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A Nova Era e a Revolução Cultural: Observações finais

A Nova Era e a Revolução Cultural

Fritjoj Capra & Antonio Gramsci

3a edição, revista e aumentada.

Observações finais

Expondo em conferências as idéias que depois viria a registrar neste livro, muitas vezes recebi dos ouvintes a exigência de uma “definição política”. Sentiam-se desconfortáveis ante um interlocutor sem filiação identificável, algo assim como um UFO ideológico, e desejavam saber com quem estavam falando.

Minha resposta, invariavelmente, tem sido a seguinte:

O pressuposto dessa exigência é que não se pode criticar uma ideologia senão em nome de uma outra ideologia, dentre as reconhecidas no catálogo do momento. Esse pressuposto, por sua vez, funda-se num preconceito meio historicista, meio sociologista, segundo o qual todo pensamento individual é apenas “expressão” de algum anseio coletivo, e deve a este sua validade. Em oposição a este preconceito e àquele pressuposto, estou profundamente convicto de que somente o pensamento do indivíduo como tal pode ter validade objetiva, pois não há verdade senão para a consciência reflexiva, que só existe no indivíduo. As correntes de pensamento coletivas apenas manifestam desejos, anseios, temores, e jamais se levantam ao nível de autoconsciência crítica no qual a distinção entre verdade e falsidade pode ter algum sentido. Somente a autoconsciência do indivíduo pode captar essa distinção, ascender à esfera dos juízos universalmente válidos e da veracidade objetiva. Logo, é ela quem é juiz do pensamento coletivo.

A monstruosa inversão que submete o juízo da consciência individual ao critério das ideologias coletivas provém de uma mutilação da mente moderna, incapaz de atinar com alguma “universalidade” que não seja meramente quantitativa, reduzida portanto à “generalidade” e, em última análise, à validação puramente estatística. Como, de outro lado, toda prova estatística pressupõe a validade universal das leis da aritmética elementar, cujo fundamento é a evidência apodíctica somente acessível à consciência individual, o primado do pensamento coletivo repousa numa autocontradição pela qual nega sua própria validade.

Para piorar ainda mais as coisas, o pensamento coletivista, não tendo acesso à esfera da validade objetiva, logo perde toda referência ao “objeto” como tal e se fecha num subjetivismo coletivo: da estatística dos “fatos” caímos para a estatística das “opiniões”, e a contagem dos votos se torna o supremo critério da veracidade. Este processo, que se inicia na esfera da política, termina por contaminar a ciência mesma, onde hoje em dia ouvimos apelos generalizados em favor da aceitação de critérios puramente retóricos de argumentação como fundamentos legítimos da credibilidade cientítica. O marketing, em suma, é elevado a ciência suprema, modelo e juiz de todas as outras ciências.

Ou aceitamos esse resultado, ou devemos negar pela raiz o primado do pensamento coletivo, restaurando a consciência individual no posto de dignidade que lhe cabe. E, neste caso, deveremos admitir que o indivíduo humano possa elevar-se acima das ideologias e julgá-las, contanto que não o faça em nome de um protesto pessoal e subjetivo, mas em nome da veracidade universal e apodíctica, da qual ele, com todas as suas fraquezas, com todos os seus condicionamentos limitantes, continua, afinal, o único representante sobre a Terra.

No século XX, a consciência individual sofreu, das pseudociências emergentes, os mais violentos ataques, que pretenderam negá-la, reduzi-la a um epifenômeno dos papéis sociais introjetados, a uma projeção do instinto de sobrevivência, a uma ficção gramatical, a mil e uma formas do falso e do ilusório. De outro lado, no campo das técnicas psicológicas, nunca se investiu tanto na busca de meios para subjugar a consciência individual, quebrar sua autonomia, forçá-la a repetir mecanicamente o discurso coletivo. Se o nosso é o século do marxismo, da psicanálise, do estruturalismo, é também o da hipnose, o das técnicas de influência subliminar, o da lavagem cerebral, o da “modificação de comportamento” e o da Programação Neurolinguística. Se, por um lado, tudo se faz para demonstrar teoricamente a inanidade da consciência individual, de outro lado não se poupam esforços para reprimi-la e subjugá-la. Ora, estas duas séries de fatos, quando confrontadas, sugerem uma pergunta: para que tanto empenho em derrotar na prática algo que, em teoria, não existe? Se o cavalo está morto, para que açoitá-lo com tanta fúria?

Este é alíás o tema de um livro que estou preparando, A Alienação da Consciência. É uma resenha dos ataques teóricos e práticos dirigidos pelas doutrinas pseudocientíficas, em aliança com os governos totalitários ou com o establishmenttecnocrático, contra a autonomia da consciência individual. Foi este estudo, precisamente, que me levou à rejeição completa e taxativa de todo pensamento ideológico. Não me perguntem, portanto, em nome de que ideologia combato esta ou aquela ideologia. Combato-a desde um plano que não é acessível ao pensamento ideológico, e que só existe para a autoconsciência individual, quando firmemente decidida a não abdicar de seu direito — e de seu dever — à verdade e à universalidade. Em consequência, também não me dirijo a ouvintes e leitores enquanto representantes desta ou daquela facção ou grupo, mas enquanto portadores de uma inteligência universalmente válida, capaz de sobrepor-se ao discurso de facções e grupos e julgá-lo objetivamente. Não converso com fantoches coletivos, mas com seres humanos, investidos da dignidade suprema da autoconsciência, que os torna imagens de Deus. Se, enquanto apegada à identidade biológica e sujeita portanto à ilusão passional, a consciência do indivíduo é pura Maya, por outro lado é somente o indivíduo, e não o aglomerado estatístico das coletividades, que pode ascender ao plano da universalidade onde é lícito dizer: Eu sou Brahman.

Rio, março de 1994.

 

A Nova Era e a Revolução Cultural: Apêndice II

A Nova Era e a Revolução Cultural

Fritjoj Capra & Antonio Gramsci

3a edição, revista e aumentada.

Apêndice II.

O Brasil do PT

A entrevista do teórico do PT, Marco Aurélio Garcia, no Jornal da Tarde de 12 de janeiro, mostra que, por trás de uma tranquilizante fachada moderninha, esse partido não tem nada a propor senão o bom e velho comunismo.

  1. Segundo o entrevistado, o governo do PT não será socialista. Os ingênuos tomam esta promessa como uma garantia. Mas, prossegue Marco Aurélio, esse governo será uma “democracia popular” e constituirá “um aperfeiçoamento do capitalismo” com vistas a “um horizonte socialista” — um horizonte vago e indistinto o bastante para não alarmar o eleitorado. O que o eleitorado, novo e inculto, ignora por completo é que aperfeiçoar o capitalismo para chegar ao socialismo não é nenhuma proposta nova, mas sim a única estratégia de governo comunista que já existiu e a única que poderia existir, já que, segundo Marx, o socialismo não pode ser implantado antes que o capitalismo desenvolva suas potencialidades até o esgotamento. A função do governo de transição, “democrático-popular”, é acelerar esse esgotamento. Na Rússia, essa fase intermediária chamou-se NEP, Nova Política Econômica, implantada por Lênin logo após a tomada do poder pelos comunistas. Se o próprio Lênin, subindo ao poder no bojo de uma revolução armada, não implantou logo o comunismo, e sim apenas um “capitalismo aperfeiçoado”, por que o PT haveria de fazer mais, levado ao poder pela via gradual e pacífica do gramscismo?
  2. Marco Aurélio Garcia, prosseguindo na linha tranquilizante, assegura que os empresários nada perderão e terão tudo a ganhar no Brasil petista: “Se queremos desenvolver um grande mercado de massas, é claro que grande parte da burguesia vai tirar proveito disso.” Mas é exatamente o que dizia Lênin: não se pode fazer a transição para o socialismo sem que, na passagem, a burguesia ganhe um bocado de dinheiro com o incremento dos negócios. Nisto consistiu precisamente a NEP. Mas não se pense que os comunistas fiquem tristes com a súbita prosperidade dos seus desafetos. Ao contrário: acenando com a promessa de ganhos rápidos, o governo comunista faz trabalhar em favor da revolução a cobiça imediatista dos burgueses, cumprindo a profecia de Lênin: “A burguesia tece a corda com que será enforcada.” O truque é simples: com o progresso rápido do capitalismo, cresce também rapidamente o proletariado, base de apoio do governo comunista. Tão logo esta base esteja firme para sustentar o governo sem a ajuda dos burgueses, o governo puxa o laço. Em seguida os burgueses mortos ou banidos são substituídos em suas funções dirigentes por uma nova classe de burocratas de origem proletária ao menos nominal.
  3. Garcia diz que o PT quer um “Estado forte”, dotado de “mecanismos de controle do Parlamento, da Justiça, do Tribunal de Contas e das estatais”. Mas que diabo é isto senão o totalitarismo mais descarado? Nas democracias, a autonomia dos três poderes tem sido um mecanismo confiável e suficiente para o controle do poder. O que o PT advoga é que dois desses poderes sejam controlados por um terceiro, o Executivo, desde o momento em que este caia nas mãos do sr. Luís Inácio Lula da Silva. Nesta hipótese, dará na mesma que o Executivo policie os outros dois poderes diretamente, numa ditadura ostensiva, ou que o faça por intermédio de organizações autonomeadas representantes da sociedade civil — sindicatos, ONGs, grupos de intelectuais, grêmios estudantis — e controladas, por sua vez, pela facção política dominante, isto é, pelo PT: em ambos os casos, o que teremos será o crescimento hipertrófico do poder e seu absoluto descontrole.
  4. Interrogado sobre o destino que o governo petista dará às Forças Armadas, Garcia responde, com toda a clareza de quem diz exatamente o que pensa: mudar a Constituição, para que as Forças Armadas deixem de ter, entre suas atribuições, a de combater inimigos internos, e passem a se incumbir exclusivamente da defesa das fronteiras nacionais. Ora, mandadas para a fronteira, desligadas do combate a inimigos internos, as Forças Armadas estarão duplamente impedidas — pela obrigação constitucional e pela distância — de mover um só dedo contra o crime organizado, que, sob aplausos de uma certa intelectualidade esquerdista, já domina um Estado da Federação. Se, ampliando o que hoje acontece no Rio, uma aliança entre políticos e delinquentes atear fogo ao país inteiro, as Forças Armadas nada poderão fazer contra isso, porque estarão, fiéis ao dever constitucional, aquarteladas num cafundó amazônico, velando contra a iminente invasão boliviana ou talvez dando nos marinesuma surra de fazer inveja ao vietcongue.

Mas será estranho que um dirigente petista alimente esse projeto insano, quando seu partido também tem, entre seus principais quadros teóricos, um tal sr. César Benjamin, biógrafo-apologista do fundador do Comando Vermelho? Recordemos: escrito com a ajuda deste teórico petista, o livro em que o quadrilheiro William Lima da Silva faz a apologia do crime foi publicado pela Editora Vozes, da esquerda católica, e lançado, com noite de autógrafos e muita badalação, em cerimônia realizada na sede da ABI em 199l. Apesar do que dispõe o Art. 287 do Código Penal, ninguém foi processado. Alguns vêem em fatos como esse perigosos sinais de ligações entre as esquerdas e o crime organizado. Se há ou não aí uma aliança política subterrânea, é algo que só o tempo dirá. Mas que as esquerdas estão ligadas ao Comando Vermelho pelo passado comum e por uma profunda afinidade “espiritual” baseada no culto dos mesmos mitos e dos mesmos rancores, é coisa que está fora de dúvida. E como os senhores do crime não haveriam de sentir essa afinidade como um verdadeiro reconforto, diante da promessa petista de tirar do seu caminho o único obstáculo que ainda pode inibir suas ambições?

A proposta petista de aumentar a dotação orçamentaria das Forças Armadas em troca de retirar delas a responsabilidade pelo combate ao inimigo interno é puro suborno, em que o PT veste implicitamente a carapuça de inimigo interno. Se ainda existe consciência estratégica entre os militares, a proposta indecente será repelida.

  1. Enfim, se Marco Aurélio Garcia procura aplacar o temor ante o espectro comunista dizendo que o regime petista não será socialismo e sim “democracia popular”, também nisto não há novidade alguma: todosos regimes comunistas se intitulavam “democracias populares”.

O PT, seguindo a lição de Hitler, não se dá sequer o trabalho de ocultar o que pretende fazer: anuncia seus planos abertamente, contando com a certeza de que o wishfulthinking popular dará às suas palavras um sentido atenuado e inocente, sem enxergar qualquer periculosidade mesmo nas ameaças mais explícitas. Afinal, quanto mais assoberbado de males se encontra um povo, mais ansioso fica de crer em alguma coisa e menos disposto a encarar com realismo a iminência de males ainda maiores. Nessas horas, a maneira mais segura de ocultar uma intenção maligna é proclamá-la cinicamente, para que, tomada como inverossímil em seu sentido literal, seja interpretada metaforicamente e aceita por todos com aquela benevolência compulsiva que nasce do medo de ter medo. Quando Hitler prometeu dar um fim aos judeus, também foi interpretado em sentido metafórico.

A predisposição da opinião pública para não enxergar o risco evidente nasce, por um lado, da própria hegemonia que as ideologias de esquerda exercem sobre o nosso panorama cultural, impondo viseiras psicológicas mesmo a pessoas que, politicamente, divergem da esquerda. A política é apenas uma superfície da vida social, e de nada adianta divergir na superfície se, no fundo — nas convicções morais, nos sentimentos básicos, nas atitudes vitais elementares — copiamos servilmente o figurino mental do adversário.

Nasce, por outro lado, da ilusão de que o comunismo está morto. É um excesso de ingenuidade — ou, talvez, medo de ter medo — supor que o fracasso do comunismo no Leste europeu liquidou de vez as ambições dos comunistas em toda parte. O ressentimento move montanhas, dizia Nietzsche. Particularmente no Brasil, é muito profunda nas esquerdas a aspiração mítica de alcançar uma vitória local que, pelo seu próprio caráter inesperado e tardio, possa resgatar a honra do movimento comunista humilhado em todo o mundo. Permitir que o PT realize seus planos de “democracia popular”, sob o pretexto de que o comunismo é um cavalo morto, é arriscar-se a um coice que provará a vitalidade do defunto.

Ademais, o movimento das idéias no Brasil não acompanhapari passu a evolução do mundo, mas fica sempre atrás. Em 1930, quando o positivismo de Augusto Comte já era peça de museu no seu país de origem, uma revolução tomou o poder no Brasil inspirada no modelo positivista do Estado. O espiritismo, moda européia que morreu por volta da Primeira Guerra sem nunca mais reencarnar, ainda é no Brasil quase uma religião oficial. Nossos intelectuais ainda estão empenhados no combate ao lusitanismo em literatura, quase um século depois de rompido o intercâmbio literário entre Brasil e Portugal. As velhas religiões africanas, que os negros de todo o mundo vão abandonando para aderir ao islamismo, aqui vão conquistando novas massas de crentes entre os brancos. Enfim, o tempo nesta parte do mundo corre ao contrário. Por que o comunismo, morto ou moribundo em toda parte, não poderá ressurgir neste país, fiel ao atraso crônico do nosso calendário mental? Pelo menos é o que nos promete a entrevista de Marco Aurélio Garcia: se depender dele, não falharemos em nossa missão cósmica de coletores do lixo refugado pela História.

Homens de formação arraigadamente marxista, insensíveis durante toda uma vida a quaisquer outras correntes de idéias, simplesmente não podem, no breve prazo decorrido desde a queda do Muro de Berlim, ter feito uma revisão profunda e séria de suas convicções. Mudanças, se houve, foram epidérmicas, para não dizer simuladas. A força atrativa do messianismo comunista não acabou: refluiu para a obscuridade, de onde, vitalizada pelo apelo nostálgico e pela ânsia de um renouveau transfigurador, está pronta a ressurgir ao menor sinal de uma oportunidade. Declarações improvisadas de arrependimento nada significam, sobretudo em homens que, habituados por uma praxe do cerimonial comunista a utilizar-se de rituais de “autocrítica” como instrumentos de sobrevivência política, acabaram por assimilar profundamente o vício da linguagem dúplice, a ponto de torná-la uma segunda natureza. Um século de história do comunismo prova que nada iguala a capacidade da esquerda de tapar os próprios ouvidos à verdade, senão a sua habilidade de desviar dela os olhos alheios. A pressa mesma com que alguns próceres comunistas compareceram ante as câmeras de TV para declarar a falência do comunismo é suspeita, uma vez que em nenhum deles a desilusão foi profunda a ponto de fazê-lo desejar abandonar a política. Do dia para a noite, desvestiram a camisa soviética, vestiram um modelito novo, e sem mais delonga reapareceram, prontos para outra, com o maior vigor e animação, discursando com aquela certeza, com aquela segurança de quem jamais tivesse sido desmentido pelos fatos. Acredite nessa gente quem quiser.

Da minha parte, não duvido de todos os comunistas. Acredito em Antonio Gramsci, quando diz que o Partido é o novo “Príncipe” de Maquiavel, e acredito em Bertolt Brecht, quando diz que para um comunista a verdade e a mentira são apenas instrumentos, ambos igualmente úteis à prática da única virtude que conta, que é a de lutar pelo comunismo.

 

Nota

Aos que, lido este apêndice, enxergarem no autor um hidrófobo antipetista, advirto que votei em Lula para presidente e o faria de novo, com prazer, se ele tomasse as seguintes providências:

  1. Banir do seu partido o elenco de vedettesintelectuais que, formadas numa atmosfera marxista, e apegadas a ela como um bebê à saia da mãe, insistem em manter aprisionado nela o movimento socialista que anseia por novas idéias. Exorcizar de vez os fantasmas de Marx, Lênin, Débray, Althusser, Gramsci e tutti quanti, e permitir que a idéia socialista cresça livre de gurus e totens. Quando Lula diz que nossas elites viveram “com os olhos voltados para a França e a bunda voltada para o Brasil”, não percebe ele que isso é uma descrição exata da elite intelectual petista, e esquerdista em geral?
  2. Reprimir o uso de táticas de movimento clandestino e revolucionário, que são indecentes num partido que professa conviver democraticamente com outros partidos num Estado de direito. Infiltração, espionagem, delação, boicote moral podem ser necessários e inevitáveis a um movimento de oposição que queira sobreviver numa ditadura. Em regime de liberdade, são práticas intoleráveis, principalmente em políticos que posam de professores de ética. Quando os apóstolos da ética citam como um exemplo para o Brasil o que os americanos fizeram com Nixon após o caso Watergate, esquecem de dizer que Nixon não caiu por causa de um desvio de verbas, mas por causa da prática de espionagem. Se a corrupção é um crime, a espionagem é um ato de guerra, que destrói, pela base, o edifício democrático.

Lula é um homem decente e, como disse Francisco Weffort, é alguém maior do que o seu partido. Se ele se utilizar da tremenda força do seu prestígio para exterminar esses dois vícios, o marxismo e o clandestinismo, o Partido dos Trabalhadores se transformará naquilo que seu nome promete, deixando de ser apenas o partido da nostalgia comunista.

Observações finais

 

A Nova Era e a Revolução Cultural: Apêndice I

A Nova Era e a Revolução Cultural

Fritjoj Capra & Antonio Gramsci

3a edição, revista e aumentada.

Apêndice I.

As esquerdas e o crime organizado

Comando Vermelho. A História Secreta do Crime Organizado, de Carlos Amorim, é um trabalho de valor excepcional, cuja leitura se recomenda a todos os brasileiros que se preocupem com o futuro deste país. Futuro do qual se pode ter um vislumbre pelas palavras de William Lima da Silva, o “Professor”, fundador e guru do Comando Vermelho, citadas à p. 255:

“Conseguimos aquilo que a guerrilha não conseguiu: o apoio da população carente. Vou aos morros e vejo crianças com disposição, fumando e vendendo baseado. Futuramente, elas serão três milhões de adolescentes, que matarão vocês [ a polícia ] nas esquinas. Já pensou o que serão três milhões de adolescentes e dez milhões de desempregados em armas?”

A quem entenda isso como mera expressão de um delírio megalômano, o livro de Carlos Amorim mostra que a sinistra profecia já está em curso de realização: o Comando Vermelho não apenas domina dois quintos do território do Grande Rio, desfrutando aí o monopólio dos sequestros, do comércio de carros roubados, do tráfico de drogas, mas exerce também nessa área funções de governo, por meio do terror alternado com lisonjas paternalistas, e tem ainda a liderança no contrabando de armas pesadas, sendo hoje uma organização mais equipada do que a polícia ou mesmo do que as guarnições locais do Exército. As autoridades reconhecem que o poder da máfia dos morros é absolutamente incontrolável, e ela prossegue, de vitória em vitória, atordoando a polícia, humilhando os governantes, e atribuindo às suas operações criminosas, para cúmulo de descaramento, o sentido épico de uma luta pela libertação dos oprimidos.

Não vou aqui resumir o livro, pois pretendo que o leiam. Nas páginas que se seguem, concentrarei minhas observações antes no que me parece o seu único ponto fraco. Não farei isto para depreciar os méritos da obra, que são elevados, mas justamente para os realçar; pois essa lacuna, que está no diagnóstico das causas e origens profundas do crime organizado, só poderia ser preenchida por uma investigação que iria muito além do seu escopo. O autor, de fato, alude a algumas causas prováveis, mas centraliza sua atenção no fenômeno do Comando Vermelho como tal, sem estender seu exame ao conjunto dos fatores históricos que cercaram, propiciaram e finalmente determinaram o seu surgimento. Não se trata portanto de assinalar aqui algum defeito do livro, mas de sugerir investigações suplementares que dariam matéria para outro livro, ou vários.

Uma certeza o livro de Amorim parece deixar definitivamente assentada: o Comando Vermelho nasceu da convivência entre criminosos comuns e ativistas políticos dentro do presídio da Ilha Grande, entre os anos de 1969 a 1978. Ali os militantes esquerdistas ensinaram aos bandidos as técnicas de guerrilha que eles viriam a usar em suas operações criminosas e os princípios de organização político-militar sobre os quais viria a estruturar-se o Comando Vermelho, bem como a fraseologia revolucionária com que o bando hoje glamuriza suas façanhas.

O que não fica claro de maneira alguma é o grau e a natureza da participação das organizações de esquerda na criação do Comando Vermelho, a sua responsabilidade histórica pela eclosão do fenômeno que hoje aterroriza a população carioca e põe em risco a sobrevivência da jovem e frágil democracia brasileira.

Quanto a esse ponto, o autor se contradiz: sua narrativa dos fatos aponta num sentido, suas opiniões no sentido contrário. Eis uma dessas opiniões:

“Os revolucionários nunca pretenderam ensinar criminosos a fazer guerrilhas. Em mais de uma década de pesquisas, nunca encontrei o menor indício de que houvesse uma intenção — menos ainda uma estratégia — para envolver o crime na luta de classes.”

Logo, na interpretação do autor, os ensinamentos de guerrilha teriam sido passados aos bandidos de uma maneira natural, espontânea, impremeditada, ao sabor de contatos fortuitos entre indivíduos, e sem qualquer responsabilidade das organizações esquerdistas.

Mas os fatos narrados pelo próprio Amorim desmentem frontalmente essa interpretação. Sem chegarem a dar respaldo à tese policial que vê no Comando Vermelho uma extensão ou um recrudescimento da velha guerrilha revolucionária, eles indicam, no entanto, que o que se passou na Ilha Grande foi algo de bem mais comprometedor do que simples conversas casuais. Poderosos interesses vetam, hoje, uma investigação mais profunda desses episódios. Os prisioneiros políticos de então tornaram-se gente importante, deputados, ministros, procuradores, com poderes suficientes para dissuadir qualquer olhar curioso que se lance sobre um passado que eles preferem manter protegido entre névoas. Não duvido que a ambiguidade do próprio Amorim tenha brotado do prudente desejo de evitar um confronto com essa gente, cujos partidários e simpatizantes exercem uma completa hegemonia sobre o seu ambiente de trabalho: as redações de jornais. Da minha parte, porém, nada espero deles. No tempo em que eram perseguidos políticos, ajudei-os o quanto pude, escondendo foragidos e armas, redigindo e distribuindo propaganda contra a ditadura, porque via em seus rostos o emblema da verdade, hostilizada pela mentira oficial. Hoje, que estão a um passo do poder, já enxergo em seu semblante a máscara da hipocrisia, que anuncia para breve, neste país, um novo império da falsidade. Todo sacerdócio converte-se, mais cedo ou mais tarde, num culto de si mesmo: tendo outrora servido à verdade, eles hoje tomam o lugar dela no altar de um culto degenerado

Investigar o sentido dos episódios da Ilha Grande é romper um tabu, é violar o preceito consagrado segundo o qual a maldade, a baixeza, a hipocrisia são monopólio da direita.

A convivência entre presos políticos e bandidos comuns é antiga no Brasil, reconhece Amorim. Vem desde 1917, com as primeiras prisões de agitadores sindicalistas e anarquistas. Intensificou-se durante e após a rebelião comunista de 1935. Desde então foi constante e sistemático o esforço dos comunistas para doutrinar criminosos e enquadrá-los na luta política. Um dos líderes de 35, Gregório Bezerra, conta em suas memórias como “transformou guardas penitenciários e bandidos em militantes comunistas”. Durante os anos do Estado Novo, conta Amorim, “o contato com intelectuais, militares radicais, políticos e sindicalistas fez a cabeça de punguistas e escroques. A partir dessa convivência, muitos homens deixaram para trás as carreiras no crime e optaram pela militância revolucionária”.

Nada disso no entanto provocou a menor alteração de conjunto no mundo do crime: “Nas ruas, o crime continuava o mesmo: avulso, violento, desorganizado. O fenômeno da conscientização e o surgimento do chamado crime organizado só vão aparecer na década de 70.”

Houve portanto aí a introdução de um fator novo, de uma diferença específica no tipo de influência exercido pelos militantes sobre os bandidos. Essa diferença residiu essencialmente no conteúdo das informações transmitidas: em vez de simples doutrinação ideológica, os bandidos receberam ensinamentos práticos, que puderam por em ação tão logo saíram da cadeia. Que ensinamentos foram esses?

Primeiro, princípios de organização, que incluíam desde a estrutura hierárquica e disciplinar do grupo armado até sistemas de comunicação em código.

Em seguida, técnicas de propaganda ou agitprop, que lhes permitiram transformar assaltos e sequestros em espetáculos de protesto — “propaganda armada”, no jargão esquerdista —, que ganham a simpatia ao menos parcial da população e da intelligentzia.

Terceiro, táticas de ação armada. Aqui a lista é grande. Dentre os procedimentos usados pela guerrilha e copiados pelo Comando Vermelho, pode-se destacar os seguintes:

1 – Realização de assaltos simultâneos em vários bancos, para desorientar a polícia.

2 – Com o mesmo objetivo, bombardear os postos policiais com dezenas de alarmes falsos, no dia dos assaltos planejados.

3 – Não sair para uma operação armada sem deixar montado um “posto médico” para atender os feridos ( que antes os bandidos deixavam à sua própria sorte, expondo-se à delação por vingança ).

4 – Em caso de emergência, invadir pequenas clínicas particulares selecionadas de antemão, obrigando os médicos a dar atendimento aos feridos.

5 – Planejamento e organização de sequestros.

6 – Designar para cada operação um “crítico”, que não participa da ação mas apenas observa e assinala os erros para aperfeiçoar a ação seguinte.

7 – Planejar as ações armadas com exatidão, de modo a obter no mínimo de tempo o máximo de rendimento com o mínimo derramamento de sangue. ( Hoje o Comando Vermelho consuma em quatro ou cinco minutos um assalto a banco. )

8 – Técnicas para o bando retirar-se do local da ação em tempo record, aproveitando-se da conformação das ruas, do congestionamento, etc., ou provocando deliberadamente acidentes de trânsito.

9 – Planejamento cuidadoso de todas as ações, segundo o princípio de Carlos Marighela: “Somos fortes onde o inimigo é fraco. Ou seja: onde não somos esperados.”

10 – Informação e contra-informação como base do planejamento.

11 – Sistema de “aparelhos” — casas compradas em pontos estratégicos da cidade, para ocultar fugitivos após as operações, guardar material bélico etc.

O quarto e último grupo de ensinamentos dizia respeito à seleção das melhores armas para cada tipo de operação, e ainda à fabricação de explosivos apropriados para o uso na guerrilha urbana, como coquetéis-molotov com uma fórmula especial preparada por estudantes de Química e “bombas de fragmentação com pregos acondicionados junto à pólvora e enxofre num tubo de PVC ou numa lata do tamanho de uma cerveja”.

O conjunto forma um curso completo de guerrilha urbana, apoiado ainda numa bibliografia especializada, que incluía O Pequeno Manual do Guerrilheiro Urbano, de Carlos Marighela, Guerra de Guerrilhas, de Ché Guevara, e A Revolução na Revolução, de Régis Débray, além de A Guerrilha Vista por Dentro, de Wilfred Burchett. Este último é apenas uma reportagem feita no Vietnã por um correspondente de guerra inglês; mas entre os militantes era tão prezado quanto as obras de guerrilheiros profissionais, e sua circulação chegou a ser proibida no Brasil durante os governos militares, porque “mostra como o vietcongue fabricava munição, inclusive com uma fórmula para se produzir pólvora caseira. Explica também como funcionava o sistema de túneis para a fuga dos comandos guerrilheiros, com iluminação a partir de geradores movidos a roda de bicicleta. O livro fala ainda dos códigos, do correio baseado em bilhetes entregues de mão em mão, de aldeia em aldeia. Um manual de guerra revolucionária que contém longas explanações de tática e estratégia. Enfim, dinamite pura”. Rematavam a bibliografia clássicos da literatura marxista — Marx, Lênin — e obras menores de doutrinação.

Todos esses ensinamentos foram depois levados à prática pelo Comando Vermelho, que demonstrou possuir até mesmo um domínio mais extenso deles do que as próprias organizações guerrilheiras: “O crime organizado foi muito além do que a luta armada tinha conseguido nos anos 70, tanto em matéria de infra-estrutura quanto na disciplina e organização internas”. Como bem resumiu o assaltante de bancos Vadinho ( Oswaldo da Silva Calil ), que viu tudo de perto na Ilha Grande, “os alunos passaram a professores”.

Amorim opina enfaticamente que “não houve intenção” de ensinar guerrilha aos bandidos, que a transmissão desses ensinamentos se deu de maneira “involuntária”, em resultado espontâneo do “convívio eventual nas cadeias”. Diante dos fatos narrados, é difícil acreditar nessa opinião, é difícil mesmo admitir que o próprio Amorim acredite nela. Mais sensato é vê-la como uma concessão verbal: tendo ousado divulgar fatos que são profundamente comprometedores para as esquerdas, Amorim preferiu deixar que a narrativa falasse por si, sem endossar pessoalmente a conclusão que ela impõe. Manha de repórter, que com muita prudência teme mais as línguas de seus colegas de ofício do que as balas do Comando Vermelho.

O que me faz interpretar as coisas desse modo é a desproporção entre a força da narrativa e a timidez dos argumentos em que Amorim sustenta sua opinião. Qualquer principiante do jornalismo sabe que a exposição dos fatos exerce sobre o leitor uma influência mais profunda do que a opinião expressa. A verdadeira intenção de um jornal está na sua maneira de selecionar e ordenar as notícias, e não no que ele afirma nos editoriais. As cabeças dos repórteres funcionam de modo análogo: inteligências antes narrativas do que analíticas, expressam-se mais plenamente contando os fatos do que alinhando argumentos.

O principal argumento que Amorim apresenta em defesa de sua tese é que, ao longo de doze anos, não encontrou indícios ou provas “de uma intenção, menos ainda de uma estratégia” no sentido de os militantes ensinarem guerrilha aos bandidos.

O argumento destrói-se a si mesmo. Em primeiro lugar, não existe prova de intenção, a não ser a lógica mesma do ato, pela qual das consequências podemos remontar às causas. Todo ato humano que não possa ser explicado pela mera acidentalidade pressupõe uma intenção, e todo acidente é, por definição, momentâneo: não existem acidentes continuados; a mera casualidade não se prolonga, inalterada e uniforme, ao longo dos anos, como um par de dados não prossegue dando seis e seis incansavelmente ao longo das rodadas. Qualquer ato reiterado é, por si mesmo, prova da sua intenção. Se um homem fica bêbado uma vez, duas vezes, pode ser sem intenção e por mero efeito acumulado dos tragos mal medidos; mas se quatro ou cinco vezes por semana o encontramos virando novamente o copo até trocar as pernas, será preciso alguma outra “prova” para certificar que ele teve intenção de se embriagar? Ora, a transmissão de ensinamentos de guerrilha prosseguiu, na Ilha Grande, por nada menos que nove anosQue mais será necessário para comprovar uma intenção?

Pode-se ver a coisa por um segundo ângulo. Uma intenção nada mais é do que a previsão de uma consequência, somada ao desejo de provocar essa consequência. Só podemos, portanto, supor ausência de intenção quando um homem não está em condições de prever as consequências de seu ato. Se um marido furioso desfere um tabefe na esposa e a manda para o hospital, podemos admitir que o brutamontes não mediu sua força; mas depois de uma longa série de internações da infeliz, devemos supor que ele ainda não avaliou corretamente a proporção entre o empuxe da porrada e suas consequências hospitalares, ou que ele teve a intenção de desencadear precisamente essas consequências? Quanto aos nossos guerrilheiros, a hipótese da ausência de intenção pressupõe que fossem incapazes de atinar com o uso que os discípulos fariam de seus ensinamentos. Se um deles, uma vez ou outra, desse com a língua nos dentes, poderia ser coincidência. Mas vários deles transmitindo informações seguidamente ao longo dos anos, sem jamais atinar com as consequências do que faziam, é mais do que a credulidade humana pode admitir.

Provas externas só são necessárias quando a lógica dos fatos não fala por si, quando nos fatos há algo de ambíguo que admite interpretações variantes, o que não é o caso. Mas Amorim absolve os guerrilheiros justamente com base na ausência desse tipo de provas. E acontece que mesmo estas não estão realmente ausentes. Querem ver?

Só existem no mundo três tipos de provas: materiais, documentais e testemunhais.

A prova material está lá: a presença dos livros, dos manuais de guerrilha nas mãos dos bandidos é prova de que alguém os entregou a eles. Entregar um livro comprova, manifestamente, o intuito de transmitir informações, e de fazê-lo de maneira mais completa do que se poderia em meras conversas de ocasião.

Os livros citados por Amorim eram obras raras, de tiragem limitada e circulação proibida, que só se encontravam, quando se encontravam, nas mãos de militantes diretamente envolvidos nas organizações da esquerda armada. O de Régis Débray circulou num volume impresso clandestinamente pela ala marighelista do PC, e o de Guevara era uma apostila mimeografada, de pouquíssimos exemplares. Mesmo o de Burchett ( Amorim escreve “Bulcher”, mas a grafia certa é Burchett ), que saiu por uma editora comercial ( Civilização Brasileira ), teve tiragem reduzida e logo foi apreendido, sobrando em circulação uns poucos exemplares que os militantes de esquerda disputavam a tapa. Não eram, enfim, livros de interesse geral, que se dessem a alguém para ler por mero passatempo, mas manuais de ensino técnico, dirigidos a um público especializado. Transmitir esses livros aos bandidosé algo mais do que manifestar uma intenção de ensinar guerrilha: é realizar essa intenção.

Quanto a provas documentais que atestassem uma decisão das organizações de esquerda de promover o ensino de guerrilhas, só poderiam consistir em atas de reuniões dos comitês de presos políticos, que declarassem formalmente essa intenção. Mas os prisioneiros políticos teriam de ser doidos ou suicidas para registrar uma decisão desse teor em atas que certamente iriam parar nas mãos da direção do presídio mais dia menos dia. Aliás eles nunca fizeram ata de decisão nenhuma, pela mesmíssima razão. Se o historiador fosse hoje depender de atas para estudar esse período, não teria sequer uma prova de que os comitês de presos políticos chegaram a existir. Uma prova documental, no caso, não é exigível. Presos políticos não fazem atas, tal como não se fazem atas de uma reunião de meliantes para planejar um assalto a banco. O argumento da falta de provas não vale, portanto, para provas documentais.

Restam, ainda, as provas testemunhais. Estas são ambíguas. Amorim aliás só cita duas. Vadinho afirma que houve ensinamento. O então prisioneiro político e depois ( no governo Brizola ) diretor do mesmo presídio da Ilha Grande, José Carlos Tórtima ( hoje procurador do Estado ), proclama que não:

“— É uma mentira essa história de que os presos comuns aprenderam como se organizar e noções de guerrilha urbana com os presos políticos. O conteúdo ideológico deles é de tal forma individualista que de maneira nenhuma poderiam absorver a proposta de apoio coletivo… Repudio claramente qualquer insinuação de que os presos comuns foram formados pelos políticos. Isso é um mito veiculado pela direita.

O dr. Tórtima é, pelo visto, um desses devotos esquerdistas, para quem a sentença “É de direita!” constitui, em si e por si, uma prova fulminante contra qualquer argumento. Algo assim como o Roma locuta, causa finita, um rótulo fatal que, colado a uma idéia, basta para invalidá-la para todo o sempre.

Se ele não pensasse assim, teria procurado calçar melhor seu testemunho, citando fatos em vez de dispensar-se de fazê-lo, confiado na força exorcizante da frase mágica.

Pois, na verdade, o seu não é um testemunho; é um parecer, uma opinião, que opõe à abominável tese direitista um argumento de probabilidade lógica: individualistas ferrenhos não podem, em princípio, absorver uma proposta de ação coletiva, ou pelo menos é muito pouco provável que o façam.

De um ponto de vista hipotético e abstrato, devemos dar razão ao dr. Tórtima: a lei das probabilidades está com ele. Mas, em primeiro lugar, é estranho que uma testemunha, chamada a mostrar a falsidade de uma alegação, se limite a demonstrar sua improbabilidade. Raciocinamos por probabilidades quando não temos acesso aos fatos, quando, não sabendo o certo, só nos resta conjeturar sensatamente. Testemunhas não conjeturam: testemunhas narram.

Se passamos da conjetura para os fatos, a conversa muda. Hipoteticamente, a absorção da proposta de apoio coletivo pelos individualistas era de fato improvável; mas o próprio livro de Amorim mostra bem claro que o improvável se realizou: que não somente os marginais absorveram a proposta, como também a puseram em prática com mais rigor, eficiência e amplitude do que os próprios militantes políticos; e, organizando-se melhor do que eles, chegaram ainda a coordenar o “apoio coletivo” da população pobre dos morros cariocas, superando tudo o que em matéria de arregimentação popular os guerrilheiros haviam sequer sonhado: “Os alunos tornaram-se professores.”

De que vale o argumento de improbabilidade, diante da prova do fato consumado? Diante desse fato, o que vemos é o argumento do dr. Tórtima voltar-se a favor da tese que ele enfaticamente repudia, contra a que defende. Se era pouco provável que os individualistas anárquicos absorvessem a proposta de apoio coletivo mesmo quando esta lhes fosse transmitida por hábeis e solícitos professores de guerrilha,muito menor, para não dizer nula, seria a probabilidade de que o fizessem tão-somente pelo esforço próprio e sem nenhuma ajuda pedagógica. O esforço necessário para aprender sozinho é significativamente maior do que o requerido para seguir as lições de um bom professor. Se, portanto, os individualistas desorganizados se tornaram eficientes organizadores coletivos, o mérito muito provavelmente não é só deles, nem só deles a culpa pelo tipo de coisa que vieram a organizar.

De passagem, a desastrada argumentação do dr. Tórtima derruba também as opiniões do próprio Amorim em favor do caráter fortuito e impremeditado dos ensinamentos de guerrilha. Se os bandidos comuns eram uns individualistas anárquicos, como poderiam colocar em boa ordem fragmentos de informação colhidos aqui e ali em conversações casuais, a ponto de compor com eles uma técnica racional apta a desenvolver-se em amplas e notáveis aplicações práticas? Seria preciso um QI fora do comum, mas mesmo gênios teriam alguma dificuldade em aprender organização tão desorganizadamente. Com toda a franqueza: pedir que acreditemos que homens primitivos, bárbaros, indisciplinados e volúveis conseguiram apreender os complexos princípios de organização político-militar da guerrilha urbana tão-somente ciscando aqui e ali uns pedaços de conversas e depois transformar essa maçaroca informe numa técnica de grande eficácia, é realmente fazer pouco da nossa inteligência.

Contar com a credulidade alheia é aliás um vício da esquerda brasileira, adquirido nos anos que se seguiram à queda da ditadura. A revelação das torturas, dos cadáveres escondidos, confirmando denúncias que antes a opinião oficial desqualificava como invencionices de agitadores, desmoralizou a direita e elevou às alturas a credibilidade da esquerda. Desde então esta vem abusando do crédito para nos fazer engolir patranhas e calúnias de toda sorte, sem outra garantia senão a de terem sido proferidas por quem nos disse a verdade uma vez. Até quando as atrocidades da direita serão fiadoras das mentiras da esquerda?

O que o dr. Tórtima nos impinge como testemunho não poderia mesmo valer nada, pois a “testemunha” saiu da cadeia em 1971, antes, portanto, da fase decisiva de formação do Comando Vermelho, sobre a qual ele sabe só o que leu nos jornais, se é que os leu. Isto aliás confirma o caráter muito provavelmente calunioso de insinuações que o acusem de envolvimento pessoal no ensino de guerrilha aos bandidos. Mas o fato de ele estar inocente não o qualifica para inocentar outros, dos quais nada sabe. Qual, no entanto, o esquerdista brasileiro que recusará falar em público sobre um assunto do qual ignora tudo, se o convite lhe servir de ocasião para dar umas alfinetadas na “direita”?

Acreditar que o “testemunho” do dr. Tórtima baste para absolver alguém além dele mesmo exigiria que a nossa fé removesse montanhas. Destituídos da fé, façamos algo que, no Brasil de hoje, se tornou sinal de impiedade: raciocinemos.

Raciocínio I – O livro de Carlos Amorim informa que os militantes esquerdistas, uma vez encarcerados, procuraram fortalecer a unidade disciplinar de suas organizações, para poderem resistir ao ambiente hostil. De outro lado, o mesmo livro deseja que acreditemos que homens assim afeitos a uma disciplina espartana deixaram escapar, em amenas conversas informais com os detentos comuns, todos os segredos de técnica militar e de organização política que constituíam o sangue e os nervos da revolução. Quer que acreditemos que esses homens de ferro, capazes de resistir à tortura física e psicológica para não entregar nenhum segredo aos policiais, deram tudo aos bandidos, de mão-beijada, por mera desatenção; que de conversa em conversa foram deixando vazar teoria marxista, princípios de agitprop, técnicas militares, métodos de organização, enfim todo o conhecimento de guerrilha urbana então disponível, sem jamais se dar conta de que estavam ensinando guerrilha nem ter a mais mínima intenção de fazê-lo. Nunca ouvi uma coisa mais doida na minha vida.

Raciocínio II — Se, ao contrário dos presos comuns, individualistas anárquicos, os militantes eram socializados, politizados e disciplinados, então certamente nada faziam de importante sem prévia consulta ao “coletivo”. Logo, das duas uma: ou a transmissão de ensinamentos de guerrilha aos bandidos foi autorizada pelo coletivo, ou foi feita em flagrante desobediência à sua proibição. Nesta última hipótese, devemos entender que, malgrado o alto grau de politização ali reinante, reinava também a mais completa anarquia, de modo que o coletivo não conseguia controlar as veleidades individuais de seus membros e os deixava à solta para que, como verdadeiros individualistas anárquicos, fizesse cada qual o que bem lhe desse na telha. É claro que, neste último caso, os presos políticos não teriam podido resistir às pressões do ambiente nem muito menos fazer, como disse o dr. Tórtima, “que os bandidos se acomodassem às nossas regras”. Então não há dúvida: transmitir aos bandidos ensinamentos de guerrilha não pode ter sido uma decisão deixada ao arbítrio individual. Amorim diz muito claro que, pelo menos a partir de 1975, etapa decisiva na formação do Comando Vermelho, as relações entre presos comuns e presos políticos não se davam de indivíduo a indivíduo, mas de comitê a comitê.

Raciocínio III — Se os livros, os manuais de guerrilha, estavam proibidos de circular em todo o território nacional, muito mais o estavam entre os muros da prisão. Introduzi-los ali e fazê-los circular, mesmo exclusivamente entre militantes, era grande temeridade. Transferi-los a bandidos comuns, gente isenta de qualquer compromisso ideológico e de toda confiabilidade moral, era certamente expor-se a risco de delação, a não ser que houvesse um acordo prévio entre o comitê dos políticos e o dos presos comuns, com previsão de graves sanções contra os faltosos. Hipóteses contrárias, só há duas: ou os presos políticos entregavam aos bandidos obras de Ché Guevara e Carlos Marighela por mero descuido, folgadamente como quem distribui a crianças exemplares de Luluzinha e Tio Patinhas; ou então os presos comuns é que tinham um organizadíssimo serviço de espionagem capaz de burlar a vigilância dos políticos e surrupiar uns quantos exemplares das obras explosivas ciosamente guardadas. Mas, se era improvável que militantes tão descuidados sobrevivessem na Ilha Grande, muito mais o seria que os “individualistas” anárquicos lograssem montar um serviço de espionagem tão eficiente.

O testemunho de Tórtima e as opiniões de Amorim, portanto, caem por terra. O que fica de pé é a narrativa de Amorim, a sustentar, com eloquência terrível, a conclusão que o autor não quis endossar pessoalmente: ou os militantes de esquerda ensinaram guerrilha aos bandidos com um propósito deliberado, ou então a aquisição desse conhecimento pelos líderes do Comando Vermelho é o mais prodigioso milagre de absorção espontânea já registrado nos anais da pedagogia universal. Deixo esta hipótese para os adeptos da tese segundo a qual Deus é brasileiro. Quanto à outra, resta discutir se o propósito dos esquerdistas foi cooptar os bandidos para a luta armada sob seu comando ou simplesmente o de vingar-se pela derrota da guerrilha deixando para o governo militar a semente do futuro tormento do banditismo organizado. Pode ter sido uma mistura das duas coisas. Alguns policiais apostam na primeira, jurando que o Comando Vermelho é uma extensão e recrudescimento da guerrilha urbana, um novo braço armado das esquerdas. Esta certeza tem o mesmo fundamento daquela do dr. Tórtima: uma opção ideológica prévia que faz ver tudo torto, ou tórtimo. Deixarei esta questão para outra oportunidade, advertindo apenas que ela não pode ser resolvida pelo método das apostas sentimentais. Mas, qualquer que tenha sido o caso, uma coisa é certa: se os militantes da esquerda armada treinaram bandidos-guerrilheiros dentro da prisão, os da esquerda desarmada, fora dela, estão dando seguimento coerente à sua iniciativa, na medida em que ajudam o Comando Vermelho a conquistar uma posição de força como “liderança popular” legitimada artificialmente, e o integram assim na estratégia global da esquerda, já não como força militar, e sim política. Se os jovens guerrilheiros de l968 não tinham uma estratégia definida para aproveitar-se politicamente do banditismo, os velhos políticos esquerdistas de 1994 estão lhes dando uma, retroativamente. Não se trata de uma ponte entre gerações: é que estes velhos, simplesmente, são aqueles jovens, adestrados pelo tempo. Os jovens matavam e roubavam pela revolução; os velhos tiram dividendos políticos de assaltos e homicídios praticados por outros. Servem-se do banditismo duplamente: ao protegê-lo e ao denunciá-lo. No primeiro caso, ganham — ou pelo menos tencionam ganhar — os votos da população pobre, que supõem obediente ao Comando Vermelho; no segundo, servem-se dele como pretexto para denunciar a corrupção da sociedade capitalista. Alimentam o mal para poder acusá-lo, o que é, sem exagero, o tipo da malícia propriamente diabólica, imitando o tinhoso no seu duplo e inseparável papel de tentador e acusador. Se a idéia de cooptar os bandidos para a luta armada era uma fantasia insensata, se o desejo de vingar-se da ditadura era uma pirraça juvenil, uma esquerda mais madura e experiente está sabendo reaproveitar e tirar vantagem política daquilo que, entre névoas, foi gerado na Ilha Grande. A quem poderia ser doce esse fruto senão a quem, de olho no futuro, plantou a sua semente?

Apêndice II

 

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