yale a partir de 1995. O governador de Massachusetts não podia conhecer esses documentos em 1977 porque estavam lacrados numa gaveta da KGB; o sr. Puig não pode conhecê-los hoje porque sua gaveta mental foi lacrada em 1977.

Mas não, não vou gastar um artigo inteiro com o sr. Puig. Se consenti em tocar no assunto foi porque a mencionada coleção de documentos revela também coisas diversas e de interesse muito mais amplo, especialmente o fato de que todos os movimentos de protesto promovidos pela esquerda norte-americana contra a guerra do Vietnã foram planejados e dirigidos em Moscou e Pequim: nenhum emergiu espontaneamente da sociedade norte-americana como pretendem nos fazer crer os filmes que embelezam essa época com uma aura de inocente romantismo juvenil. Como sempre acontece, a fachada de idealismo aí camufla manipulações discretas de uma maldade quase impensável. Uma delas foi a disseminação proposital das drogas através dos prisioneiros de guerra em Hanói, que eram viciados à força e depois enviados de volta aos EUA como agentes de contaminação, ao mesmo tempo que uma bem disciplinada tropa-de-choque intelectual buscava, nas cátedras e na imprensa, apresentar a fuga para os tóxicos como um nobre e legítimo protesto das almas sensíveis contra o hediondo “complexo industrial-militar”. A retórica pacifista dos anos 60 foi uma colaboração perversa com crimes de guerra cujos efeitos se propagam até hoje, devastando a humanidade.

Mas esses efeitos não se limitam à difusão das drogas. O Japão, vinte anos depois de subjugado pelos EUA, era uma potência econômica florescente. O Vietnã, abandonado aos comunistas por obra do “flower power”, é hoje um dos países mais miseráveis da Terra, um museu de horrores governado por uma ditadura de assassinos. E não há, entre os militantes esquerdistas da década de 60, um único que seja honesto o bastante para assumir a responsabilidade histórica por esse resultado, mais que previsível, da vitória das delicadas “pombas” sobre os malvados “falcões” do Pentágono. Para ocultar essa infâmia, o Vietnã simplesmente desapareceu do noticiário na mídia “esclarecida”. Se ele ainda fosse assunto, poderia dar ao público brasileiro, hoje, um ponto de comparação para avaliar as declarações do chefe da guerrilha colombiana que admite ter em suas mãos o controle da produção local de drogas e reconhece suas ligações com o principal traficante brasileiro, Fernandinho Beira-Mar. Comparações como essa põem a nu, instantanaeamente, a estratégia global dos genocidas aos quais este país, por cansaço e indolência, vai cada vez mais entregando as rédeas do seu destino.

Veja todos os arquivos por ano