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A Nova Era e a Revolução Cultural: Prefácio à segunda edição

PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO

DECORRIDOS alguns meses da primeira edição, rapidamente esgotada, os acontecimentos não fizeram senão confirmar com igual rapidez os diagnósticos que apresentei neste livro.

O Brasil vive, de um lado, uma crise profunda da inteligência, de que é reflexo o deslumbramento apalermado com que recebemos e enaltecemos, como altas produções do espírito, as idéias mais sonsas e descabidas que nos chegam do estrangeiro. O sr. Capra não foi o último da série. Depois dele recebemos a visita e as luzes do sr. Richard Rorty, cuja proposta, filosoficamente indecorosa e moralmente repugnante, os pensadores locais não ousaram criticar senão com precauções e desculpas que raiavam o servilismo1.

Esse fenômeno é, em parte, efeito passivo da crise da inteligência norte-americana, como explico num outro livro que deverá sair logo após esta segunda edição2.

Mas, de outro lado, ele é também o resultado de uma política deliberadamente conduzida pelos movimentos de esquerda, interessados em reduzir toda a vida intelectual brasileira a um coro unanimista de reclamações. O rebaixamento das artes, da filosofia e até de algumas ciências à condição de megafones da propaganda revolucionária, que os melhores pensadores marxistas sempre rejeitaram como uma tentação aviltante, tornou-se a praxe estabe lecida, que ninguém ousa contestar, menos pelo temor de um revide explícito do que pela certeza absoluta de que seus ouvintes já não poderão compreendê-lo, tão longe estão de imaginar que a cultura possa ter outros e mais elevados fins. Pois o dogma da cultura militante não se adotou como opção consciente, vencedora no confronto com outras concepções possíveis, mas se infiltrou sorrateiramente, como um pressuposto implícito, aproveitando-se da ignorância das novas gerações, que ao despertarem para o mundo da “cultura” já a encontram identificada à propaganda ideológica como se este fosse o seu estado natural e seu destino eterno. O pior é que essa propaganda já não transmite sequer idéias ou símbolos de uma doutrina revolucionária, mas limita-se a repetir, de maneira rasa, literal e direta, as reivindicações do dia: fora Collor, morte aos corruptos, viva o Betinho, queremos sexo. Todos os anões do Congresso, reunidos e somados, não fizeram tanto mal a este país quanto essa prostituição completa da inteligência às ambições políticas imediatas e às paixões mais corriqueiras. O dinheiro perdido pode-se ganhar novamente; o espírito, quando se vai, não volta mais. Os templos abandonados — é a experiência universal — tornam-se para sempre covis de feiticeiros e bandidos.

Pelo efeito conjugado da decadência norte-americana e da ação local tendente a amassar e fundir todos os cérebros deste país na fôrma sem rosto do “intelectual coletivo” gramsciano, o fato é que a inteligência nacional está indo ladeira abaixo, ao mesmo tempo que sobe, das ruas e dos campos, o rumor sombrio de uma revolução em marcha.

Sim, o Brasil está inequivocamente entrando numa atmosfera de revolução comunista. A imbecilização não é senão um sintoma: o temporário obscurecimento da luz, mencionado pelo I Ching, no qual se geram, entre as dobras da noite, os monstros que irão povoar as visões de um despertar temível.

Esses monstros já não são tão pequenos para que um olhar atento não consiga enxergá-los e espantar-se com a velocidade com que vão crescendo no ventre da inconsciência nacional.

O próprio unanimismo da intelectualidade é um dos sinais. Mas outro, aparentemente contraditório, é a proliferação das reivindicações gremiais, do espírito de divisão, na hora em que o país mais necessita do sacrifício das partes pelo bem do todo. Em cada classe, em cada região, em cada sindicato, em cada empresa, em cada família, em cada alma, o que se nota é um sentimento agudo e exasperado dos próprios direitos e o completo amortecimento do senso do dever. É o predomínio desastroso do reivindicar e protestar sobre o criar e oferecer. Quanto menos cumpre sua obrigação, mais cada um se crê no direito de acusar o próximo. O governo reprime os aumentos abusivos de preços enquanto protege as elevadas taxas de juros e alimenta a gigantesca tênia petrolífera que pela majoração periódica dos combustíveis vai marcando o compasso para a subida generalizada do custo de vida. O pai de família vocifera contra a corrupção dos políticos enquanto solicita a um contador que “dê uns retoques” na sua declaração de rendimentos para tornar mais verossímil a mentira que o isentará do imposto. As empresas censuram o governo no instante mesmo em que elevam os preços de seus produtos e serviços acima de tudo quanto permite a lei e recomenda a decência. A esquerda clama contra as oligarquias enquanto promove greves de funcionários públicos voltadas diretamente contra os direitos da população. Os intelectuais e artistas clamam contra as injustiças enquanto levam vida de príncipes às expensas do erário público. A imprensa acusa, delata, aponta homens e instituições ao opróbrio, enquanto discretamente, em congressos de profissionais longe dos olhos da multidão, confessa sua própria falta de decoro, ética e dignidade. Os sem-terra exibem diante das câmeras sua pobreza comovente enquanto gastam fortunas em operações paramilitares que o próprio exército não teria verba para sustentar. O discurso do unanimismo , como o coro entusiástico das torcidas durante a Copa, não é senão um Ersatz, a ostentação de uma unidade postiça que encobre a luta covarde e sem regras de todos contra todos. O egoísmo, a inconsciência, a maldade ganham terreno a cada nova investida da “campanha pela Ética”.

Quia bono? A quem aproveita o crime? Quem lucra com a dilaceração da alma nacional num confronto vil de todos os egoismos e de todas as inconsciências? As pesquisas de opinião respondem que, de todos os brasileiros, o único que não tem medo de ser feliz já ganhou quarenta por cento das intenções de voto para a Presidência.

Poderia ser uma coincidência, o efeito acidental de uma conjuntura. Mas, recuando em busca das suas raízes, vemos que esse efeito foi longamente desejado e meticulosamente preparado pela mais hábil e talentosa geração de intelectuais ativistas já nascida neste país. A geração que, derrotada pela ditadura militar, abandonou os sonhos de chegar ao poder pela luta armada e se dedicou, em silêncio, a uma revisão de sua estratégia, à luz dos ensinamentos de Antonio Gramsci. O que Gramsci lhe ensinou foi abdicar do radicalismo ostensivo para ampliar a margem de alianças; foi renunciar à pureza dos esquemas ideológicos aparentes para ganhar eficiência na arte de aliciar e comprometer; foi recuar do combate político direto para a zona mais profunda da sabotagem psicológica. Com Gramsci ela aprendeu que uma revolução da mente deve preceder a revolução política; que é mais importante solapar as bases morais e culturais do adversário do que ganhar votos; que um colaborador inconsciente e sem compromisso, de cujas ações o partido jamais possa ser responsabilizado, vale mais que mil militantes inscritos. Com Gramsci ela aprendeu uma estratégia tão vasta em sua abrangência, tão sutil em seus meios, tão complexa e quase contraditória em sua pluralidade simultânea de canais de ação, que é praticamente impossível o adversário mesmo não acabar colaborando com ela de algum modo, tecendo, como profetizou Lênin, a corda com que será enforcado.

A conversão formal ou informal, consciente ou inconsciente da intelectualidade de esquerda à estratégia de Antonio Gramsci é o fato mais relevante da História nacional dos últimos trinta anos. É nela, bem como em outros fatores concordantes e convergentes, que se deve buscar a origem das mutações psicológicas de alcance incalculável que lançam o Brasil numa situação claramente pré-revolucionária, que até o momento só dois observadores, além do autor deste livro, souberam assinalar, e aliás mui discretamente3.

A expectativa, a esperança, o anseio da revolução são tão velhos, tão arraigados na alma da intelligentzia nacional4 que, mesmo diante do fracasso mundial do socialismo, ela não terá forças para resistir à tentação de fazê-la, agora que a conjuntura local, pela primeira vez na nossa História, lhe oferece os meios de chegar ao poder. O Brasil, de fato, tem um descompasso crônico em relação ao tempo da História universal. O reconhecimento mundial da debacle do comunismo ecoou neste país — paradoxalmente, segundo a lógica humana, mas coerentemente, segundo a linha constante da História nacional — como um toque de esperança: chegou a nossa vez de conquistar aquilo que já ninguém mais quer.

Durante algum tempo, nutri a insensata esperança de que o PT expeliria de si o veneno gramsciano e se transformaria no grande partido socialista, ou trabalhista, de que o Brasil precisa para compensar, na defesa do interesse dos pequenos, o avanço neoliberal aparentemente irreversível no mundo, e propiciar, pelo sadio jogo de forças, o movimento regular e harmônico da rotatividade do poder que é a pulsação normal do organismo democrático. Movido por essa ilusão, votei em Lula para presidente. Hoje não votaria nele nem para vereador em São Bernardo. É que, pela sucessão de acontecimentos desde a campanha do impeachment, o PT mostrou sua vocação, para mim surpreendente, de partido manipulador e golpista, capaz de conduzir o país às vias fraudulentas da “revolução passiva” gramsciana, usando para isso dos meios mais covardes e ilícitos — a espionagem política, a chantagem psicológica, a prostituição da cultura, o boicote a medidas saneadoras, a agitação histérica que apela aos sentimentos mais baixos da população —, e de adornar esse pacote de sujidades com um discurso moralista que recende a sacristia. O partido que, para sabotar um candidato, promove no lançamento da nova moeda algo como uma “greve preventiva” sob a espantosa alegação de uma possibilidade teórica de danos salariais futuros, sabendo que essa greve resultará em aumento do preço dos combustíveis e em retomada do ciclo inflacionário, dando facticiamente confirmação retroativa aos danos anunciados, é que, francamente, decidiu imitar o capeta: produz o mal para no ventre dele gerar o ódio, e no ventre do ódio o discurso de acusação. A greve dos petroleiros não deu certo, mas ela é o mais puro exemplo do que o povo denomina “apelação”: o recurso extremo usado para fins levianos.

Se o PT faz isso, é porque perdeu sua confiança no futuro majestoso a que o destinava a nossa democracia em formação, e, excitado por indícios de um sucesso momentâneo que teme não repetir-se nunca mais, resolveu apostar tudo no jogo voraz e suicida do it’s now or never. Não quer mais apenas eleger o presidente, governar bem, submeter seu desempenho ao julgamento popular daqui a cinco anos, fazer História no ritmo lento e natural dos moinhos dos deuses: quer tomar o poder, fazer a Revolução, desmantelar os adversários, expelir da política para sempre os que poderiam derrotá-lo em eleições futuras. Nos termos da poesia de Murillo Mendes, preferiu, às “lentas sandálias do bem, as velozes hélices do mal”. A mitologia gramsciana, diagnosticando pomposamente a “transição para um novo bloco histórico”, deu uma legitimação verbal a essas pretensões, e eis que o Brasil, mal tendo ingressado no caminho da democracia, já se apressa a abandoná-lo pelo atalho da Revolução. Aonde ele leva, é algo que o mundo sabe, mas que importa o conhecimento do mundo às hordas de menores-de-idade que a lisonja esquerdista consagrada em norma constitucional transformou na parcela decisiva do eleitorado, dando-lhes poder antes de lhes dar educação? O que importa é aproveitar o momento, levar a todo preço o Lulalá, carregado nos ombros de garotos raivosos, insolentes e analfabetos, e, antes que o “consenso passivo” da população tenha tempo de avaliar o que se passa, atrelar irreversivelmente o país ao carro-bomba que se precipita, morro abaixo, no rumo da Revolução.

A geração que atingiu a idade adulta no momento em que a ditadura fechava as portas de acesso à vida política está agora com cinqüenta anos. Ao longo dos últimos trinta ela esperou, sonhou, planejou, desejou, cobiçou entre lágrimas de rancor impotente, e, sobretudo, leu muito Antonio Gramsci. Que a Revolução socialista já tenha mostrado ao mundo sua verdadeira face, que ela já tenha provado cabalmente que não vale a pena, isto pouco interessa. A geração dos guerrilheiros fará o que longamente se preparou para fazer. Pouco importa que, pelo relógio do mundo, tenha passado a hora. O fim da festa é, para o catador de lixo, o sinal de que a sua festa está para começar.

Por essas razões é que este livro, aparentemente constituído de pedaços inconexos, começa a mostrar, pela força dos acontecimentos externos, a unidade que, no plano literário, o autor não teve o tempo ou o engenho de lhe dar. Sob a aparência comprometedora de uma salada histórica que mistura Lênin, o I Ching, Max Weber, Freud e o Comando Vermelho, ele aponta, pela ordem e, segundo creio, com lógica, o sintoma e a causa da doença da intelectualidade brasileira: a origem ao menos parcial da nossa vulnerabilidade à falsa mensagem do sr. Capra está nas idéias de Antonio Gramsci, transformadas em prática pela geração de intelectuais esquerdistas que, na Ilha Grande, fez ofício de parteira do Comando Vermelho, e que agora dá o tom da vida mental neste país. Se, na primeira edição, não consegui dar desse fenômeno uma exposição seguida e coesa, tendo de adotar, em vez disso, um enfoque prismático e desnivelado, antes sugerindo em fragmentos do que declarando por extenso o sentido do conjunto, não foi por nenhuma intenção profunda: foi por autêntica incapacidade de fazer de outro modo. Mas não creio, por isto, merecer censura: afinal, aqui foi dito aos trancos e pedaços o que ninguém mais disse de maneira alguma. Do primeiro a esboçar a unidade de um quadro confuso, não se exige que seja completo; e do primeiro a anunciar um perigo terrível, não se exige que fale claro e ordenado segundo o bom estilo. Esbaforido e gaguejante, semilouco e abstruso, ele afinal presta um serviço de emergência. Como diz um provérbio árabe: “Não repares em quem sou, mas recebe o que te dou.”5

Rio de Janeiro, junho de 1994.

NOTA PRÉVIA [ DA 1A EDIÇÃO ]

A “NOVA ERA” da qual Fritjof Capra se tornou festejado porta-voz e a “Revolução Cultural” de Antonio Gramsci têm algo em comum: ambas pretendem introduzir no espírito humano modificações vastas, profundas e irreversíveis. Ambas convocam à ruptura com o passado, e propõem à humanidade um novo céu e uma nova terra.

A primeira vem alcançando imensa repercussão nos círculos científicos e empresariais brasileiros. A segunda, sem fazer tanto barulho, exerce há três décadas uma influência marcante no curso da vida política e cultural neste país.

Nenhuma das duas foi jamais submetida ao mais breve exame crítico. Aceitas por mera simpatia à primeira vista, penetram, propagam-se, ganham poder sobre as consciências, tornam-se forças decisivas na condução da vida de milhões de pessoas que jamais ouviram falar delas, mas que padecem os efeitos do seu impacto cultural.

Para os adeptos e propagadores conscientes das duas novas propostas, nada mais reconfortante do que a passividade atônita com que o público letrado brasileiro tudo recebe, tudo admite, tudo absorve e copia, com aquele talento para a imitação maquinal que compensa a falta de verdadeira inteligência.

Mas a Revolução Cultural de Gramsci e o movimento da “Nova Era” não são simples modas, que se possam adotar e abandonar à vontade, com a despreocupação de quem troca de cuecas. São propostas de imensa envergadura, que, uma vez aceitas, mesmo implicitamente, mesmo informalmente, mesmo hipoteticamente, levam a conseqüências de alcance incalculável. Essas conseqüências não pouparão, decerto, aqueles que tiverem aderido às suas causas por mero passatempo, sem uma clara consciência das responsabilidades em jogo. Não pouparão ninguém que esteja dentro do seu raio de ação. E todos estamos.

É, portanto, uma leviandade suicida absorver idéias como essas sem um exame crítico preliminar. É este exame que inauguro no presente livreto, ciente de que, ao fazê-lo, me adianto a uma lerda opinião pública que nem de longe levantou ainda as questões aqui discutidas, mas nem por isto o faço com menor atraso em relação às exigências de minha própria consciência, que me cobra este trabalho desde que pela primeira vez falei em público sobre estes assuntos, em l987. Falador prolífico, sou tardo em escrever, motivo pelo qual meu sentimento de urgência se transforma, às vezes, em sentimento de culpa. A urgência, no caso, era a de esclarecer a ligação entre aquelas duas correntes de pensamento; ligação que, uma vez percebida, revela a inconsistência de ambas, e de ambas nos liberta. Por não percebê-la, a mente brasileira gira hoje em falso em torno do eixo balizado por esses dois pólos. Pelo número de adeptos e pelos postos estratégicos que alguns destes ocupam na sociedade, Capra e Gramsci dominam as duas correntes mentais mais atuantes deste país. O fato de que jamais tenham sido confrontados e de que a idéia mesma de confrontá-los soe estranha mostra apenas que o país não tem clara consciência das alternativas em que se debate, e que a vida mental nele tende a cindir-se em devoções estanques a deuses que se desconhecem mutuamente e que mutuamente se hostilizam nas trevas, como espadachins vendados. Trata-se portanto, aqui, de esclarecer um conflito subconsciente, em que o destino de um país se decide entre as sombras de um sonho. Brasil sonâmbulo: para que sustentas com dinheiro e lisonjas os teus intelectuais, se não é para te revelarem a ti mesmo, para te dizerem o que se passa contigo para além da superfície do noticiário?

Os três capítulos que compõem este livro reproduzem, tanto quanto possível, o conteúdo de aulas e conferências que dei sobre os respectivos temas, seja no Seminário Permanente de Filosofia e Humanidades, que dirijo no Instituto de Artes Liberais, seja fora dele. O capítulo sobre Fritjof Capra foi redigido e distribuído aos meus alunos em setembro de l993, quando se anunciava a próxima vinda ao Brasil do guru da Nova Era, promovida pela Universidade Holística de Brasília. Os outros, seus naturais complementos como se verá, foram escritos agora em fevereiro de l994, especialmente para este livro. Os apêndices ilustram detalhes que importam à compreensão do Cap. II.

Reconheço que, ao menos quanto a Gramsci, o exame que apresento é superficial, que haveria ainda milhares de coisas a dizer que aqui não foram ditas.6 Mas alguém tem de começar, e, na falta de melhores cérebros que se dispusessem a digerir o assunto, a coisa sobrou para mim. Quanto a Capra, ele está longe de representar a “Nova Era” na sua totalidade; embora alguns vejam nele uma síntese desse movimento, ele constitui apenas um seu sintoma, ainda que agudo e sonante. Que ninguém me censure, portanto, a incompletude destas análises: minhas amostras levam o rótulo de amostras, com altiva modéstia. Também não tem, este trabalho, a menor pretensão de interferir no curso das coisas. Seu único anseio é fornecer, aos que tenham um sincero desejo de compreender os acontecimentos, alguns meios de fazê-lo. Ora, os que têm esse desejo são sempre poucos, no meio do vozerio, entusiástico ou ameaçador, dos que crêem já saber tudo e que não aguardam senão com impaciência que o mundo se curve às suas propostas. Àqueles poucos e silenciosos, portanto, é dedicado este trabalho. Dentre eles, destaco o romancista Herberto Sales, que leu em versão datilográfica o primeiro capítulo e lhe fez referências generosas, que agradeço comovido. Tanto mais comovido porque, se eu tivesse de escolher um guru estilístico, ele não seria outro, na presente fase da nossa literatura, senão Herberto Sales. Destaco ainda o valente grupo de alunos e ouvintes que há anos acompanha meu trabalho com um interesse que me reconforta.

Rio, fevereiro de 1994

Olavo de Carvalho

 

NOTAS

  1. José Arthur Gianotti, “Conversa com Richard Rorty”, Jornal do Brasil, 26 de maio de 1994. É no mínimo estranho que um homem como Gianotti, tão valente ao expor idéias políticas mesmo quando lhe atraiam a ira dos sumos-sacerdotes da esquerda nacional, se cubra de cautelas ao criticar um pensamento tão vulnerável como o de Rorty. Explica-se, talvez, pela crônica timidez uspiana, inibição intelectual que se tornou, em versão fetichizada, a caricatura tupiniquim do “rigor” ensinado pelos primeiros mestres — franceses — fundadores da USP. O “rigor” uspiano é na verdade moleza, tremor da geléia terceiromundana ante a autoridade dos ídolos da moda — compensação junguiana pela petulância ante o legado espiritual do passado. Mesmo em sua versão original européia, herdeira de nobres tradições filosóficas, um rigorismo acadêmico inibitório torna-se muitas vezes o refúgio comunitário onde o intelecto mal dotado vai abrigar-se contra os perigos da investigação solitária — vale dizer, contra o exercício mesmo da filosofia. O verdadeiro rigor filosófico, ao contrário, é pura coragem interior, não se curva senão ante a evidência e não tem nada de temor reverencial adolescente ( ou colonial ) ante os prestígios acadêmicos do dia. Com a ascensão da intelectualidade paulista ao primeiro plano da vida nacional, a inversão uspiana do rigor, que devota ao prestígio o culto que nega à verdade, ameaça contaminar o pensamento brasileiro como um todo, selando a morte da inteligência nesta parte do mundo. Nada vai aqui contra Gianotti, homem capaz e correto, que só peca por admirar quem não merece — ou por fingir admirar, talvez, já que o floreio bajulatório involuntariamente irônico é outra marca registrada do estilo uspiano, onde faz as vezes de polidez acadêmica.
  2. O Imbecil Coletivo. Atualidades Inculturais Brasileiras, Rio, IAL & Stella Caymmi Editora, 1994, que forma, com o presente volume e com O Jardim das Ilusões. Epicuro e a Revolução Gnóstica, que também virá a público em breve, uma trilogia dedicada ao estudo da patologia cultural brasileira na presente fase da nossa História.
  3. Um deles foi Fernando Henrique Cardoso ( Jornal do Brasil, 11 nov. 93 ), um homem que conhece as esquerdas muito bem e que, por isto mesmo, sentiu o dever de se opor a elas no momento em que mais poderia ajudá-las. O outro foi Oliveiros da Silva Ferreira, que vem explorando o assunto em vários artigos publicados em O Estado de S. Paulo.
  4. O mito da Revolução Brasileira é um componente ativo do pathosesquerdista desde a década de 30. “Fadado a um grande destino, o Brasil seria a terceira grande revolução neste século. A primeira, a União Soviética, segunda a República Popular da China, e a terceira, a República Democrática Popular do Brasil” ( Luís Mir, A Revolução Impossível, São Paulo, Best Seller, 1994, p. 10 ).
  5. Nada retirei nem alterei do original nesta Segunda Edição, apenas corrigi erros de grafia, acrescentei este Prefácio, uns quantos adendos, e adendos de adendos, e muitas notas de rodapé. O leitor austero achará que são excrescências complicatórias, mas gosto delas justamente por isso, porque eliminam do texto a enganosa linearidade e lhe dão aquele aspecto vivente de rede nervosa, de trama vegetal, que faz com que, precisamente, um texto seja um texto.
  6. Limito-me ao estudo da estratégia e, mais brevemente, de alguns aspectos da gnoseologia, sem tocar por exemplo na sociologia gramsciana, que mereceria — não por seu valor científico, mas pela força persuasiva da sua alucinante falsificação da realidade — um exame mais atento. Prometo fazê-lo no livro O Antropólogo Antropófago. A Miséria das Ciências Sociais, a sair no ano que vem. Também não pude senão mencionar de longe as concepções estéticas e literárias de Gramsci, tão influentes até hoje, mas sobre as quais não pretendo escrever nada nunca, se os deuses me pouparem esse castigo. [ Nota da 2a. ed. ]

 

Comentários a Simone Weil

Olavo de Carvalho

Seminário de Filosofia, 9 de janeiro de 1994

A linguagem da mística recorre com freqüência aos paradoxos, que não podem expressar verdade alguma exceto metaforicamente, o que vale dizer: ambiguamente. E quantas vezes, ao longo da História, o amor a Deus não tem se pervertido num amor à ambigüidade, numa rejeição das verdades mais patentes, num rebuscamento de contradições artificiais e desnecessárias! Que esta sofística piedosa tenha o alto propósito de indispor o descrente contra sua própria razão para atraí-lo aos braços da fé, ninguém nega. Que, porém, ela arrisque ter os resultados mais decepcionantes, entre os quais o de confundir o pregador mesmo, é também um fato, ainda que quase nunca reconhecido. Que, enfim, ela possa servir ao demônio tanto quanto pretende servir a Deus, eis aí o que soará como um escândalo, mas que a história do pensamento Ocidental confirma em toda a linha, e que aliás já fora anunciado por Jesus, ao advertir: “Seja o vosso discurso: sim, simnão, não — o mais é conversa do maligno.”

Todos os desvarios da dialética hegeliana, marxista e nietzscheana foram assim prefigurados pela teologia apofática1.

Deus, afirma a Bíblia, confunde a sabedoria dos sábios. Mas será lícito que os sábios se ponham a confundir-se a si mesmos, a pretexto de arrebatamento religioso?

Não bastam, para deslumbrar-nos, os mistérios supremos cuja solução Deus guarda para si? Será preciso semear de paradoxos artificiosos o caminho dos homens sobre a Terra? E que valeriam os mistérios supremos, se não tivessem solução nem mesmo para Deus? Os mistérios valem pelo Sentido, não pela misteriosidade. Eis aí o véu sutilíssimo que separa a mística da mistificação. E todo escrito místico, por natureza, contém sementes de mistificação — os de Simone Weil como qualquer outro. Cabe ao comentário filosófico separar o joio do trigo.

Nas páginas que seguem, vou citando e comentando, sem um plano prévio, as passagens de escritos místicos de Simone Weil onde essa separação é necessária.

Começo pelo trecho que diz:

O bem é impossível. — Mas o homem tem sempre a imaginação à sua disposição para ocultar de si essa impossibilidade do bem em cada caso particular (basta, para cada caso particular que não nos esmague, velar uma parte do mal e acrescentar um bem fictício — e alguns podem fazê-lo, mesmo se eles mesmos são esmagados) e, no mesmo ato, para ocultar de si “quanto a essência do necessário difere da do bem” e impedir-se de verdadeiramente encontrar Deus, que não é outra coisa senão o bem mesmo, o qual não se encontra em parte alguma neste mundo2.

Se não existe um bem em nenhum caso particular, e se de outro lado Deus é “o bem mesmo”, isto é, o bem essencial, então todos os bens particulares são ilusórios e o único bem autêntico é o universal. Mas este universal, se não se encarna em nenhum bem particular, é mera forma conceptual vazia.

Ou existe algum bem neste mundo, ainda que parcial e provisório, ou Deus é uma Idéia platônica.

Simone confunde o parcial com o ilusório, o impermanente com o irreal, o temporal com o nada. Ou faz que confunde, para confundir o descrente, e acaba por se confundir a si mesma.

O desejo é impossível; ele destrói seu objeto. Nem os amantes podem ser um, nem Narciso ser dois. Don Juan, Narciso. Porque desejar alguma coisa é impossível, é preciso desejar o nada3.

Dizer que os amantes buscam a unidade é mera figura de linguagem, que só pode ser levada ao pé da letra por alguém totalmente alheio à experiência do amor carnal. O amante deseja dar-se à amada ao mesmo tempo que a recebe; não desaparecer nela enquanto ela desaparece nele. O amor carnal não é extinção, mas conservação, revigoramento: conservação da espécie, revigoramento do indivíduo e dos laços conjugais. Nem Don Juan nem Narciso têm a menor idéia do que seja o amor carnal. Nem Simone.

A desaparição mútua é precisamente a definição do desejo perverso, isento da mínima parcela de generosidade e sentimento de proteção4.

Nossa vida é impossibilidade, absurdidade. Cada coisa que queremos é contraditória com as condições ou as conseqüências que lhe estão ligadas, cada afirmação que colocamos implica a afirmação contrária, todos os nossos sentimentos estão mesclados a seus contrários. É que somos contradição, sendo criaturas, sendo Deus e infinitamente outros que Deus5.

A resposta é, naturalmente: sim e não. Se nossa vida é impossibilidade, absurdidade, segue-se, pelo princípio de que cada afirmação implica a afirmação contrária, a conclusão de que por isso mesmo nossa vida é possibilidade, sentido.

A realidade é que passamos constantemente do sentimento de absurdidade ao sentimento de propósito e sentido, e esta oscilação mesma não pode ser compreendida como absurdidade, sob pena de não podermos mais conceber a idéia de sentido nem mesmo na acepção platônica de uma aspiração extramundana.

“Sentido” e “absurdo”, tomados como expressões de conceitos abstratos universais, são termos contraditórios. Mas, quando aplicados a qualquer conteúdo concreto — mesmo à expressão da totalidade da nossa experiência vivida —, tornam-se apenas contrários, o que permite dialetizá-los como o faz Simone. Apenas, a conclusão desta dialética — conclusão que Simone rejeita, com plena inconseqüência — é que toda coisa tem dois lados, um sensato, outro absurdo, e que a olhamos por um ou por outro conforme uma inclinação passageira nossa. Não havendo um conceito-síntese entre sensato e absurdo, então somos levados à seguinte alternativa: se procuramos resolver a questão pelo lado ontológico e universal, os conceitos voltam a ser contraditórios e, neste caso, somos obrigados a resolver o absurdo no sensato ou a proclamar a absurdidade da questão mesma; se, porém, pretendemos permanecer no plano da expressão de sentimentos pessoais, podemos, conforme a inclinação do momento, proclamar que tudo é absurdo, mas estaremos apenas universalizando arbitrariamente uma impressão que será fatalmente passageira e será seguida por sua contrária.

O Sentido, enfim, é uma necessidade absoluta, e a existência mesma do sentimento de absurdidade é a sua maior prova.

Só a contradição fornece a prova de que não somos tudo. A contradição é nossa miséria, e o sentimento de nossa miséria é o sentimento da realidade. Pois nossa miséria, não a fabricamos. Ela é verdadeira. Eis por que é preciso adorá-la. Todo o resto é imaginário6.

Se a primeira dessas sentenças parecia resolver a questão colocada no parágrafo anterior, a segunda põe tudo a perder novamente ao absolutizar a impressão passageira de absurdidade, impressão que, como vimos, só é tornada possível pela sua alternância com a impressão contrária, e que, enfim, somente nesta se resolve. Se o sentimento de nossa miséria é o sentimento da realidade, de toda a realidade, e se tudo o mais é imaginário, então também Deus é imaginário.

A impossibilidade é a porta para o sobrenatural. Não se pode senão bater. É um outro quem abre7.

Só há dois tipos de impossibilidade: impossibilidade lógica, ou absoluta; e impossibilidade física, ou relativa. O sobrenatural não viola os limites da impossibilidade absoluta, os limites da identidade, pois é ele mesmo a Identidade, isto é, a absoluta possibilidade (é neste sentido que Sto. Tomás diz que Deus não pode revogar a lógica de Aristóteles). Quanto à impossibilidade física, só a conhecemos de maneiras parciais e transitórias, simbólicas, na verdade; não podemos experimentá-la extensivamente e só a vivenciamos em pura imaginação.

Logo, só há duas maneiras de atingir o limite da impossibilidade: ou nos chocamos realmente contra umaimpossibilidade particular e contingente (o paralítico, por exemplo, que tenta mover-se), ou concebemos imaginativamente uma impossibilidade geral e universal. Em qual dessas duas portas é preciso bater? Se é nesta, então Deus é a solução imaginária a um problema imaginário. Se é naquela, então o fato de alguém abrir a porta é realmente um milagre, a dissolução sobrenatural de uma impossibilidade física determinada. Se é assim, somente um milagre no sentido físico do termo — uma superação de limites físicos naturalmente intransponíveis — pode nos abrir a porta que leva a Deus; e, se assim é, o chamado “milagre da fé” é apenas uma metáfora, um modo de dizer, pois é a superação subjetiva de um obstáculo imaginário e não há milagre real em mudar simplesmente de idéia. De outro lado, Cristo condena com veemência aquele que exige milagres. Logo, não é possível, ou pelo menos é fundamentalmente anticristão, que o confronto com a impossibilidade seja a única porta para o sobrenatural.

É preciso tocar a impossibilidade para sair do sonho. Não há impossibilidade em sonho8.

Novamente, a primeira sentença enuncia uma verdade psicológica de experiência corrente, para, na segunda, saltarmos para uma generalização falsa.

É verdade que o senso da impossibilidade falta em certas pessoas que vivem em sonho, e que a admissão da impossibilidade pode libertá-las do sonho.

Mas há sonhos que expressam diretamente nosso sentimento de impossibilidade, como por exemplo quando uma distância se multiplica à medida que corremos para alcançá-la. Não se trata aí de mera impotência ocasional, mas de uma viva experiência de impossibilidade física.

O que falta no sonho não é o sentimento de impossibilidade, mas a avaliação das gradações e transições entre o possível e o impossível; é o senso da probabilidade, ou plausibilidade, ou razoabilidade.

Inversa e complementarmente, o sentimento de impossibilidade geral, quando vivido em vigília, é apenas um sonho, um sonho mau do qual procuramos sair mediante o apelo a um sonho bom chamado Deus. Novamente, a solução imaginária de um problema imaginário. Os depressivos vivem num perpétuo sonho de impossibilidade, e nem por isto são mais realistas do que os maníacos e os visionários.

Extinguir o senso da plausibilidade para levar o homem ao desespero e em seguida oferecer-lhe a saída de emergência denominada “fé” pode ser um expediente retórico piedoso, mas filosoficamente é inadmissível; ademais, é um artifício gurdjieffiano: chegar à verdade através da mentira, como se isto fosse possível, como se a verdade assim encontrada não estivesse viciada pela origem espúria. Os pregadores católicos abusam desse expediente, sem notar que corrompem a fé. Bilinguis maledictus, afinal de contas. Da minha parte, prefiro o mandamento corânico: Chegarás à verdade através da verdade.

“Nosso Pai, que está nos céus.” Há nisto uma espécie de humor. É vosso pai, mas tentai um pouco ir buscá-lo lá em cima! Somos tão exatamente incapazes de decolar quanto um verme da terra. E como, da Sua parte, viria Ele até nós sem descer? Não há maneira nenhuma de representar uma relação entre Deus e o homem que não seja tão ininteligível quanto a Encarnação. A Encarnação faz esplender essa ininteligibilidade. Ela é a maneira mais concreta de pensar esse descenso impossível.9

É uma ofensa à dignidade da inteligência humana que um pensador cristão nos peça para acreditar na Encarnação como fato, ao mesmo tempo que nos proíbe de aceitá-la como possibilidade. O real é, por definição, possível. A Encarnação é possível, uma vez que aconteceu. Mas, mesmo que não tivesse acontecido, não teria cabimento negar sua possibilidade teórica, e isto por duas razões esmagadoras: primeiro, ela é exigida pelo conceito mesmo de Onipotência; segundo, ela é anunciada pelo Antigo Testamento.

A Encarnação compreendida — ou mal compreendida — como fato impossível é a negação do mundo criado, e não sua perfeição. Se jogamos o fato da Encarnação contra o senso da possibilidade lógica, destruímos, no ato, toda metafísica cristã e, de quebra, toda semente de uma cosmologia cristã. Da noção verdadeira de um Deus supracósmico, passamos à de um Deus anticósmico, um monstro absurdo a espumar de ódio contra a obra de suas mãos e a proclamar-se tanto mais infalível quanto mais peca contra si mesmo. Há uma semente de diabolismo num supracosmismo levado às últimas conseqüências — e a Encarnação é ela mesma a resposta cabal de Deus a toda revolta anticósmica10.

A Encarnação não somente é possível, como é possível eminenter: ela é a condição de possibilidade mesma da existência cósmica. Se Deus não pode ser homem, simplesmente não pode haver homens. A analogia com a mais vulgar experiência humana basta para ilustrá-lo: que é que impede um autor de fazer-se personagem entre os personagens que cria?

“En la tarde del 5 de enero, de pie en el umbral del café de Guido e Junín, Bruno vio venir a Sabato…”11

O sentimento de implausibilidade que o ateu experimenta ante a idéia de Encarnação é tomado por Simone como expressão plena e final da concepção humana do cosmos, numa ampliação universalizante de impressões passageiras, tão típica aliás do modus eloquendi francês em geral. E de um simples modo oblíquo de falar tiram-se, muito francesamente, as mais portentosas conseqüências filosóficas…

Não vejo o menor sentido em confundir o sublime com o impossível, a não ser a título de figura de linguagem. Imagens do sublime que para o ateu representam impossibilidades são, aliás, freqüentes na simbólica religiosa em geral. Não é menos implausível para o ateu no meio cristão a idéia de Encarnação — no seu duplo aspecto de parto virginal e de nascimento do homem-deus — do que, no mundo islâmico, a possibilidade de um analfabeto escrever o mais belo dos livros e de este livro ter-lhe sido ditado por Deus. Mas, para quem tem um pingo de senso metafísico, nenhuma dessas coisas tem de ser impossível para ser sublime, nem tem de ser absurda para ser verdadeira.

Roma, é o grande animal ateu, materialista, que não adora senão a si. Israel, é o grande animal religioso. Nem um nem o outro são amáveis. O grande animal é sempre repugnante.12

O Ocidente cristão é o grande animal que se faz de crucificado e tomba com todo o peso da sua cruz salvadora sobre os ombros de povos que não pediram para ser salvos de nada exceto do invasor cristão.

O cristianismo sempre culpa as demais religiões pelos males das civilizações não-cristãs, mas joga seus próprios males na conta dos resíduos pré-cristãos ou anticristãos da civilização do Ocidente. Se os muçulmanos cortam as mãos dos ladrões, é porque sua religião é bárbara e cruel. Se Afonso de Albuquerque corta orelhas e narizes de persas inofensivos, é porque não é suficientemente cristão ainda que seja o braço armado da Igreja. A Inquisição é um desvio acidental, mas a queima da biblioteca de Alexandria manifesta a essência do Islam.

É sempre assim no pensamento coletivista, sempre falso ainda quando fundado em verdades reveladas. Cito meu próprio Diário:

“Princípios auto-evidentes para o estudo comparativo das religiões:

“1. Comparar ideais com ideais, fatos com fatos. O sectário, em vez disto, compara os ideais de sua religião com os fatos históricos da outra, o que vale dizer: a essência de minha religião está nas suas intenções elevadas, e os erros cometidos em seu nome são acidentes humanos que não a comprometem; a essência da outra religião está nos erros cometidos em seu nome, e seus elevados ideais são apenas um disfarce ideológico.

“É assim que as violências cometidas pela Igreja são absolvidas como acidentes irrelevantes, e as praticadas pelos muçulmanos tornaram-se expressão direta da natureza sanguinária da fé islâmica. Do mesmo modo, S. H. Nasr, em Ideals and Realities of Islam, não compara o mundo tradicional islâmico à civilização moderna, mas os sublimes ideais do primeiro à deprimente realidade histórica da segunda.

“2. Pelos frutos os conhecereis. Sociologicamente, pelo menos, importa menos o dogma explicito e genérico do que sua interpretação prática pelos grupos que, na História, representam essa religião em cada fase. Por exemplo, no início do século XIX, um homem podia ser aceito como bom católico sem que demonstrasse qualquer amor ao próximo; mas não o seria sem demonstrar, ao menos em palavras, fidelidade à monarquia e ódio à Revolução. O catolicismo dessa fase consiste em reacionarismo principalmente. Do mesmo modo, pode-se ser um bom “irmão muçulmano” sem aceitar — a exemplo do Profeta — os cristãos como irmãos de crença; mas não se pode sê-lo sem ódio ao “grande Satã” norte-americano.”13

Para respeitar por exemplo as pátrias estrangeiras, é preciso fazer da própria pátria, não um ídolo, mas uma escala em direção a Deus.14

O mesmo princípio vale para as religiões e civilizações: se não respeito as religiões estrangeiras tanto quanto a minha, é porque faço da minha um ídolo em vez de uma escala em direção a Deus15. A religião torna-se um fim em si, com seus ritos, suas pompas, sua retórica mística adornada de paradoxos rutilantes, e já não aceita Deus quando entra pela porta da inteligência metafísica, sem licença eclesiástica, ou simplesmente pela porta das outras religiões. Mas “aquilo que fizerdes ao menor destes, a Mim o fizestes”.

Tudo o que é apreendido pelas faculdades naturais é hipotético. Só o amor sobrenatural põe.16

Logo, o sentimento de absurdidade é meramente hipotético, e o amor sobrenatural o resolve pela restauração do Sentido. Mas trata-se aí do amor sobrenatural que Deus tem por nós, e não do que nós temos por ele, e muito menos daquele que toma a forma específica da fé cristã — pois Deus deu o entendimento intuitivo do Sentido a todos os homens, pela ação do Espírito Santo, e não só aos cristãos. Do contrário, todos, menos os cristãos, naufragariam na absurdidade até a chegada do primeiro pregador cristão.

O amor aos paradoxos é uma forma de idolatria bem querida dos místicos. Em nome do amor a Deus, eles se persuadem de não entender aquilo que entendem perfeitamente bem, para poderem deleitar-se no sentimento de absurdo e desfrutarem de um alívio factício adornado do prestígio de um milagre da fé.

Não é o erro que constitui o pecado mortal, mas o grau de luz que está na alma quando o erro, qualquer que seja, é cometido.17

Sim, porém mais perigosa que o pecado mortal não será a tentação de livrar-nos da luz para evitar que o pecado se torne mortal? Da minha parte, prefiro um milhão de pecados mortais ao pecado contra o Espírito; em caso de não poder sem grave dilaceração interior vencer uma tentação vulgar, prefiro pecar conscientemente, e arrepender-me conscientemente, do que reprimir a consciência moral para poder pecar com inocência — aquele tipo de inocência perversa que, como bem viu Igor Caruso, está na origem das neuroses e psicoses (índices, neste sentido, de ruptura com o Espírito). E se a humanidade, por dois milênios, ouviu graves advertências contra o pecado mortal, sem receber uma quota nem de longe equivalente de ensinamentos quanto ao pecado contra o Espírito, não será quase inevitável que a rejeição da luz acabe prevalecendo?

Tome-se, por exemplo, o falso testemunho. Não será melhor perante Deus uma pessoa mentir conscientemente, perfidamente, maquiavelicamente para prejudicar a um inimigo do que, para o mesmo fim, corromper e obscurecer a própria consciência até o ponto de persuadir-se de que diz a verdade? A neurose resultante — a atmosfera de fraude e auto-engano que pervade então toda a personalidade — é apenas o índice superficial de um profundo ódio ao Espírito.

Talvez Simone vivesse numa época em que os pecados mortais vulgares — roubo, adultério — ainda fossem mais generalizados do que a rejeição do Espírito, hoje o mandamento número um da vida em sociedade.

O irracionalismo arrebatado de alguns místicos cristãos (mas também muçulmanos, segundo observei) acaba por nos abrir a via abissal de uma mística sem sabedoria.

 

9 jan. 98

 

NOTAS

  1. Leszek Kolakowski, Las Principales Corrientes del Marxismo. Su Nacimiento, Desarrollo y Disolución, trad. Jorge Vigil, Madrid, Alianza, 1976-78, vol. I, pp. 19-87.
  2. La Pésanteur et la Grâce, avec une introduction par Gustave Thibon, Paris, Plon, 1948, p. 111. — Todas as citações remetidas apenas a um número de página, sem indicação de título, são extraídas deste livro. Todas as citações em itálicoe em parágrafo estreito são de Simone Weil, deste livro ou de outro, que se indicará na ocasião.
  3. , ibid.
  4. Se, como diz Sto. Tomás, “o amor é o desejo de eternidade do ser amado”, então não se trata de extinção mútua, e sim de mútua salvação. Talvez seja mais fácil compreender isto desde o ponto de vista islâmico, onde o ato sexual aparece como um sacramento e não como o mero exercício de um direito outorgado por um sacramento prévio (tanto que no Islam não existe noção de “casamento religioso”). Esta concepção não é aliás estranha de todo ao cristianismo, onde os nubentes, e não o sacerdote, são os oficiantes do sacramento do matrimônio. A rigor, qualquer par de homem e mulher que, no intuito de união indissolúvel, se entregue ao ato do amor deve ser considerado casado, segundo a interpretação mais profunda do dogma. Apenas, a contingência histórica desviou o foco da questão, fazendo com que a idéia de matrimônio se associasse cada vez mais a um ritual público e cada vez menos à efetiva união carnal — com o que se perdeu todo senso primordial da relação homem-mulher e o casamento se tornou uma espécie de salvo-conduto para a prática do mal menor.
  5. , p. 112.
  6. , ibid.
  7. , ibid.
  8. , ibid.
  9. , pp. 112-113.
  10. O desaparecimento das ciências cosmológicas — alquimia, astrologia — do panorama da civilização cristã foi um dos efeitos mais devastadores do supracosmismo, que parece ter-se entronizado na mentalidade católica após o concílio de Trento e os abusos da Inquisição. Esse desaparecimento, por sua vez, ocasionou a proliferação de doutrinas cosmológicas materialistas que vêm preencher a seu modo o hiato aberto pela omissão católica e terminam por expulsar da alma humana toda concepção de Deus (v., a respeito, o esplêndido livro de Seyyed Hossein Nasr, Man and Nature. The Spiritual Crisis of Modern Man, London, Allen & Unwin, 1976, trad. brasileira de Raul Bezerra Pedreira Filho, O Homem e a Natureza, Rio, Zahar, 1977). A Igreja tem no seu passivo o pecado de haver colocado entre o homem e Deus, em vez do cosmos, um abismo, um nada devorador; e ainda agrava essa culpa ao buscar um “diálogo” com as doutrinas materialistas, em vez de restaurar simplesmente a cosmologia cristã. E é evidente que esta cosmologia tem de tomar como fundamento absoluto e apodíctico a possibilidade da Encarnação. É verdade que o pressuposto contrário, o da impossibilidade, tem um efeito retórico mais contundente; mas vale a pena destruir toda a civilização cristã para depois buscar em figuras de retórica um abrigo contra o avanço da civilização anticristã?
  11. Ernesto Sabato, Abbadon el Exterminador, Buenos Aires, Sudamericana, 7ª ed., 1977. p. 11.
  12. P. 185.
  13. Páginas de um Diário Filosófico (inédito). Entrada de 10 de dezembro de 1991.
  14. P. 168.
  15. E poucos povos caíram na adoração da religião como fim em si como caíram os cristãos, a ponto de sobrepor a letra do dogma às evidências mais óbvias, como por exemplo faz Simone ao pedir que aceitemos a Encarnação como fato ao mesmo tempo que a negamos como possibilidade.
  16. P. 38.
  17. P. 142.

 

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