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O Imbecil Coletivo: Rorty e os animais

RORTY E OS ANIMAIS

O Imbecil Coletivo, 5a ed., pp. 60-67.

O erro fala com voz dupla, uma das quais proclama o falso e a outra o desmente; e é um contender de sim e não, que se chama contradição… O erro condena-se, não pela boca do juiz, mas ex ore suo.” — BENEDETTO CROCE.

“A filosofia teve origem na tentativa de escapar para um mundo em que nada mudasse. Platão, fundador dessa área da cultura a que hoje chamamos ‘filosofia’, supunha que a diferença entre o passado e o futuro seria mínima.”

Assim principia o artigo de página inteira que o Sr. Richard Rorty publicou na Folha de S. Paulo no último dia 3 de março. Quando comecei a trabalhar no jornalismo, trinta anos atrás, um parágrafo desse teor seria impiedosamente riscado pelo copy desk, que ainda deixaria ao autor da pérola um bilhetinho malcriado, mais ou menos nos seguintes termos: “Mas como, ó espertinho, como poderia Platão desejar tão ansiosamente fugir para um mundo de estabilidade sem mudança, se neste mesmo mundo ele já não via grande diferença entre passado e futuro?” Hoje em dia a bobagem flagrante é publicada como alta manifestação do pensamento filosófico e não aparece um copypara dizer que ela não é aceitável nem mesmo como tentativa de jornalismo.

Mas, além de inaugurar seu artigo com um ostensivo contra-senso, o Sr. Rorty ainda pretende fazer dele o fundamento para conclusões que atentam contra as verdades históricas mais elementares. Pois, prossegue ele: “Foi só quando começaram a levar a história e o tempo a sério que os filósofos colocaram suas esperanças quanto ao futuro deste mundo no lugar antes ocupado por seu desejo de conhecer um outro mundo. A tentativa de levar o tempo a sério começou com Hegel.”

Para começar, é manifesto que Platão, como todos os gregos, via sim muita diferença entre passado e futuro: se o fato mesmo da mudança não lhe parecesse digno de atenção, ele não faria esforço nenhum para tentar descobrir um padrão imutável por trás da transitoriedade das coisas. Em segundo lugar, a preocupação com “o futuro deste mundo” foi uma das tônicas do projeto platônico, obra de reformador social e político antes que de puro contemplador teórico.

Em terceiro, datar de Hegel o início da preocupação com a História e o tempo é saltar sobre dois milênios de cristianismo, uma religião que se diferenciou da cosmovisão grega justamente por sua ênfase no caráter temporal e histórico da vida humana — coisa que já está bem clara em Sto. Agostinho.

Quarto. Por que supor uma contradição entre a preocupação com a História e o desejo de eternidade, quando justamente é a união indissolúvel desses dois temas a inspiração básica do próprio Hegel?

Quinto. Quando o Sr. Rorty interpreta o desejo de eternidade como uma “escapada” ou “fuga”, ele está fazendo mero jogo de palavras, aliás facilmente reversível: o impulso de revolucionar o mundo, de acelerar a mudança histórica também pode, com igual verossimilhança, ser interpretado como uma hübrys, uma agitação alienante, uma válvula de escape ante as realidades permanentes e inelutáveis, como a morte, a fragilidade física, a ignorância de nosso destino último, etc. Essas interpretações pejorativas só têm valor retórico, se tanto. Dá-las como pressupostas e inquestionáveis não é nada honesto.

Baseado em todos esses pressupostos, o Sr. Rorty encerra a abertura do seu artigo com a declaração de que a influência conjunta de Hegel e Darwin distanciou a filosofia da questão ‘O que somos?’ e levou-a para ‘O que poderíamos vir a ser?’. Essa pomposa generalização histórica omite para o leitor a informação de que para Hegel essas duas questões eram rigorosamente a mesma (Wesen ist was gewesen ist) e de que nisto o filósofo de Jena, longe de se afastar do pensamento grego, dava apenas desenvolvimento lógico à doutrina aristotélica da enteléquia, segundo a qual a essência não é a forma estática de um ser num dado momento do tempo, mas a meta subentendida no seu desenvolvimento. Omite, mais ainda, a informação de que Darwin, por seu lado, nunca deu um pio a respeito nem de ‘O que somos’ nem de ‘O que podemos vir a ser’, mas só se interessou por ‘O que fomos’; e confunde portanto a teoria da evolução com a ideologia evolucionista que é obra de Spencer e não de Darwin.

Num único parágrafo, são tantos os subentendidos absurdos, que talvez seja a própria força compressiva da falsidade rapidamente injetada em seu cérebro que deixe o leitor zonzo, incapaz de perceber que está diante de um charlatão barato, travestido em filósofo por obra de puro marketing.

Mas não creio que o Sr. Rorty escreva assim por mera inépcia. Ele sabe que mente — e o segredo do fascínio que ele exerce sobre hordas de jovens pedantes consiste precisamente em que, descrendo de toda verdade, eles invejam o poder de mentir bem. Há muita gente que sonha em ser Richard Rorty quando crescer.

Mas querem saber mesmo quem é esse sujeito? Querem ter uma idéia de quanto é ridículo honrá-lo como filósofo? Pois então, indo um pouco além do que ele disse na Folha, acompanhem este breve exame das suas concepções mais gerais.

“A linguagem não é uma imagem do real”, assegura o Sr. Rorty, filósofo pragmatista e antiplatônico. Devemos interpretar essa frase no sentido que o Sr. Rorty chama “platônico”, isto é, como negação de um atributo a uma substância? Seria contraditório: uma linguagem que não é imagem do real não pode nos dar uma imagem real das suas relações com o real. Logo, a sentença deve ser interpretada no sentido pragmatista: nada afirma sobre o que é a linguagem, mas indica apenas a intenção de usá-la de um determinado modo. A tese central do pensamento do Sr. Rorty é uma declaração de intenções. “A linguagem não é uma imagem do real” significa rigorosamente isto e mais nada: “Eu, Richard Rorty, estou firmemente decidido a não usar a linguagem como uma imagem do real”. É uma tese “irrefutável”: não se pode impugnar logicamente uma expressão da vontade. Não há, pois, nada a debater: dentro dos limites da decência e do Código Penal, o Sr. Rorty tem o direito de usar a linguagem como bem entenda.

O problema aparece quando ele começa a querer nos induzir a usar a linguagem exatamente como ele. Afirma ele que a linguagem não é uma representação da realidade, e sim um conjunto de ferramentas inventadas pelo homem para realizar seus desejos. Mas é uma falsa alternativa. Um homem pode muito bem desejar utilizar essa ferramenta para representar a realidade. Parece que Platão desejava exatamente isso. Mas o Sr. Rorty nega que os homens tenham outros desejos senão o de buscar o prazer e fugir da dor. Que alguns declarem desejar algo mais deve ser muito doloroso para ele, pois, caso contrário, não haveria nenhuma explicação pragmatisticamente válida para o empenho que ele coloca em mudar a clave da conversa. Diante da impossibilidade de negar que essas pessoas existam, o pragmatista dirá talvez que aqueles que buscam representar a realidade são movidos pelo desejo de fugir da dor tanto quanto os que preferem inventar fantasias; mas esta objeção só terá mostrado, precisamente, que não se trata de coisas que se excluam uma à outra. A alternativa rortyana é falsa nos seus próprios termos.

Diante dessa dolorosa constatação, o Sr. Rorty alega que sua filosofia consiste em propor um vocabulário novo, no qual serão abolidas as distinções entre absoluto e relativo, aparência e realidade, natural e artificial, verdadeiro e falso. Ele reconhece que não tem nenhum argumento a oferecer em defesa da sua proposta, de vez que ela, “não podendo ser expressa na terminologia platônica”, está acima, ou abaixo, da possibilidade de ser provada ou refutada. “Por isto, conclui ele em nome de todos os pragmatistas, nossos esforços de persuasão assumem a forma de uma inculcação gradual de novos modos de falar“. O Sr. Rorty, portanto, não pretende convencer-nos da veracidade de suas teses: pretende apenas “inculcar-nos gradualmente” seu modo de falar, uma vez adotado o qual iremos gradualmente nos esquecendo de perguntar se o que se fala é verdadeiro ou falso. Mas inculcar gradualmente nos outros um hábito lingüístico, colocando-o ao mesmo tempo fora do alcance de toda arbitragem racional, é pura manipulação psicológica. Saímos, portanto, do terreno da discussão filosófica — que o rortyanismo recusa como “platônico” — para entrar no da sutil imposição de vontades mediante a repetição de slogans e a mudança de vocabulário. É o que George Orwell denominou Newspeak, a Novilíngua de1984.

Essa é talvez a razão profunda e secreta pela qual, após ter declarado que os homens nada mais são do que bichos em busca do prazer, e de ter reduzido a linguagem a um instrumento para os bichos mais fortes dominarem os mais fracos, o Sr. Rorty ainda pode proclamar que “nós, os pragmatistas, não nos comportamos como animais”, quando seu discurso parecia indicar precisamente o contrário. É que eles são, na verdade, amestradores de animais. Um domador de cavalos não argumenta com os cavalos: usa apenas da influência psicológica para lhes “inculcar gradualmente” os hábitos desejados.

Como todos os amestradores, os pragmatistas são movidos por intenções piedosas: “O que nos importa é inventar meios de diminuir o sofrimento humano.” É com esta nobre finalidade que o Sr. Rorty propõe a abolição das oposições entre o verdadeiro e o falso, o real e o aparente, o absoluto e o relativo, etc., que tanto vêm fazendo sofrer os estudantes de filosofia, e sugere a adoção universal da Novilíngua. Uma vez aprovada esta medida, os debates filosóficos já não serão, como antigamente, um desconfortável entrechoque de argumentos e provas, mas um esforço para tornar cada vez mais prazerosa e indolor a inculcação gradual de novos hábitos na mente da platéia. As novas teorias já não chamarão em seu socorro as pesadas armas da lógica, mas os delicados instrumentos do marketing, com distribuição de brindes aos novos adeptos e sorridentes coelhinhas da Playboy nas capas das teses acadêmicas.

Mas a contribuição decisiva do Sr. Rorty ao alívio do sofrimento humano é o combate que ele move contra a idéia de que a vida possa ter um sentido. É compreensível que, num universo que faça sentido, o Sr. Rorty deva se sentir muito mal — um estranho no ninho, exatamente como se sentiria um não-pragmatista num mundo desprovido de sentido. Porém o Sr. Rorty não vê o menor proveito em polemizar com os que não sentem como ele. A controvérsia entre a existência ou inexistência de um sentido imanente no cosmos, diz ele, “é demasiado radical para poder ser julgada a partir de algum ponto de vista neutro”. Não há meio de argumentar: tudo o que um homem pode fazer é expressar o seu desejo. Portanto, novamente, a tese do Sr. Rorty é uma declaração de intenções: ele, Richard Rorty, fará tudo o que estiver ao seu alcance para que a vida não tenha o menor sentido. Ele faz isto aliás com extrema dedicação e competência. Há quem ache que a falta de sentido é que torna os seres humanos infelizes1, mas o Sr. Rorty não está nem aí. Ele defende o pluralismo democrático, a livre expressão de todos os pontos de vista. Apenas, o confronto dos pontos de vista, não podendo ser arbitrado por nenhum meio intelectualmente válido, se torna apenas uma concorrência entre desejos, cujo desenlace será determinado pela pura habilidade manipulatória do partido vencedor.

Quem conhece o Sr. Rorty pessoalmente garante que ele é um primor de simpatia. Acredito. Mas duvido que abane o rabo. Afinal, não é ele o animal da história2.

NOTAS

  1. Viktor Frankl por exemplo, o nunca assás louvado psiquiatra judeu, que no inferno dos campos de concentração descobriu que um sentido da vida é mais necessário ao homem do que a liberdade mesma. Frankl disse a um público norte-americano: “Não foram apenas alguns ministérios de Berlim que inventaram as câmaras de gás de Maidanek, Auschwitz, Treblinka: elas foram preparadas nos escritórios e salas de aula de cientistas e filósofos niilistas, entre os quais se contavam e contam alguns pensadores anglo-saxônicos laureados com o Prêmio Nobel. É que, se a vida humana não passa do insignificante produto acidental de umas moléculas de proteína, pouco importa que um psicopata seja eliminado como inútil e que ao psicopata se acrescentem mais uns quantos povos inferiores: tudo isto não é senão raciocínio lógico e consequente.” (Sêde de Sentido, trad. Henrique Elfes, São Paulo, Quadrante, 1989, p. 45.)
  2. Relendo em provas este capítulo, ocorre-me lembrar ao leitor que uma proposta como a do Sr. Rorty contém em si, junto com a recusa da prova racional, um batalhão de anticorpos contra qualquer tentativa de refutá-la na serenidade de uma discussão acadêmica. Uma “inculcação gradual” nunca se bate de frente contra argumentos, mas aproveita-se dos momentos de distração do interlocutor para subrepticiamente induzir nele uma mudança de estado de espírito. Seu modus argumentandi não é o do filósofo ou mesmo o do retórico, mas o do programador neurolinguístico: atua por baixo do limiar da consciência, após ter induzido a vítima a relaxar suas defesas por meio de uma conversa amena. Contra esse tipo de atuação, a única defesa possível é enfrentar o sedutor no terreno que ele escolheu: no da ação psicológica. Não se trata, portanto, de argumentar, mas de desmascarar, tal como em psicanálise. Durante a passagem do Sr. Rorty pelo Brasil, fiquei estarrecido com a incapacidade de seu público de perceber a diferença entre argumentação e sedução: se o próprio Sr. Rorty admite que não adianta argumentar, que outra coisa poderiam ser seus aparentes argumentos senão uma manobra diversionista, um trompe l’oeil para manter ocupada a atenção consciente enquanto por baixo e a salvo de toda fiscalização crítica o inculcador gradual vai manipulando discretamente o fundo da alma do distraído interlocutor? Mas qual mocinha caipira seria tola de tentar livrar-se de um sedutor mediante frases polidas que prolongassem a conversa? Para expulsar o sedutor é preciso recusar-lhe, desde logo e definitivamente, qualquer aceno de simpatia. Hoje em dia são muitas as correntes de opinião que, à argumentação lógica, preferem a influência psicológica. Elas não tentam conquistar nossa adesão, mas monopolizar nossa atenção. Prolongando uma conversa que elas mesmas reconhecem não poder chegar a resultados intelectualmente válidos, envolvem-nos gradualmente na sua atmosfera, de modo que, sem termos jamais concordado com elas explicitamente, de repente estamos falando na sua linguagem, pensando segundo as suas categorias, julgando segundo os seus valores, agindo segundo as suas regras. Obtêm assim, por cima ou por baixo de nossa discordância superficial, nossa mais completa obediência. Não há meio de enfrentá-las senão por ostensivas manifestações de antipatia, de modo a fazê-las entender que aquilo que nos separa delas não é uma mera discordância intelectual, mas também uma categórica rejeição moral; que, em suma, não gostamos da sua conversa. O tom do presente livro tem portanto um sentido profilático.

 

DESCARTES AND THE PSYCHOLOGY OF DOUBT

Descartes Colloquium, Brazilian Academy of Philosophy
Faculdade da Cidade, Rio de Janeiro, May 9th 1996

Translated by Pedro Sette Câmara

“La verdad es lo que es
y sigue siendo verdad
aunque se diga al revés.”

(The truth is what is and does
continue being the truth
even though one says it is not)

Antonio Machado

Descartes assures us that the sequence in the Meditationswhich takes him from the questioning of the outer world to the discovery of the Cogito axiom isn’t just a logical model, a hypothetical articulation of thinkable thoughts, but rather an actual experience, a narrative of thoughts which were thought. But, how trustworthy might have been his self-observation? Can we take the faithfulness of what he reported for granted? Furthermore, can we take for granted the paradigmatic universality of that sequence of thoughts, admitting it will happen in equal or similar fashion, with similar or equal results, to anyone who undertakes the reexamination of the architecture of one’s beliefs from its very foundations? Is it possible for a man to have a similar experience, or, on the contrary, it was Descartes who, in fact, had an entirely different experience, allowing himself to be deceived and taking as a description what is purely an invention?

The possibility of doubting our sensations, our imaginations and our thoughts is something anyone can testify. The possibility of putting the whole set of our representations on hold, reducing the “world” to a vanishing hypothesis, is also sure.

But, after performing all these operations, Descartes assures us of having found, at last, the certainty of doubt: doubt is a thought, and in the instant I doubt, I cannot doubt that I am thinking the doubt. The self-confidence in the metaphysical solidity of the thinking ego comes forth as a powerful psychological compensation for the lack of confidence in the reality of the “world”.

Even though very keen to describe the thoughts which precede the state of doubt, Descartes is oddly evasive when it comes to the state of doubt itself. Actually, he doesn’t describe it: he only affirms it, and, jumping immediately from description to deduction, he begins to draw the logical consequences which the verification of this state imposes on him.

Let us do what Descartes did not. Let us try to stop the impulse of consequentialist automatism, and keep ourselves for a moment at the description of the state of doubt.

In the first place, it is not a state — a static position in which a man may rest unchangeably, just as he gets sad or in contemplation, still or lying down. It is rather an alternation between a “no” and a “yes”, an impossibility of resting at one of the terms of an alternative without the other coming to dispute the primacy. For either “no”, or “yes”, once accepted as definitive terms, would immediately eliminate doubt, which consists of antagonistic coexistence and of nothing else. But this antagonism isn’t static: it is mobile. The doubtful mind goes endlessly from on term to the other, without reaching a support point where to rest and “be”. And, since each of the terms is the other’s denial, the mind would not be able to rest at any of them without, for an instant, denying the other: precisely at that instant, the mind is not in doubt – it is either affirming or denying, it is affirming one thing and denying the other, even though it may not be able to persevere in the affirmation or in the denial without thinking of a thousand reasons to abandon either. And, in the instant of affirmation or denial, doubt suppresses itself as such and fights for its establishment as affirmation or denial; but it fails, and it is of this failure that doubt is made of. What follows is an inevitable conclusion: a doubt that does not doubt itself, a doubt that, suspending the alternation, imposes itself as a “state” and thus remains, is impossible. In taking doubt as a “state”, omitting that it is an alternation between two antagonistic instants, Descartes reifies it and takes it as a certainty: “I cannot doubt that I doubt in the instant I doubt”, a sentence Descartes takes as an expression of the most conspicuous obviousness, is actually the expression of logical nonsense and of psychological impossibility. What would be more correct to say is that, in doubting, I doubt about everything, doubt itself included. Doubt is not a state: it is the succession and coexistence of antagonistic states, it is a not being able to be.2

What leads Descartes into error is the fact that he takes doubt for denial, or, better yet, for hypothetical denial. I can, actually, make up a hypothetical denial and repeat it indefinitely. I can even amplify it – hypothetically, of course – to a point where it embraces what I consider to be the whole extension of my knowledge. But I cannot “doubt” about my own knowledge without, at the same time, restating it, in the sense that this is the only way through which one is able to alternate its affirmations and denials in the vicious circle of doubt.

Set forth in these terms, the cogito axiom is no more than a new and more obscure enunciation of the old argument of Socrates against the skeptical: it is impossible to deny without affirming the denial, thus without affirming something. But, from this point of view, the Cartesian discovery is reduced to very little: far from having given a new foundation, critical or negative, to the world of knowledge, he makes nothing but demonstrating again, through the crooked path of a false psychological self-description, the logical primacy of affirmation over denial. However, the acknowledgement of this primacy is, simultaneously, the denial of doubt as a founding act. The discovery of Descartes is a non-discovery, it is the discovery of the impossibility of discovering anything through a way defined, more than any other thing, by an intolerable self-contradiction.3

But, with that, I have solely demonstrated that doubt, as such, cannot serve as a critical basis. I did not expose yet the bases which, in their turn, make doubt possible. And this is the decisive point, for if there is something “behind” doubt, it is this something, and not doubt, which constitutes the firm support point Descartes looked for, and which he naïvely believed to have found in the acknowledgement of doubt.

Descartes says that doubt is a certainty in the instant it is thought. But that is false: what is a certainty is the later reflection which affirms the reality of the experience of doubt. In the very instant of doubt, what happens is, as we have seen, an alternation between affirmation and denial, and hence the impossibility of affirming any state, if by state we understand, as one should, the coincidence of a factual judgement and the feeling which grants its negative or positive value, as in sadness, hurry, anger, hope etc. Doubt is not a state, for the simple reason that in it the feeling, which can be of anxiety, of hope, of curiosity, etc., does not coincide with a specific judgement, but emerges precisely from the impossibility of affirming or denying a judgement. It is rather a moment of suspension between states, an agitated void that contains the germs of various possible states – at least two – and never settles upon any of them without its own suppression. Therefore man never “is” in doubt: he simply passes by it, precisely as a transition between states. It is only when doubt is no longer a present experience and becomes the object of reflection that arises this certainty, purely retrospective and narrative: “I could not, up to this moment, establish myself in affirmation or denial.” Thus, there is not only a logical distinction but an actual separation between doubt as a present experience and doubt as an object o recollection and reflection – and it is the latter that is certain and indubitable4, not the first, even though Descartes takes one for the other and forwards to us as a direct intuitive evidence what is actually the object of later reflection. It is only this reflection that, in giving it a name, can endow with the oneness of a “state” that which is actually a succession of states which mutually suppress each other, or the coexistence of purely potential states, each of them being able to actualise itself only at the cost of the others’ exclusion. Endowing the void of alternation with the positive consistence of a “state”, Descartes at the same time transforms doubt into mere hypothetical denial, taking then as an actual psychological state what is rather simply the logical concept of a possible state.

To make things even worse, in the reflective affirmation of the reality of doubt are contained, as premises, two beliefs: one in the continuity of conscience between doubt and reflection, and other in the knowledge of the distinction between truth and falsehood.

1o Anyone who reflects about doubt is aware of still being “the same” who had the doubt; and if the act of doubting is formally distinct from the act of reflection, the conscious ego, in reflecting, knows he is the subject of two distinct acts – logically distinct and temporally distinct -, taking us to the conclusion that this ego is logically and temporally anterior to both acts and independent from them: it is not the act of doubting that founds the certainty about the ego, but, on the contrary, the certainty about the continuity of the ego is the sole guarantee that doubt was really experienced. For doubt, if it did not receive from later reflection the name that endows it with the apparent oneness of a state, would end up reducing itself to the mere succession of non-related affirmations and denials, successive hallucinations of schizophrenically plural subject, deprived of the empire of himself and dissolved in the atomistic flow of his states. In order to become the object of reflection, doubt is endowed with the artificial oneness of a name; and if just after that the mind forgets that this mind is a mere ens rationis and takes it for a substantial unity, then we are faced with a case of reflexive self-hypnosis in which a name produces magically, a posteriori, the reality of its object.

2o Being formally distinct, the two acts are empirically distinct as well, that is, distinct in time: first I doubt (that is, I come and go between successive affirmations and denials), then I reflect that I doubted (that is, I unify under the name “doubt” this multitude of antagonistic experiences). But the oneness of the ego, implied on this very reflection, and hence in the certainty of the doubt, is that continuity in time denominated memoryand recollection: memory, a premise for reflection, is logically and temporally anterior to reflection. Far from being able to base our confidence on memory, it is doubt who depends on it to have a logical foundation and to become possible in the realm of psychological facts.

But, if doubt depends on the guarantee it receives from the ego and from memory, then it has no founding capability. It is a founded thing, a secondary and derived certainty, it is the work of a more profound and unquestionable agent.

3o However, doubt implies something else. How is it possible to doubt? The possibility of doubt rests entirely over our ability to conceive things in a way different from the way they present themselves in a given moment. Doubt rests over supposition; it requires and implies the ability to suppose. Once things have presented themselves to the subject in one certain way, and not another, this second and supposed way can present itself to conscience only as a work of the subject himself, as an offspring of imagination or as a conjecture. In order to know he’s doubting, it is necessary for the subject to know that he supposed something and to thus acknowledge himself as the subject of not only two acts, as we have just seen, but of three: the act of doubting, the act of reflecting about doubt and, before both acts, the act of supposing or imagining. Imagination is, in addition to the continuity of the ego and to memory, the third requirement and the third basis for the possibility of doubt.

4o But, should the subject never notice any difference between things as they present themselves to him and things the way he imagines them, the subject would never be able to know that he supposed, since there would be no distinction between to suppose and to perceive. Therefore, the awareness of this difference is also a requirement and a basis for the possibility of doubt. To doubt, I need to distinguish, in my representation, what’s given and what’s construed, what’s received and what’s invented, that which I get already finished and that which I do and propose. Consequently, here is the assumption of the difference between the objective and the subjective, and, thus, the belief in the objectivity of the objective and in the subjectivity of the subjective.

5o Yet, should the subject confuse these two domains, believing that he supposed what was perceived and that he perceived what he supposed, he would have lost the continuity of conscience and of memory, which is, as we have seen, a condition for the possibility of doubt. Therefore, the doubt about the reality of the world cannot present itself as a mere choice between two possibilities of equal value sprang from the same origin, but always as a choice between something given and something supposed, between the perceived and the invented.

6o It is not possible to doubt about the reality of the world without knowing first that this doubt, and the supposition which serves as its basis, are but pure inventions of the subject himself, and this invention is formally and temporally distinct from the act of perceiving and from the perceived content. Doubt is a supposition that an invented world is more valid than the received world, a supposition based, in its turn, in the conscience to invent, to suppose and to pretend. The doubt about the reality of the world is always and necessarily an act of pretending, and the more the pretender works to take this doubt seriously, to make it more and more verisimilar, the more the glow of the performance will attest to the difference between the verisimilar and the true, as in a play, we applaud the actor exactly because we know that he is not the character.

7o But this conscience of pretending would be impossible if it were not founded, in its turn, on the conscience of the difference between to think and to be, to imagine and to act. For, once it is implied the conscience of the difference between to supposing and perceiving, parallel to the conscience the ego has of its own actions, there wouldn’t be a way to deny that the thinking ego is conscious of the difference between the supposed action and the effective action, once the effective action is not just thought, but physically perceived, exactly like the beings from the physical world. I cannot, therefore, doubt about the beings of the physical world without, in the same act, doubt about the physical acts I see myself performing, like the movements of my hands and legs. But, at the same time, I cannot doubt about them without questioning, in the same instant, the continuity and the oneness of the ego, which is, in spite of it, a premise for the act of doubting about just any thing. Here is another reason for which doubt, being dubious in its own nature, would not be able to establish itself if not by doubting about itself, that is, being aware that it is founded on a supposition and on deliberate pretending. Here is also why doubt is something so rare and demanding: it implies a movements that contradicts itself, that questions the very conditions which make it possible.5

8o Finally, doubt is only possible when it is known that something, either in what is perceived or in what is supposed, is not adequate, when it does not meet a fundamental requirement of truthfulness. But how could the doubting subject demand truthfulness of his suppositions if he did not have any idea about truthfulness? This demand would be inconceivable without an idea of truth, even as a mere imaginary object of desire. The desire for bases presumes in the subject at least the possibility of imagining that his knowledge can be even more reliable than he actually feels at a given moment, that is, truth as an ideal and the option for truth. But, at the same time, we saw that the subject did not know this truth just as an abstract ideal, but that he already was aware of at least one actual difference between truth and falsehood: the difference between what is given and what is supposed, followed by the true awareness that what was received was not supposed and what was supposed was not received.

Thus, doubt erects itself upon a whole building of perceptions and presumptions: far from being first logically, it is a very elaborate and sophisticated product of a knowledge machine. Far from having a founding power, it is no more than a more or less accidental and secondary manifestation of a system of certainties.

However, if things are as such, if the primacy of methodical doubt is only the primacy of a mistake, then are under suspicion, similarly, the Kantian primacy of the critique problem, the positivist dogma of the impossibility to have a valid metaphysical certainty, and many other belief which today’s man takes, in spite of his own will, as obvious and blatant truths. But this is a subject for future addresses, which will be presented in other opportunities. Thank you.

Notes

  1. First part – abridged – of the essay “To Doubt about Doubt and to Criticise Criticism: Preliminaries for a Return to Dogmatic Metaphysics”, distributed among the students of the Permanent Seminar on Philosophy and the Humanities in March 1996. 
  2. When I talk about “succession and coexistence”, it seems that I utter a monumental nonsense. But the yes and the no of which doubt is made are coexistent in one aspect, and successive in another. Logically coexistent as terms of a contradiction, they are psychologically successive, that is, they enter the stage of conscience in a cyclical, alternating mode: one enters, the other leaves, as day and night coexist in the sky and succeed each other in a certain point on Earth. 
  3. A first version of this analysis of Cartesian doubt can be found in my book Universality and Abstraction and Other Studies (São Paulo: Speculum, 1983), under the title “The Cartesian cogito on the light of spiritual psychology.” 
  4. “Certain and indubitable” or “uncertain and doubtful” are predicates which do not apply to a fact as such, but to the judgements we make about it. 
  5. It is a deviation of the human mental apparatus, a painful movement that suppresses itself, and which rare men are able to endure for much time without great risk to their psychological integrity. The possibility of taking this risk and overcome it rests on the existence of a so solid, so deeply rooted body of beliefs, that a man may grant himself the luxury of leaving it for a mental trip, sure to find it again when he comes back. This possibility, in its turn, can only be accomplished in the highly differentiated urban societies and cultures, where the thinking individual is given space for flights of imagination which will affect in nothing his conduct as a citizen or as an honourable subject attends to his duties; where he is given, more than that, free space to think one thing and do another, to cultivate the defensive hypocrisy which is notably absent among the primitives, and that, for good or bad, is a solid protection of the individual conscience against the tyranny of collective discourse. Hence the peaceful coexistence between the revolutionary audacity of Cartesian doubt and the conservatism of the “provisory morals” that make it possible. 

Prólogo de “O Imbecil Coletivo”

PRÓLOGO DE O IMBECIL COLETIVO

PRÓLOGO DO PRÓLOGO

Quando comecei a redigir estas páginas, não esperava dar-lhes nem mesmo aquela unidade externa e corpórea, que duas capas e uma lombada conferem ao objeto denominado, neste caso mui impropriamente, “livro”, e que a rigor se chamaria antes “volume” ou “bloco”. Não obedeciam a um plano de conjunto nem tinham sido concebidas no intuito de casar-se umas às outras. Nelas se haviam anotado, ao acaso, minhas impressões ante acontecimentos culturais do dia, à medida que os acontecimentos aconteciam, sem que nem mesmo neles minha visão atinasse com a unidade de qualquer intenção demiúrgica, por mais secreta e sutil que fosse.

À medida que se acumulavam, porém, notei que refletiam a convergência impremeditada de meus focos habituais de atenção para um preciso ponto. Levado por algum demônio oculto, meu cérebro se tornara cada vez mais atento e sensível às tolices irritantes que em doses cada vez maiores eu encontrava nos jornais, ditas por homens de letras nesta parte obscura do mundo, e das quais o anjo bom, movido pelos cuidados que lhe inspirava o alarmante inchaço do meu saco escrotal, me aconselhava em vão guardar a máxima distância e devotá-las a um merecido esquecimento. Por efeito seja do acúmulo crescente, seja da minha atenção obsessiva, o besteirol letrado começou a tomar a meus olhos quase a forma de um gênero literário independente, bem diferenciado e caracteristicamente nacional. Sim, do mesmo modo que a Alemanha havia encontrado a sua máxima vocação literária na prosa filosófica, a Inglaterra na poesia lírica, a Itália no verso épico, a Espanha na narrativa picaresca, a Rússia no romance, a França no jornalismo de idéias, o Brasil encontrara a expressão perfeita da sua personalidade intelectual no jornalismo da falta de idéias. E, uma vez afeito meu espírito ao consumo desse gênero literário tal como Dom Quixote se habituara ao dos romances de cavalaria, nada mais podia deter-me na busca de novas e cada vez mais deprimentes vivências culturais.

Todas as manhãs, quando eu, entre volúpias de masoca, me atirava àquelas letras viciosas, o pobre anjo, em vão, tentava dissuadir-me, dirigir meu olhar a coisas mais higiênicas, que iam desde a Bíblia até a revista Amiga, passando pelos clássicos da literatura e pelas obras dos grandes filósofos, bem como pelas cotações da Bolsa, pelas aventuras dos Cavaleiros do Zodíaco e pelos anúncios de geladeiras a prazo. E eu, após uma breve vista d’olhos nesse material, voltava com redobrada sanha às obscenidades culturais em que me deleitava suinamente. Só faltou ele me oferecer literatura pornô, o que seria apelação indigna do seu alto ofício, mas creio que, se não o fez, foi menos por razões de moralidade do que por atinar de antemão com a inocuidade desse expediente, tendo em vista a diversa direção tomada, de maneira aparentemente irreversível, pelo meu furioso animus legendi. Sim, eu lia tudo, mas tudo o que era cultural, no sentido especial que esta palavra assumiu entre nós desde o advento de Antonio Gramsci e Michael Jackson: o Caderno Idéias do JB, as páginas literárias de O Globo, o Caderno de Sábado do Jornal da Tarde, o Suplemento Cultura de O Estado de S. Paulo, as revistas semanais Veja e Isto É, o Suplemento do Recife, as páginas de letras de A Tarde da Bahia e do Diário do Paraná (tudo, enfim. Tudo e o Mais!

O pretexto edificante que me movia, segundo eu imaginava no meu sonso auto-engano, era de índole patriótica. Sim, replicava eu ao anjo, leio estas coisas em busca de um vestígio de inteligência, de um aceno de esperança, de um sinal ao menos por que possa defender o meu país ante o trono do Altíssimo, mostrando-Lhe que não foi em vão que nos deu neurônios. O guardião de minh’alma perdia a paciência:

— Ma che brutta bestia! (Desculpem o idioma: Na infância fui educado por padres italianos, e fiquei com a impressão de que os anjos falam italiano. Doravante traduzo.) Ficas aí te fazendo de advogado do indefensável, e danas tua própria alma com alimentos venenosos? Vai trabalhar, vagabundo!

Não sei bem dizer quando se deu a virada interior, em que o intuito patriótico se converteu ou perverteu de vez em masoquismo assumido. Foi aí que comecei a colecionar e ordenar estas notas. Então disse-me o anjo:

— Se queres mesmo, então vai, sela teu destino: torna-te colecionador de asneiras. Mas, por Deus!, que não seja em pura perda. Dá a essas tuas dores auto-infligidas uma utilidade e um sentido. Faze um livro, não para mostrar a Deus, que já sabe de antemão tudo o que te faz enxergar, mas para aqueles mesmos que não se enxergam e por não se enxergarem se mostram, quando deviam ocultar-se. Faze o trabalho do espírito: mostra-os a si mesmos, para que os humilhe o que os lisonjeou um dia, e, tombando de quanto mais alto subiram, conheçam que humanos são. Junta teus papéis, compõe massuda escritura, se rude e tosca não vem ao caso, mas que não minta. E, para que não caias onde caíram aqueles de quem falas, toma tento: não te glories de ser a consciência de ninguém, pois o bem que acaso fizeres não será obra tua, e sim efeito da alquimia divina, que pode transmutar em bem até o vício de ler o que não presta.

Maio de 1996.

PRÓLOGO

Reuno aqui umas notas que fui tomando à margem do noticiário cultural brasileiro entre 1992 e 1996. Referem-se todas a um tema único: a alienação da nossa elite intelectual, arrebatada por modas e paixões que a impedem de enxergar as coisas mais óbvias. São observações esparsas, não pretendem traçar um diagnóstico de conjunto, mas indicam fortemente no sentido de uma suspeita: a suspeita de que algo no cérebro nacional não vai bem1.

Todas tomam como ponto de partida algum acontecimento cultural local — um espetáculo, a edição de um livro, as palavras de algum figurão ditas em entrevista — e procuram desentranhar as concepções de ordem geral que encerram, julgando-as em seguida do ponto de vista da coerência intrínseca, do confrontação com os fatos e das exigências de uma cultura superior. Compensando, porém, a homogeneidade dos temas e a unidade do critério que os interpreta e julga, é múltiplo o enfoque e variado o estilo, motivo pelo qual se encontrarão aqui desde breves ensaios filosóficos (“Rorty e os animais” e “Nota sobre Charles S. Peirce”) e de crítica cultural (“O imbecil coletivo” e “Christopher Lasch”) até esboços humorísticos (“Idéias vegetais” e Apêndices) e meras notas jornalísticas, de modo que o leitor, girando de posição, não sinta o desconforto do assunto.

Este livro completa a trilogia que, iniciada com A Nova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci e prosseguida com O Jardim das Aflições. De Epicuro à Ressurreição de César: Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil, consagrei ao estudo da patologia intelectual brasileira no novo panorama do mundo. A função dele na série é mostrar, por meio de exemplos, a extensão e a gravidade de um fenômeno de que o primeiro deu o alarma e cuja localização na História das Idéias no Ocidente foi estudada no segundo2.

A seleção das amostras é fortuita. Encontrei-as na imprensa. Certo ou errado, achei que podiam compor um exemplário significativo do estado de espírito dos letrados brasileiros na presente fase da nossa História. “Letrado”, na maioria dos casos, é apenas um modo de falar: designa as pessoas que teriam a obrigação de sê-lo, em razão de cargo, ofício, fama ou pretensão.

O leitor talvez se espante de que alguns dos fatos aqui abordados não tenham por cenário o Brasil e sim os Estados Unidos3. Mas é que não falo da cultura norte-americana tal como a vêem os americanos do Norte, mas tal como ela aparece aqui, na nossa imprensa literária. O material é de lá, mas o recorte seletivo é nosso: revela nossos interesses e prioridades. Em segundo lugar, e como se vê por esse recorte mesmo, a confusão local consiste, quanto a alguns aspectos essenciais, num reflexo da crise da inteligência norte-americana. Cronicamente incapaz de qualquer pensamento independente, a intelectualidade brasileira compensa sua míngua de força criadora com um excesso de sensibilidade para as oscilações do mercado de idéias no mundo: ninguém, como os nossos letrados, tem um senso tão agudo da “atualidade” e uma pressa tão descarada de renegar da noite para o dia suas devoções da véspera, à menor suspeita de estarem “superadas”. Volúveis e inseguros, esfalfam-se por acertar o passo com as badaladas do relógio da moda, esse eco da História que tomam pela História mesma.

O desejo de segurança é um impulso normal do ser humano. Foi ele que impeliu os primeiros filósofos a buscarem uma verdade para além das flutuações da opinião. Mas esse desejo toma, entre os intelectuais brasileiros, um sentido caricatural e perverso. Em vez de buscar segurança numa intuição direta e pessoal, imaginam poder encontrá-la na adesão coletiva e epidêmica às tendências de prestígio mais recente no que chamam “os grandes centros produtores de cultura” — expressão que já revela toda uma concepção coisista e mercadológica do que seja cultura. Temerosos demais para tentarem atinar por si com o certo e o errado, encontram alívio e proteção no sentimento de estar em dia com a opinião mundial, ou com o que tal lhes parece4. Isto poupa-os de um esforço angustiante, reduzindo a atividade da inteligência a uma operação de aritmética elementar, dedicada a buscar, em vez da ordem das razões, a mera soma das opiniões. Foi assim que, de cópia em carbono da moda francesa, evoluímos para nos tornar uma reprodução em fax da mentalidade norte-americana. Quando, nas últimas três décadas, a crise do comunismo foi minando o prestígio das grandes divas intelectuais do marxismo europeu, como Jean-Paul Sartre, Althusser, Lukács, a bússola intelectual brasileira girou de Paris para Nova York5, onde despontavam duas poderosas correntes de modas culturais: a Nova Esquerda e a Nova Era, New Left e New Age. Desde a década de 60 o Brasil foi-se tornando cada vez mais dependente dos EUA em matéria de idéias. E aí somaram-se várias circunstâncias nefastas, para produzir o quadro presente da nossa miséria cultural.
        Primeira: A transferência da nossa matriz cerebral para Nova York deu-se justamente no momento em que os EUA entravam num declínio intelectual alarmante. Isto já mostra nossa radical desorientação, nossa dificuldade de selecionar as influências segundo uma escala de prioridades sensatas, nossa propensão a guiar-nos pelos sinais enganosos do brilho momentâneo. No romantismo preferimos Victor Hugo a Hölderlin. Em 22, quando havia no mundo um Rilke, um Yeats, seguimos a estrela cadente de Marinetti. Nos anos 50, ignoramos Husserl para seguir Jean-Paul Sartre, seu reflexo esmaecido. Agora deslumbramo-nos com a fosforescência de um Richard Rorty, de um Frederic Jameson, sem nos darmos conta de que é um desperdício importar novas maquiagens para filosofias defuntas, já que a produção local de cosméticos funerários é auto-suficiente6.
        Segunda: O descrédito mundial do marxismo coincidiu, no tempo, com a ascensão das esquerdas ao primeiro plano da política nacional; e justamente na hora de sua maior glória, elas se encontram mais desorientadas do que nunca, sem outros modelos a copiar senão os resíduos da decomposição intelectual norte-americana. E como a intelectualidade esquerdista ocupou todos os postos estratégicos da indústria de prestígios — dominando as universidades, as comunicações, o mercado de livros —, ela contaminou com a sua indigência a totalidade da vida cultural brasileira7.
        Terceira: Nosso declínio intelectual foi acompanhado de um notável progresso dos meios materiais de difusão da cultura: ampliação e modernização da indústria livreira, abertura de espaços para o noticiário cultural na TV e nas rádios, aumento prodigioso do número de vagas universitárias, multiplicação das verbas oficiais para a produção cultural, etc. Assim, quanto mais baixa a qualidade das idéias, mais largos os canais por onde se despejam na cabeça do povo — a latrina mental dos intelectuais. Pior ainda: premiando de supetão o intelectual jovem, despreparado e sem lastro interior, o sucesso atua como o sinal encorajador de que um imbecil precisa para tornar-se um imbecil arrogante.

Mas aconteceu — quarta circunstância —, que a arrogância palavrosa da intelectualidade encontrou, no ambiente de indignação popular contra a miséria e a corrupção, o mais potente dos estímulos que as almas insinceras necessitam para livrar-se do último vestígio de compostura: um pretexto moralizante. Quando a leviandade, a tolice, a arrogância pretensiosa são convidadas a subir ao palanque para discursar em nome da “ética”, não há mais limites para os progressos da inconsciência: a moralidade é o último refúgio dos imbecis8.

O quadro fecha-se no instante em que alguns espertalhões da geração mais velha, vendo ascenderem ao primeiro plano da vida pública esses batalhões de jovens desprovidos de juízo próprio e necessitados, por isto, de plantar no solo do apoio coletivo as mudas raquíticas de seus pensamentos, perceberam — quinta circunstância — que podiam canalizar o potencial desses meninos em proveito de uma estratégia política determinada, bastando carapintá-los um pouco. É de massas de jovens pseudoletrados que se compõe, precisamente, o “intelectual coletivo” do gramscismo: o aparelho partidário de agitação e propaganda, onde a distribuição de frases feitas, de preconceitos e de cacoetes mentais faz as vezes de vida intelectual. Daí o título deste livro.

Mas esse título é mais do que uma alusão satírica. Ele ilustra com um mínimo de imprecisão uma das propriedades essenciais daquilo que se convencionou chamar a intelligentzia. Esta palavra russa, convém lembrar, não abrange em seu significado todas as pessoas empenhadas em tarefas científicas, filosóficas ou artísticas, mas somente aquelas que falam com freqüência umas com as outras e se persuadem mutuamente de estar colaborando para algo que juram ser o progresso social e político da humanidade. Pensadores eminentes como Kurt Gödel ou Edmund Husserl, poetas de primeira grandeza como Blake e Saint-John Perse, homens espirituais de elevada estatura como Râmana Maharshi ou René Guénon não fazem parte da intelligentzia, seja porque estão pouco se lixando para o progresso social e político da humanidade, seja porque, ocupando-se preferentemente de assuntos intemporais, ficam à margem daquilo que seus contemporâneos entendem como “os grandes debates do nosso tempo” — a logomaquia universal que, se não produziu desde a Revolução Francesa nenhum resultado intelectualmente valioso, ao menos elevou de certo modo a um plano superior de existência uns duzentos milhões de seres humanos, alçando-os deste baixo mundo para o assento etéreo, já que esse é mais ou menos o número de vítimas das guerras ideológicas dos últimos dois séculos. Em nada tendo colaborado para este resultado, os seis personagens referidos não são portanto intelectuais no sentido em que o são Voltaire, Plekhanov, Sartre e D. Marilena Chauí.

Uma vez compreendido o que é a intelligentzia9, a expressão que nomeia este livro adquire plena clareza como designação de uma das atividades principais dessa categoria de seres. O imbecil coletivo não é, de fato, a mera soma de um certo número de imbecis individuais. É, ao contrário, uma coletividade de pessoas de inteligência normal ou mesmo superior que se reúnem movidas pelo desejo comum de imbecilizar-se umas às outras. Se é desejo consciente ou inconsciente não vem ao caso: o que importa é que o objetivo geralmente é alcançado. Como? O processo tem três fases. Primeiro, cada membro da coletividade compromete-se a nada perceber que não esteja também sendo percebido simultaneamente por todos os outros. Segundo, todos juram crer que o recorte minimizador assim obtido é o único verdadeiro mundo. Terceiro, todos professam que o mínimo divisor comum mental que opera esse recorte é infinitamente mais inteligente do que qualquer indivíduo humano de dentro ou de fora do grupo, já que, segundo uma autorizada porta-voz dessa entidade coletiva, “a psicanálise, com o conceito de inconsciente, e o marxismo, com o de ideologia, estabeleceram limites intransponíveis para a crença no poderio total da consciência autônoma, enfatizando seus limites” (sic)10. Assim, se um dos membros da coletividade é mordido por um cachorro, deve imediatamente telefonar para os demais e perguntar-lhes se foi de fato mordido por um cachorro. Se lhe responderem que se trata de mera impressão subjetiva (o que se dará na maioria dos casos, já que é altamente improvável que os cachorros entrem num acordo de só morder as pessoas na presença de uma parcela significativa da comunidade letrada), ele deve incontinenti renunciar a considerar esse episódio um fato objetivo, podendo porém continuar a falar dele em público, se o quiser, a título de expressão pessoal criativa ou de crença religiosa. Para o imbecil coletivo, tudo o que não possa ser confirmado pelo testemunho unânime da intelligentzia simplesmente não existe. Compreende-se assim por que o mundo descrito pelos intelectuais é tão diferente daquele onde vivem as demais pessoas, sobretudo aquelas que, imersas na ilusão do poderio total da consciência autônoma, acreditam no que vêem em vez de acreditar no que lêem nos livros dos professores da USP.

O presente livro, portanto, trata daquilo que não existe: daquilo que está fora do mundo tal como o concebe a intelligentzia, mas que está limítrofe à sua circunferência e pode ser enxergado com perfeita nitidez por quem quer que consinta em deixar de ser um intelectual por uns minutos e dê uma espiada fora, fazendo uso, mesmo discreto, dos poderes limitadíssimos da sua consciência individual.

Muitos verão neste livro um requisitório, uma diatribe furibunda e peçonhenta contra os intelectuais brasileiros. Pessoas nas quais os hormônios da emoção são mais ativos do que as luzes da inteligência11 são incapazes de compreender que às vezes temos de dizer coisas horríveis não porque elas brotem do nosso estômago, mas porque entram pelos nossos olhos; que não dizemos o que queremos, mas o que vemos — e que o fazemos sem nenhum prazer, muito menos o prazer hipócrita de um moralista de palanque, que se imagina bom quando consegue provar que alguém é ruim. Acusadoras compulsivas, pertinazes atribuidoras de suas próprias intenções a outrem, são ineptas para conceber que aquele que diz palavras amargas pode não ser movido pelo intuito de denunciar, de acusar, mas de descrever e advertir; e que se o discurso vem num tom de franqueza brutal, é porque o estado de coisas descrito ultrapassou os limites do tolerável e a advertência já vem tarde.

Não tenho a menor dúvida de que este livro terá, numa boa fatia dos ambientes letrados, a recepção-padrão dada a outros tantos livros brasileiros, alguns até bem melhores, que tinham por objetivo fazer pensar: o completo silêncio quanto ao conteúdo, uma floração majestosa de fofocas e calúnias quanto à pessoa do autor12. É característico da nossa baixeza intelectual que, quanto menos alguém compreende o simples enunciado de uma idéia, mais se julga capacitado a diagnosticar os motivos psicológicos profundos e até mesmo inconscientes que teriam levado o autor a produzi-la. Isso tem a indiscutível vantagem de desviar a discussão dos terrenos áridos da filosofia, da ciência, etc., para as férteis planícies da psicanálise-de-botequim, onde todo brasileiro se sente um expert tanto quanto em técnica de futebol, economia política e mecânica de automóveis. Os motivos diagnosticados são invariavelmente mórbidos ou sinistros — ódio à humanidade, complexo de Édipo, homossexualismo enrustido, machismo porco-chauvinista, egolatria demencial, inveja recalcada, ressentimento neurótico, desejo furioso de autopromoção etc. etc. —, de modo a encobrir a pessoa do autor com uma máscara suficientemente antipática para dissuadir qualquer leitor de fazer um esforço para compreendê-lo. Homens verdadeiramente grandes — um Mário Ferreira dos Santos, um Gilberto Freyre, um Otto Maria Carpeaux, um Oliveira Vianna — foram abundantemente submetidos a esse tipo de maquiagem caricaturante, de modo que, vendo-os reduzidos a estereótipos de fácil apreensão, cada leitor potencial crê já conhecê-los o bastante para poder dispensar-se de examinar de perto o que escreveram. Por que haveria eu de escapar a semelhante destino? A intriga e a calúnia — às vezes nada espontâneas, mas dirigidas com precisão e espírito de sistema desde os centros interessados — têm sido no Brasil a forma mais usual de crítica literária13. Parece que ninguém se dá conta de quanto o país todo — caluniadores inclusos — perde com isso. Pois a rede de temores vãos, desconfianças, preconceitos e prevenções supersticiosas que esse hábito lança sobre a nossa vida cultural aprisiona a inteligência brasileira num complexo neurótico e incapacitante, frustra o intercâmbio das inspirações, estanca o fluxo das idéias, sufoca as forças criadoras e nos condena à perpétua anemia espiritual14.

Mas há sempre muitos leitores bons, desejosos de compreender mesmo aquilo que à primeira vista os desagrade. Esses não me levarão a mal a priori, imaginando que atribuir intenções seja o mesmo que compreender; e notarão desde logo um fato que contradiz, na base, qualquer diagnóstico de hidrofobia literária que algum desafeto mais ousado pretenda me passar com a autoridade científica que lhe é conferida pelo décimo copo de cachaça: o fato de que, no país do corporativismo, onde cada qual só discursa pro domo sua, este que lhes fala é um raro e não despiciendo exemplo de brasileiro capaz de fazer graves censuras ao seu próprio grêmio, punindo, como recomenda a sabedoria milenar do I Ching, sua cidade natal antes de fustigar a alheia. Pois, tendo vivido trinta anos e picos de meu trabalho de jornalista, escritor, professor e conferencista, que raio de outra coisa sou senão um membro do clã dos letrados? O discurso anticorporativo está na moda, tem buena prensa, e um público ingênuo não se dá conta de que falar contra o corporativismo alheio é com freqüência apenas um jeito elegante de fortalecer o próprio. Invertendo essa fórmula maliciosa, critico aqui os meus. E, pela tiragem modesta deste livro que não será decerto lido pelas multidões incultas, ninguém dirá sem grave injustiça que lavei nossa roupa suja fora de casa. É claro que estabeleço uma distinção entre os homens letrados em geral e, como foi dito acima, a intelligentzia em especial, atribuindo exclusivamente a esta última a jurisdição do imbecil coletivo. Mas a intelligentzia está para a classe culta como a parte para o todo, como um ramo da família está para a família, e sua pretensão mesma de falar em nome da família inteira justifica que eu me dirija a ela como a gente do mesmo sangue — de igual para igual, no tom irritado de quem não fala de cima, julgando e condenando com neutra autoridade, mas se sente contaminado e envergonhado pelas culpas dos seus.

Quanto ao subtítulo, insere francamente este trabalho no gênero literário inaugurado por Osman Lins: estudos de problemas inculturais. Um gênero a que o ambiente nacional, a julgar pelos sinais dos tempos, não sonegará tão cedo nem temas nem motivos15. Sonegará apenas oportunidades de publicação. O lugar certo para trabalhos deste gênero é, manifestamente, a imprensa diária ou semanal, já que eles acompanham jornalisticamente o desenrolar dos fatos e se distinguem do puro noticiário apenas ao procurar, na retaguarda mais ampla da História cultural, a ligação entre o curso dos dias e o rolar dos séculos, tal como aparece aos olhos de uma consciência autônoma. Mas não creio que exista, na imprensa brasileira, uma atmosfera propícia à discussão dos temas aqui presentes, pela simples razão de que o jornalismo é o templo mesmo da intelligentzia e de que as pautas de redação constituem o traslado fiel do recorte minimizador acima referido, isto caso não constituam o seu molde. E se não há nas páginas de jornais um lugar para estes temas, muito menos há para a linguagem muito pessoal e direta, às vezes abertamente desaforada, em que me sinto mais à vontade para falar deles — não porque seja um sujeito explosivo ou ranheta por natureza, mas porque há décadas não escuto neste país senão a voz do imbecil coletivo e porque, tenham ou não sido confirmados pela psicanálise e pelo marxismo, existem limites intransponíveis para a extensibilidade do saco humano.

Até umas décadas atrás, o jornalismo brasileiro ainda não adquirira consciência do seu poder supremo e consentia em ecoar o pensamento vindo de fora, muitas vezes pessoal e direto no conteúdo e no tom. Depois, a padronização da técnica jornalística trouxe o império do pensamento mediano e da linguagem morna, escorado em toda uma tecnologia da precaução, em toda uma engenharia da dubiedade16. Bilinguis maledictus. Ao mesmo tempo, o jornalismo — junto com seu irmão siamês, o marketing — erguia-se de sua posição de servidor da cultura para se tornar seu modelo e senhor, rebaixando a produção cultural a um eco passivo do noticiário do dia.

Um outro obstáculo à publicação destes textos em jornal é o seu tamanho. As modificações “técnicas” introduzidas no nosso jornalismo a partir da década de 60 timbram em cortar tudo pelo molde da crônica, do suelto ou do “pirolito”, e um articulista de idéias é hoje um sujeito que dispara meia dúzia de frases de efeito sobre um leitor desatento e vai para casa todo envaidecido de sua habilidade de resumir a Bíblia em um parágrafo, quando Deus precisou de nada menos que dez. Afirmar é fácil, provar é difícil. O enunciado de um teorema espreme-se em uma linha; a demonstração pode requerer várias páginas. A norma jornalística vigente implica nada menos que uma proibição de provar, uma obrigação estrita de ater-se à afirmação peremptória, se possível proferida naquele tom de autoridade que, dissuadindo os possíveis objetores, abrevia razoavelmente a conversa. A preguiça de ler vem em auxílio da norma, condenando como “prolixo” tudo o que vá além da asserção pura e simples. Isto acaba por fazer do jornalismo aquilo que dizia Conrad: uma coisa escrita por idiotas para ser lida por imbecis.

Por isto estes artigos, escritos no estilo de um tipo de publicação que não existe mais, acabaram virando livro — um jornalismo sem jornal. Dos trabalhos aqui presentes, só uns poucos saíram na imprensa: um no mais modesto — ainda que não o menos valoroso — jornal carioca, a Tribuna da Imprensa, outro no Jornal do Brasil, outros dois num recém-fundado caderno literário de O Globo, e um numa revista para jornalistas, um ambiente de família onde estes profissionais se permitem o luxo da franqueza, que reprimem no exercício público de seu ofício com uma austeridade de santos ascetas.

Bons amigos recomendam-me que não fale assim, que modere o tom, que selecione os alvos e ataque um por vez de modo a não voltar todos contra mim de um só golpe. Inúteis precauções. A maledicência não é racional na escolha de suas vítimas. Posso cair em suas garras por uma frase infeliz, como posso escapar delas malgrado uma farta distribuição de verdades amargas. A fortuna é mais sábia do que a astúcia — e astúcia, ademais, não é o meu forte, notória que é entre meus conhecidos a minha demora em perceber quando alguém me faz de trouxa17.

Por fim, digo que só teria sentido contornar as suscetibilidades de grupos e facções caso meu livro se dirigisse a grupos e facções. Ora, ele dirige-se exclusivamente ao leitor individual, na solidão da sua consciência, naquele seu fundo insubornávelde que falava Ortega y Gasset, que todo homem tem e onde ele é capaz de admitir, entre quatro paredes, verdades que renega em público. Dirijo-me ao que há de melhor no íntimo do meu leitor, não àquela sua casca temerosa e servil que diz amém à opinião grupal por medo da solidão. Fazer o contrário seria um desrespeito. Portanto, iracundo leitor, não me censure em público antes de certificar-se de que não me dará razão na intimidade, quando, no coração da noite, as palavras que lhe brotarem de dentro não encontrarem outro interlocutor senão o silêncio imenso.

Maio de 1996

NOTAS

  1. Por que tomei como exemplo esse período? Por nada de mais: só porque o livro tinha de começar e terminar. Se eu não lhe impusesse arbitrariamente um fim, a colheita de amostras poderia continuar indefinidamente e tornar-se um objetivo em si, porque, se o imbecil coletivo não é eterno, parece ao menos ser infinito em sua capacidade produtiva. E este livro, para acompanhá-lo (o que não estava nos meus planos), teria de ser uma publicação periódica, uma seção de jornal como o Febeapáde Stanislaw Ponte Preta. Seria o Febeapá dos intelectuais…
  2. Não obstante formem uma trilogia, cada um dos três livros pode ser lido independentemente, sem prejuízo da compreensão.
  3. Como nenhuma das idéias que compõem a constelação mental do imbecil coletivo é de origem nacional, não escapará ao leitor atento que este livro, tomando como seu foco imediato de atenção o caso brasileiro, constitui uma crítica da cultura contemporânea em escala mundial, ou pelo menos euro-americana. O Brasil torna-se ilustrativo de certas tendências mais perigosas embutidas nessa cultura, justamente por sua posição de receptor passivo e indefeso de influências que, nos seus países de origem, são às vezes desafiadas, combatidas e vencidas pela oposição consciente de intelectuais de valor. O Imbecil Coletivopode ainda ser compreendido como um prefácio, informal e jornalístico, ao meu estudo maior O Olho do Sol. Ensaio sobre Inteligência e Consciência — que na sua primeira parte abordará de maneira mais sistemática, e com um panorama histórico mais amplo e uniforme, a luta da falácia coletivista para subjugar e perverter a consciência humana, e na segunda enfocará o mesmo assunto pelo prisma puramente teórico da gnoseologia. E, ao leitor que seja mais atento ainda, ficará patente por trás da forma de coletânea a unidade do presente livro — a unidade de um enfoque único lançado sobre amostras variadas e ocasionais.
  4. As reações cíclícas de nacionalismo epidérmico nada podem contra isso. Fundam-se na idéia de que a naçãodeve ter um pensamento independente antes que os pensadores nacionais o tenham. Chutam para um coletivo abstrato a responsabilidade que incumbe a indivíduos concretos. Substituem um coletivismo servil por um coletivismo xenófobo, que nos isola do mundo por uns tempos, até cairmos de novo no temor de ficar para trás. É um círculo vicioso.
  5. “A decisão do Itamaraty de retirar a língua francesa da prova de seleção para diplomatas trouxe como ponta de lança uma polêmica e, a reboque, uma constatação: a influência da cultura francesa no Brasil vive do passado… A atriz e cineasta Norma Bengell (…) disgnostica: ‘As novas gerações estão mais ligadas ao cinema americano.’ (…) O escritor Marcos Santarrita lamenta: ‘Parece que secaram as idéias na França. Os últimos pensamentos originais na França foram os de Sartre, Camus e Merleau-Ponty.’” (Berenice Seara e Elizabeth Orsini, “Outono de uma referência cultural”, O Globo, 30 de março de 1996.) Esses parágrafos mostram que 1º, o giro do eixo de influência se tornou consciente e assumido; 2º, os intelectuais brasileiros, de modo geral, só acompanham, da produção de idéias no Exterior, as partes mais vistosas; portanto, do empobrecimento da mídiacultural parisiense, deduzem um esgotamento da produção cultural francesa, e rapidamente voltam os olhos na direção de um foco mais atraente. Mas o fato é que nas últimas décadas a França nos deu um Pierre Boudieu, um Éric Weil, um André Marc, um René Girard — pensadores muito mais profundos e consistentes do que Sartre ou Camus —, e infinitamente mais valiosos do que todos os cérebros acadêmicos dos EUA somados e multiplicados. Só que estão fora do círculo de atençãolowbrow. V., adiante, o capítulo “O cisco e a trave”.
  6. E mesmo quando, movidos por um remanescente prurido nacionalista, escolhemos venerar de preferência, entre os autores norte-americanos, aqueles que são os críticos mais severos da cultura de seu país, acabamos por consolidar ainda mais nossa posição de consumidores passivos e sem critério de seleção; porque a produção de autocríticas é uma das mais potentes indústrias de uma cultura afetada de radical falta de assunto, e há décadas os norte-americanos não têm nada a comunicar ao mundo senão os ecos de seus conflitos domésticos. A esta discussão local um auditório mundial sensato deveria responder normalmente com o mais soberbo desinteresse, mas, por efeito do marketingeditorial, ela acaba parecendo universalmente importante, sobretudo aos olhos de povos incapazes de formular seus problemas em seus termos próprios, e necessitados portanto de moldar seu debate interno por uma pauta estrangeira. Assim, quanto mais a inteligência norte-americana se fecha num provincianismo egocêntrico e perde o sentido da medida universal, mais tendemos, nós outros de south of Rio Grande, a fazer dela o padrão da medida universal: trocamos o senso da História pelo senso da atualidade americana. De um só golpe, alienamo-nos de nós mesmos e do universo, deixando que o gigante enlouquecido nos arraste e nos aprisione em seu delírio de auto-análise. Imitando uma cultura que se perdeu de si mesma, perdemo-nos ainda mais, e já não somos capazes nem de julgá-la nem de julgar a nós próprios. Triste exemplo disto é a admiração exagerada que concedemos a certos críticos atuais da cultura norte-americana sem repararmos que nada nos dizem que já não tenha sido dito, e melhor, por alguém das gerações passadas.
  7. O mais curioso, aí, é que as pessoas deixam de ser marxistas mas não sabem ser outra coisa, porque tudo o que leram na vida foi com os olhos de Marx. O resultado é que esses ex-marxistas continuam raciocinando dentro de um quadro de referência demarcado pelo materialismo dialético, pela luta de classes e por todos os demais conceitos clássicos de um marxismo que já não ousa dizer seu nome…
  8. Já o velho Bernanos, um profeta, advertia que jamais se deve fazer — nem mostrar — o mal aos imbecis: primeiro, porque eles têm mais facilidade do que as outras pessoas em sentir-se indignados; segundo, porque têm a propensão incoercível de reunir-se em milhares, em milhões, para reforçar mutuamente sua cólera; terceiro, porque, uma vez encolerizados por motivo justo, eles perdem todo o senso das proporções na produção de injustiças reparadoras: o destino do mundo teria sido diferente se desde o começo do século as imagens da guerra, da miséria, da fome e da exclusão social não houvessem intoxicado de justa cólera os cérebros de milhões de jovens imbecis, predispondo-os a encontrar consolo nas promessas de Lênin, Stálin, Mao Tsé-tung, Benito Mussolini e Adolf Hitler.
  9. Caso não esteja compreendido, pode-se consultar N. Berdiaev, Les Sources et le Sens du Communisme Russe(Paris, Le Seuil, 1948, Cap. I). Mas se o leitor não encontrar o livro de Berdiaev pode recorrer ao seu exemplar doméstico da Bíblia (I Cor.,: I:26), onde, segundo aprendi em C. S. Lewis, se encontra a mais precisa definição da referida classe: sofoi kata sarka, sofoi kata sarka, “sábios segundo a carne”.
  10. Marilena Chauí, “Ética e Universidade”, em Ciência Hoje(revista da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), vol. 18, nº 102, agosto de 1994. A frase é um tanto esquisita, mas, no conteúdo, muito elucidativa. Ela nos informa que a psicanálise e o marxismo, apesar dos enganosos dizeres nas capas dos seus livros respectivos, foram descobertas coletivas, já que as consciências individuais dos srs. Freud e Marx, fechadas em seus limites intransponíveis, jamais poderiam atinar com esse gênero de coisas. A prova irrefutável é que todo mundo já era psicanalista antes de Freud e marxista antes de Marx, entrando na história estes dois senhores apenas nos papéis de maridos enganados — os últimos a saber.
  11. Um dos muitos capítulos faltantes neste livro trataria da festiva e equivocada recepção dada nesta parte do mundo ao livro do neurologista português Antônio Damásio, O Erro de Descartes(São Paulo, Companhia das Letras, 1996) e ao de Daniel Goleman, Inteligência Emocional (trad. Marcos Santarrita, Rio, Objetiva, 1996). Ambos esses livros enfatizam uma verdade óbvia, esquecida ou desprezada pelo establishment psicológico norte-americano: o processamento das emoções é mais decisivo para um bom desempenho intelectual do que o QI. Acontece que ambos os autores, para divulgar essa idéia, recorreram ao expediente publicitário de opor sua apologia da inteligência emocional ao “racionalismo” de Descartes e Kant. Mera figura de linguagem, é claro, que não se funda numa visão historicamente fidedigna das doutrinas desses dois pensadores, mas na sua imagem popular, brutalmente simplificadora e caricatural (Descartes, racionalista em metafísica, era em ética um voluntarista bastante “irracional”; e chamar Kant de racionalista é coisa de analfabeto). No Brasil, porém, Damásio e Goleman foram levados ao pé da letra, com ingenuidade caipira (v. caderno Idéias do Jornal do Brasil, 6 de abril de 1996), daí resultando uma grossa apologia da emoção contra a razão, fundada na confusão mais burra entre as emoções e seu processamento intelectual, bem como na total indistinção entre emoção direta e emoção estética, ou imaginativa. Tudo, é claro, para lisonjear o preconceito anti-intelectual de certas faixas de público e aproveitar o sucesso do filme Razão e Sensibilidadecomo excipiente para venda de livros. Coisa, enfim, de uma baixeza inominável, que reduz o jornalismo de idéias ao nível de divulgação científica para adolescentes.
  12. Um de meus livros anteriores — Uma Filosofia Aristotélica da Cultura— já teve esse mesmo destino, embora não falasse mal de ninguém e se ativesse a inofensivas especulações em torno da lógica de Aristóteles.
  13. V. adiante o capítulo “Carta a Oxfordgrado”.
  14. É também previsível que alguns se dispensem de entrar em comentários psicológicos, não por serem especialmente discretos, mas por imaginarem, não sem alguma razão, que para sujar de vez uma reputação a rotulagem ideológica é muito mais eficaz do que a difamação pessoal direta e possui ainda a vantagem de parecer coisa intelectualmente elevada. Uma boa parte do público não tem, de fato, a menor condição de conceber, sob o nome de “análise crítica”, nada mais inteligente do que o cálculo dos coeficientes relativos de progressismo e reacionarismo, do qual se obtém com precisão matemática o critério de admissão ou rejeição de um autor no círculo das pessoas de bem. , adiante, o capítulo “Fanatismo sem nome”.
  15. Osman Lins, Do Ideal e da Glória. Problemas Inculturais Brasileiros (2a. ed., São Paulo, Summus, 1977) e Evangelho na Taba. Outros Problemas Inculturais Brasileiros (São Paulo, Summus, 1978).
  16. Daí as reações de virginal escândalo dos nossos letrados às críticas mordazes — e, no conteúdo, nada mais que justas — feitas por Bruno Tolentino a uma tradução de Augusto de Campos. Comento isto mais adiante.
  17. Ademais, se O Imbecil Coletivo provocar irritação e desagrado, não será por muito tempo: não somente ele será esquecido em breve, como também passará, junto com ele, o interesse do público pelos miúdos personagens de que trata. E, para completar, nem eu mesmo voltarei ao assunto, de vez que, se a Providência não dispuser em contrário, encerrarei com este livro minha carreira de polemista, para dedicar-me doravante a trabalhos teóricos sobre temas que não despertarão neste país a menor comoção.

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